Daniel Taddone: (Foto Desiderio Peron / Arquivo Revista Insieme)

“Arregacemos as mangas e vamos ao trabalho!”, diz o presidente do Comites – ‘Comitato degli Italiani all’Estero’ do Recife, Daniel Taddone, em carta aberta endereçada ao senador e subsecretário do Ministério das Relações Exteriores e Cooperação Internacional, Ricardo Merlo, publicada com exclusividade pela revista Insieme em sua edição de setembro, que começa a circular entre os assinantes e leitores.

No documento, Taddone dá as boas vindas a Merlo, diz que as “nossas expectativas são grandes”, fala das filas da cidadania, das dificuldades para obtenção do passaporte e do “kafkiano” sistema de voto e escrutínio eleitoral, para se fixar, em vinte pontos, no “emaranhado normativo” que regula o reconhecimento da cidadania italiana por direito de sangue.

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O “caos burocrático” reinante – diz Taddone –  dá espaço a “interpretações diversas para situações idênticas”, causando “disparidades absurdas de comportamento que variam de consulado a consulado”, além de insegurança jurídica que “mancha a imagem da Itália e recebe novos cidadãos num ambiente pouco saudável em que diversos obstáculos são fabricados por funcionários-legisladores que interpretam cada norma a seu gosto particular”.

No documento, Taddone – que foi candidato a deputado nas últimas eleições parlamentares e é tido como um dos mais importantes estudiosos brasileiros do tema cidadania italiana ‘jure sanguinis’ – oferece sugestões para cada problema apontado. “Sei que é um desafio ambicioso, mas precisamos urgentemente de um “Massimario della cittadinanza italiana”, advoga o subscritor da missiva a Merlo, cujo conteúdo publicamos a seguir, na íntegra.

Estimado subsecretário Sen. Ricardo Merlo, Antes de mais nada, congratulo-me publicamente pela sua nomeação a subsecretário do Maeci  – Ministério das Relações Exteriores e Cooperação Internacional no último dia 13 de junho e pela recentíssima atribuição da “delega” das questões relativas às políticas para os italianos residentes fora da Itália. Essa nomeação é um justo reconhecimento de sua longa trajetória na defesa dos interesses dos italianos no exterior.

Finalmente, o momento que muitos de nós esperávamos chegou. Um italiano nascido e crescido fora da Itália estará à frente de políticas que nos tocam diretamente. Agora, como bem saberá, as nossas expectativas são grandes! Estou seguro que o ânimo que o move é genuíno, então vou me permitir ser otimista. Arregacemos as mangas e vamos ao trabalho!

Os problemas que nos afligem são muitos, mas posso citar os três principais: as vergonhosas filas ilegais para o reconhecimento da cidadania, o sistema Prenota Online que escraviza cidadãos que querem apenas emitir um simples passaporte que lhes garanta o direito de viajar e, como não citar, o sistema eleitoral absolutamente inadequado e vergonhoso que subtrai a milhares de cidadãos o direito do voto que foi a duras penas conquistado, além das fraudes inerentes a um método arcaico e kafkiano não apenas de voto, mas também de escrutínio das cédulas votadas.

Nesta carta aberta, todavia, quero concentrar-me num tema que recebe relativamente pouca atenção: o emaranhado normativo que regula o reconhecimento da cidadania italiana e, em menor medida, a transcrição de atos de registro civil. Esse caos burocrático dá espaço a interpretações diversas para situações idênticas e causa disparidades absurdas de comportamento que variam de consulado a consulado e de comuna a comuna.

Ademais, essa verdadeira Babel causa insegurança jurídica, mancha a imagem da Itália e recebe novos cidadãos num ambiente pouco saudável em que diversos obstáculos são fabricados por funcionários-legisladores que interpretam cada norma a seu gosto particular.

As lacunas normativas que afetam o reconhecimento da cidadania não são um diagnóstico apenas meu, mas de muitos outros que, de diversas maneiras, são ligados a esse tema. Dois dos maiores especialistas em cidadania italiana da atualidade, Renzo Calvigioni e Tiziana Piola, autores do livro “Il riconoscimento della cittadinanza italiana iure sanguinis” (Maggioli Editore, 2017), logo no prefácio da obra definem a situação como sendo de “scarsità normativa” (escassez normativa).

Sei que é um desafio ambicioso, mas precisamos urgentemente de um “Massimario della cittadinanza italiana” que seja um vade-mécum obrigatório para todos aqueles que operam com essa importantíssima questão nas representações diplomático-consulares e nas comunas. É preciso um esforço conjunto do Ministério das Relações Exteriores e do Ministério do Interior para que todas as normais legais que envolvem o reconhecimento (e também aquisição por naturalização) da cidadania italiana sejam consolidadas numa obra abrangente que racionalize esse ato jurídico tão basilar na vida de todo cidadão.

É preciso revisitar as normativas que regem a cidadania italiana à luz dos princípios mais modernos da ação administrativa, entre os quais destaco a eficácia (“efficacia”), a imparcialidade (“imparzialità”), a economicidade (“economicità”) e, sobretudo, a razoabilidade (“ragionevolezza”).

