”A democracia no mundo não está em boa saúde”, diz Mattarella, ao discursar na sede do Cebri

Dizendo que “o Brasil é um dos maiores protagonistas no panorama das democracias mundiais”, o presidente da Itália, Sergio Mattarella fez longo discurso hoje (18/07/2024) pela manhã na sede do Cebri – Centro Brasileiro de Relações Internacionais, no Rio de Janeiro, penúltima etapa de sua visita ao Brasil, iniciada domingo último. Daqui a pouco, Mattarella encontra representantes das comunidades italianas do Espírito Santo e Rio de Janeiro.

O chefe do Estado italiano assegurou, entretanto, que “no mundo de hoje – vamos falar a verdade – a democracia não está em boa saúde. Isso nos interessa e nos preocupa, porque está em jogo o bem do Homem”.

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Mattarella também se referiu ao fenômeno da grande imigração italiana para o Brasil como “uma experiência da qual devemos tirar lições – juntamente com nossos parceiros europeus – ao enfrentar, por nossa vez, o desafio da acolhida que o atual fenômeno migratório impõe às nossas sociedades”.

Dos que falaram na oportunidade, merece destaque o pronunciamento do diplomata Rubens Ricupero, que procurou dar a Mattarella uma visão ampla da importância da comunidade ítalo-brasileira. A seguir, publicamos o texto, traduzido para o português. do pronunciamento de Mattarella:

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“Senhora Presidente Dias Leite, Senhores Embaixadores Azambuja e Ricupero, Autoridades, Senhoras e Senhores, estou feliz de estar entre vocês, como convidado de uma instituição tão prestigiosa.

O Centro Brasileiro de Relações Internacionais desempenha um importante e muito apreciado trabalho científico em apoio à formulação de políticas públicas e à promoção da agenda internacional do Brasil.

A partir deste ano, com a entrada da Presidente Dias Leite no Comitê Consultivo do Instituto de Estudos de Política Internacional de Milão, o CEBRI estabeleceu laços ainda mais estreitos com a Itália.

Considero isso de grande significado e desejo um desenvolvimento contínuo dessa colaboração.

A amizade e a cordialidade reservadas não apenas a mim, mas também à minha filha, ao Vice-Ministro e à delegação que me acompanha, são uma confirmação dos profundos laços e da afinidade que unem Brasil e Itália.

Vinte e quatro anos após a visita do Presidente Ciampi, quis realizar uma viagem que permitisse conhecer diferentes aspectos da realidade do país.

Visitar Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e Porto Alegre – esta última dramaticamente afetada pelas enchentes das últimas semanas – é um privilégio que permite apreciar a variada e rica diversidade do Brasil.

Cada parada expressa um perfil diferente da identidade profunda deste país de dimensões continentais. “Gigante pela própria natureza”, como diz o seu hino nacional.

As relações de amizade que mantemos com o Brasil representam um patrimônio compartilhado, alimentado pela contribuição de mais de oitocentos mil italianos aqui residentes e pela maior comunidade de italo-descendentes do mundo. Eles desempenharam um papel ativo na construção do Brasil de hoje, seu desenvolvimento e prosperidade.

Agradecemos ao Parlamento brasileiro por instituir o dia 21 de fevereiro como “Dia do Migrante Italiano”, em memória do desembarque em Vitória em 1874 de centenas de italianos vindos de Gênova a bordo do vapor “La Sofia”. Trouxeram poucos bens, mas eram movidos pelo desejo de participar da construção de um país, dispostos a se integrar e determinados a alcançar, com seu trabalho, uma vida melhor.

Esta terra generosa lhes ofereceu acolhimento e oportunidades, e isso alimenta a gratidão por parte da Itália.