De fato, a razoabilidade é um princípio bastante pouco observado quando o tema é cidadania italiana. Se não bastassem as filas ilegais que duram 5, 8 e até mais de 12 anos, alguns agentes públicos impõem ao cidadão obstáculos que fogem completamente à razoabilidade com o intuito de fazê-lo desistir por cansaço. Diariamente recebo mensagens de pessoas aflitas por situações vividas em consulados ou comunas que seriam perfeitamente evitáveis, mas que a escassez normativa permite que existam.

Feito esse longo preâmbulo, passo a elencar as vinte principais situações que deveriam ser examinadas por um grupo de trabalho interministerial:

● 1) Como já exposto, criar um manual (denominado “manuale”, “massimario”, “vademecum”, “compendio”, “prontuario” etc.) que contenha de forma analítica todas as normativas que condicionam o reconhecimento e concessão da cidadania em todas as suas modalidades. É mais do que necessário que todos os operadores públicos que lidam com o reconhecimento ou concessão da cidadania respeitem as mesmas regras para que não haja discricionariedade em seus atos.

● 2) Este manual deveria conter não apenas a normativa vigente, mas também ter uma seção para a “casística”, ou seja, como as normativas se aplicam na prática para uma quantidade significativa de casos diferentes, contemplando as situações mais recorrentes nos países de grande imigração como Argentina, Brasil, Estados Unidos, Uruguai, Venezuela.

● 3) Criar um banco de dados nacional com os dados essenciais de todos os novos cidadãos (por reconhecimento ou concessão) que seja consultável por qualquer administração pública italiana. Aqueles que já são cidadãos terão seus nomes alimentados a esse banco de dados progressivamente à medida que solicitem a emissão de um novo passaporte, cédula de identidade, registrem um casamento ou um filho. Isso traz segurança jurídica a todos. Os cidadãos figurarão nesse banco de dados independentemente de sua situação “anagrafica”, ou seja, não importando seu local de residência.

● 4) Todo cidadão italiano terá direito a um Certificato di Cittadinanza  padronizado que ateste seu status civitatis. Um modelo possível é aquele emitido pelas autoridades da República Federal da Alemanha. Preferencialmente, esse Certificato deverá informar desde quando é cidadão (desde o nascimento para os reconhecidos por direito de sangue (ex. Art 1), desde uma determinada para o restante dos casos). Outra característica desejável desse Certificato é que sua validade possa ser verificada online mediante um código identificativo único no website do ‘Ministero dell’Interno’.

● 5) Todos os anos realiza-se o “Convegno Nazionale A.N.U.S.C.A.” (‘Associazione Nazionale degli Ufficiali di Stato Civile e d’Anagrafe’) em que os oficiais de registro civil e de “anagrafe” de toda a Itália reúnem-se para discutir temas relevantes não apenas para os italianos residentes em território nacional, mas também no exterior. É de suma importância que um representante dos italianos no exterior esteja presente como observador para acompanhar os debates. É essencial que tal representante conheça tecnicamente os assuntos tratados, portanto, apenas um representante político sem intimidade com os temas será de pouca valia.

● 6) Definir com base na legislação vigente a “tempistica” de cada situação envolvendo a cidadania italiana. Não é admissível que cada agente público decida – como se legislador fosse – o tempo que empregará para finalizar cada trâmite administrativo.

● 7) Solicitar ao ‘Ministro degli Affari Esteri’ que recomende oficialmente e por escrito a todos os diplomatas e funcionários do ‘Ministero degli Affari Esteri’ que não expressem de maneira pública suas opiniões pessoais sobre as leis que regem a cidadania italiana. Na qualidade de agentes públicos, devem cumprir as leis respeitando o princípio de imparcialidade ditado pelo Art. 97 da Constituição italiana, não podendo no exercício de suas funções criticar, sob nenhum pretexto, as leis da República, sobretudo aquelas que regem um bem tão importante que é a cidadania. O lugar para esse tipo de debate é a arena pública e o Parlamento. A mesma recomendação deveria ser solicitada ao ‘Ministro dell’Interno’ com relação a funcionários comunais.

● 8) Eliminar de forma explícita a exigência da apresentação de certidões de óbito para o reconhecimento da cidadania por direito de sangue visto que tal documento não tem absolutamente nenhuma influência na verificação do ‘status civitatis’ do requerente (salvo raríssimas exceções de descendentes de imigrantes nascidos antes da Unificação da Itália e que a única comprovação de que tenham vivido após o advento do Reino da Itália seja o registro do óbito do ‘dante causa’).

● 9) Fazer valer de forma universal o que determinam os artigos 43, 46 e 47 do DPR 445/2000 (como modificado pela Lei 183/2011): todos os órgãos da administração pública italiana são obrigados a adquirir de ofício documentos que já estejam de posse de outro órgão. É absurdo que cidadãos tenham de apresentar novamente documentos que estejam já arquivados num outro consulado e às vezes até mesmo no mesmo consulado.