O 150º aniversário do início da migração italiana para o Brasil representa um momento significativo na relação entre nossos países e nos convida a refletir sobre a indivisibilidade dos destinos humanos, lembrando esta página que marcou nossa identidade e nossa história recente. Uma experiência da qual devemos tirar lições – juntamente com nossos parceiros europeus – ao enfrentar, por nossa vez, o desafio da acolhida que o atual fenômeno migratório impõe às nossas sociedades.

As evidentes simpatias e semelhanças entre nossos povos poderiam ser consideradas um tema secundário nas relações internacionais; ao contrário, assumem uma relevância nova em relação às transformações induzidas pelas inovações tecnológicas que influenciam profundamente a esfera das relações sociais, as escolhas de vida e as próprias relações políticas.

As bases do diálogo são os valores que pertencem aos nossos dois povos. O amor pela liberdade, o impulso para uma sociedade justa e inclusiva, a proteção oferecida pelo Estado de direito e pela vigência da democracia.

O Brasil é um dos maiores protagonistas no panorama das democracias mundiais.

“No mundo de hoje, vamos falar a verdade, a democracia não está em boa saúde. Isso nos interessa e nos preocupa, porque está em jogo o bem do Homem”.

Essas não são minhas palavras. Foram pronunciadas há poucos dias, com a eficácia comunicativa que o caracteriza, pelo Papa Francisco, o primeiro Pontífice sul-americano.

O Brasil, uma democracia grande e vibrante, é o parceiro ideal para um debate sobre esses temas; aberto a todos, sem preconceitos ideológicos ou de posicionamento geopolítico.

Por que – devemos nos perguntar – há um papel, uma responsabilidade das democracias no mundo? Porque, além dos interesses e de sua composição, existem valores que nutrem a convivência internacional e o respeito mútuo.

Amigos do CEBRI,

Autoridades,

Senhoras e Senhores,

esta minha visita de Estado ocorre em um ano especial, no qual aos nossos países são confiadas responsabilidades particulares.

Em 2024, o Brasil está encarregado de liderar o G20, enquanto a Itália preside o G7.

São fóruns intergovernamentais que fornecem a oportunidade de trocas proveitosas de opiniões sobre temas fundamentais para o nosso planeta, para a elaboração de plataformas que unam.

Desejo aqui recordar o objetivo da Presidência italiana na defesa do multilateralismo e de uma ordem internacional baseada nas regras e nos princípios da Carta das Nações Unidas, em defesa de cada membro da Comunidade internacional, independentemente do seu peso demográfico, das suas dotações militares ou do seu nível de desenvolvimento.

Na Cúpula do G7, a Itália ampliou o diálogo sobre essas prioridades a um número muito grande de países de todas as regiões do mundo – o maior na história de cinquenta anos do G7 – em consonância com a vocação inclusiva da nossa política externa e com a determinação de superar fraturas e conflitos com a contribuição de diferentes atores.

Nos amplos diálogos que tive em Brasília com o Presidente Lula, pude apreciar as diretrizes e prioridades que o Brasil estabeleceu ao assumir a presidência do G20. Enfatizar a inclusão social, a luta contra a pobreza e a fome, o desenvolvimento sustentável, a transição energética, a necessidade de uma tributação justa das atividades econômicas que geram imensos lucros, a reforma da governança mundial é uma prova tangível – caso houvesse necessidade de buscar uma nova – da abrangência global da política externa do Brasil.

São desafios que nos dizem respeito a todos, que envolvem o conceito – usado às vezes de forma vaga – de “Ocidente”, tanto quanto o conceito – definido às vezes de maneira instrumental – de “Sul Global”.

Este é um tempo que exige diálogo e confronto.

Constato com verdadeira satisfação que entre as presidências do G20 e do G7 existem amplas sinergias.

Um desalinhamento marcado entre dois fóruns tão importantes para o debate internacional teria sido um erro imperdoável, cheio de consequências.

Não podendo me deter sobre cada elemento de convergência, desejo destacar que a Itália olha com grande admiração para o trabalho iniciado pela presidência brasileira para chegar ao lançamento da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, por ocasião da cúpula do G20 em novembro.