● 10) Esclarecer de forma definitiva que pessoas reconhecidas pelo princípio do ‘ius sanguinis’ são cidadãs italianas desde seu nascimento e que, portanto, podem ser o ‘dante causa’ de seus filhos, mesmo quando esses já são maiores de idade. É ilegal querer retroagir até o último ancestral nascido na Itália quando já há na linha reta de ascendência alguém que tenha tido a cidadania reconhecida, sendo assim cidadão desde o nascimento.

● 11) Intervir junto ao Comune di Roma para que as transcrições de milhares de atos de registro civil sejam de uma vez por todas transcritos. Há milhares de cidadãos italianos no limbo devido a essa negligência e os consulados têm por mau hábito transferir o ônus desse tipo de situação ao cidadão que muitas vezes se vê obrigado a pagar muito dinheiro a intermediários para poder ter um ato transcrito no Comune di Roma.

● 12) Determinar de maneira explícita a solução de dois problemas recorrentes em pedidos de reconhecimento de cidadania: que tipos de erros podem ser tolerados (diferenças de grafias em nomes e sobrenomes, bem como idades e datas) e indicar qual o prazo de validade para que certidões emitidas fora da Itália sejam aceitas. Não é possível deixar que esses critérios sejam estabelecidos de acordo com a mentalidade de cada funcionário a depender de seu humor momentâneo.

● 13) Decidir de forma definitiva que tipo de certidões são obrigatórias para a instrução de pedidos de cidadania (certidões integrais ou por resumo).

● 14) Determinar de forma clara como deverão ser tratados casos de filhos de pais não casados entre si, em que apenas um genitor foi o declarante/denunciante do nascimento e o outro foi apenas mencionado no ato sem sua intervenção direta. No caso de filhos maiores, seria caso de “elezione di cittadinanza” ou bastaria uma “sanatoria ora per allora” mediante simples declaração pública do genitor que não esteve presente no ato como sugerem Calvigioni e Piola no livro “Il riconoscimento della cittadinanza italiana iure sanguinis” (páginas 64, 111 e 112).

● 15) Determinar de forma clara, nos casos em que o filho é reconhecido na maioridade, desde que momento o período de um ano previsto no Art. 2 “comma” 2 da Lei 91/1992 passa a ser contado, se da data do ato de reconhecimento ocorrido no estrangeiro ou se de uma data posterior a partir da qual tal ato estrangeiro é “reso efficace in Italia”.

● 16) Solicitar a elaboração de uma circular ao ‘Ministero dell’Interno’ que informe os municípios italianos sobre a vigência desde 14 de agosto de 2016 da Convenção da Haia sobre as apostilas e sucessiva dispensa de legalização consular no Brasil (à semelhança do que foi feito pela Circular 10 de 4/6/2018 com relação ao Marrocos).

● 17) Mulheres casadas com cidadão italiano ‘de iure’ antes de 27/4/1983 têm tido suas solicitações de cidadania ‘iure matrimonii’ negadas se o cônjuge já é falecido ou se houve divórcio do casal (em ambas as situações eventos ocorridos após 27/4/1983). Esses casos precisam ser especificamente tratados.

● 18) Determinar a transferência aos municípios italianos responsáveis pela transcrição e inscrição AIRE de uma parte da soma arrecadada em previsão do Art. 7-bis da Lei 89/2014 (os famosos 300 euros da taxa de cidadania).

● 19) Fomentar estudos para modificar a forma de aquisição para o registro civil italiano de atos ocorridos no exterior (nascimento, casamentos e óbitos), superando o modelo arcaico de transcrição que significa um peso significativo de trabalho aos municípios italianos que devem copiar em um novo ato textos oriundos de traduções de atos estrangeiros. Um modelo a ser verificado é o de inscrição como utilizado por países como Portugal e Espanha, em que os atos estrangeiros servem apenas como referência para a lavratura de um assento ‘ex novo’ apenas com os dados essenciais sem necessidade de copiar todo o texto do ato estrangeiro. Isso provocaria uma racionalização de todo o sistema, como economia de tempo e recursos humanos.

● 20) Por fim, determinar que o Art. 10-bis da Lei 241/1990 seja devidamente cumprido não apenas nos órgãos da Administração Pública italiana na Itália, mas também nas representações diplomático-consulares, isto é, nenhuma solicitação formal feita por um cidadão pode ser negada apenas verbalmente, mas sim sempre mediante um “provvedimento di diniego” elaborado por escrito com as razões da negativa. É inadmissível que pessoas tenham o direito à cidadania ou à emissão de um passaporte negados apenas por uma resposta dada de forma oral presencialmente ou por telefone.

Esses vinte itens dizem respeito exclusivamente à legislação em vigor. Permanecem atuais e prementes a resolução de duas situações: estender o direito de reconhecimento da cidadania italiana por via administrativa aos descendentes de mulheres nascidos antes de 1/1/1948 e elaborar uma nova lei para a concessão da cidadania a descendentes de cidadãos de cultura e língua italianas que emigraram como súditos do extinto Império Austro-húngaro antes do Tratado de Saint-Germain-en-Laye em vigor a partir de 16 de julho de 1920.