A Itália apoia plenamente essa iniciativa e está pronta a colaborar em todos os níveis, com base também nas experiências adquiridas com a Expo de Milão de 2015, dedicada ao tema “Nutrir o Planeta”; da nossa condição de país anfitrião da FAO, do IFAD e do Programa Alimentar Mundial; de organizador da Cúpula das Nações Unidas sobre sistemas alimentares, realizada em Roma no ano passado; do nosso papel na promoção da Iniciativa de Segurança Alimentar da Apúlia na recente cúpula do G7.

A crise climática e os conflitos acentuaram o flagelo de centenas de milhões de pessoas à beira da morte por fome, ou que não têm acesso a uma alimentação saudável e completa.

Cada crise gera consequências e priva as pessoas do direito elementar à vida, muitas vezes obrigando-as a fugir em busca de sobrevivência.

A pandemia primeiro e a proliferação de conflitos – em primeiro lugar o da Ucrânia – levaram a um forte aumento no número de pessoas desnutridas, que hoje são mais de 120 milhões a mais do que em 2019.

Brasil e Itália – América Latina e Europa – podem colaborar em nível multilateral, e também criar iniciativas trilaterais com os países africanos, para construir sistemas alimentares mais sustentáveis e produtivos.

A segurança alimentar não é apenas o primeiro baluarte da segurança econômica, aspecto, naturalmente, por si só importantíssimo.

É também a pré-condição para o exercício pleno e efetivo dos direitos de liberdade. Sem ela, nunca será possível alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável que a Comunidade internacional se comprometeu a atingir até 2030.

Outro aspecto é a urgência de uma transição verde que seja concreta, pragmática, sustentável e eficaz.

Por muito tempo abordamos de maneira inadequada a questão da proteção ambiental e das mudanças climáticas.

As consequências são sempre nefastas, como pude constatar com grande tristeza ao visitar o Rio Grande do Sul. Se quisermos deixar às futuras gerações um planeta onde a humanidade possa viver e prosperar em paz, teremos que fazer, todos juntos, progressos decisivos em direção a um sistema de vida ecologicamente compatível.

Olhamos com grande interesse para as iniciativas que nos últimos dois anos o Brasil renovou em uma lógica de combate às mudanças climáticas e de proteção dos numerosos biomas naturais presentes no país.

Entre eles, meu pensamento não pode deixar de ir para a floresta amazônica, imenso patrimônio de biodiversidade, cujo índice de desmatamento diminuiu consideravelmente no último ano e meio, em benefício de todos nós.

Gostaria também de lembrar o compromisso do Brasil de sediar em 2025, dez anos após o Acordo de Paris, a COP 30 sobre o Clima, justamente na cidade amazônica de Belém.

Um compromisso que se insere na bem conhecida tradição de “diplomacia ambiental” que encontra nesta cidade, anfitriã da Cúpula da Terra de 1992, seu berço. Essa Cúpula da qual o Embaixador Azambuja foi protagonista.

Também a Itália – juntamente com os outros Estados membros da União Europeia – está fortemente empenhada na luta contra as mudanças climáticas, promovendo a transição energética para fontes sustentáveis e renováveis, bem como através de um uso mais eficiente e circular dos recursos.

É uma responsabilidade coletiva que não pode prever graus diferentes de compromisso entre os países.

Senhora Presidente,

Senhoras e Senhores,

o contexto internacional apresenta-se dramaticamente incerto.

Multiplicam-se as crises, manifestam-se competições para redesenhar os equilíbrios geopolíticos mundiais.

Verificam-se circunstâncias de alcance global que fazem emergir novas ameaças à paz e à segurança, à proteção da legalidade, à promoção dos direitos humanos.

Diante de desafios de tal magnitude, a solução possível é necessariamente, apenas, comum; de outra forma é ilusória e vã.

A agressão russa à Ucrânia mina os pilares da ordem internacional, viola os princípios mais básicos de coexistência entre os Estados: a norma sobre a ilicitude do uso da guerra para resolver disputas; o respeito pela soberania dos Estados e pela sua integridade territorial; o valor fundamental da Carta das Nações Unidas.

É inútil se iludir pensando que se trata de uma crise regional.

A crise é global porque globais são tanto a gravidade do atentado à convivência internacional, cometido pela Federação Russa, quanto as responsabilidades do agressor, que é membro permanente do Conselho de Segurança.

Não podemos nos resignar à guerra.

Assim como o Brasil e outros grandes países, aspiramos à paz e a buscamos.

Como italianos, como europeus, como membros responsáveis do grupo das Nações, acreditamos que ela deve ser construída a partir dos princípios elementares de justiça e ancorada no direito internacional.

O Oriente Médio, teatro nos últimos meses das desastrosas ações terroristas do Hamas contra civis israelenses indefesos e do inaceitável massacre de civis palestinos em Gaza, vive há muito tempo atormentado.

As áreas de crise no mundo são hoje numerosas. As causas da instabilidade são profundas.

Apenas soluções políticas, processos de paz inclusivos, uma estratégia de prevenção de conflitos e uma renovada confiança no multilateralismo e nas Nações Unidas podem oferecer possibilidades concretas de construir um horizonte de paz recuperada, de reconstrução, de crescimento social e econômico.

Nesse contexto, Brasil e Itália não podem deixar de prestar a devida atenção às propostas de renovação das Nações Unidas e das Instituições Financeiras Internacionais.

Nossos dois países propõem e promovem soluções diferentes para a indispensável reforma do Conselho de Segurança.

O que talvez deixemos de destacar é que ambas as propostas partem de uma análise comum – a evidente inadequação de estruturas concebidas há oitenta anos – e têm como objetivo – as duas propostas, as duas aspirações, do Brasil e da Itália – um mesmo objetivo: garantir maior representatividade ao órgão encarregado de tomar as decisões mais importantes e delicadas.

Compartilhamos – Brasil e Itália – a necessidade de um relançamento do multilateralismo em que os países do Sul Global possam expressar com eficácia sua voz protagonista e seu peso.

Da Declaração de Bandung de 1955 à Conferência de Belgrado de 1961, ao movimento dos “não-alinhados”, chegou-se à definição de um “não-alinhamento ativo”, com o propósito de operar na direção de alcançar um multilateralismo eficaz no novo ordenamento global.

Parece-me que precisamos dar um passo adiante.

O de estarmos “alinhados” em boas causas.

O compromisso do Brasil no G20 é por um mundo justo e um planeta sustentável.

Comecemos por aqui, é necessário estar empenhado contra as desigualdades, contra a fome, pelo clima e, voltando à Declaração da Conferência afro-asiática de Bandung, pelo respeito à soberania, à integridade territorial de todas as nações, pelo respeito aos direitos humanos e à Carta das Nações Unidas.

Trata-se de um alinhamento que apela, antes de tudo, às grandes democracias, a começar pelas do hemisfério sul: Brasil, Índia, África do Sul, Indonésia.

Apela à União Europeia.

São responsabilidades primárias, que não podem ser evitadas.

Caros Amigos,

a República Italiana, como membro fundador da União Europeia, faz ouvir sua voz nas instituições comunitárias europeias, para que o Brasil e os países da América Latina e do Caribe ocupem uma posição central na agenda europeia.

É verdade que a atenção da Europa é solicitada por graves crises em seu próprio entorno, e que o sistema internacional apresenta tendências à fragmentação. Mas justamente por essas razões a colaboração com países a nós afins em termos de sensibilidade valorativa, espírito multilateral e agenda comum deve ser constantemente alimentada.

Os investimentos diretos estrangeiros, totais dos países da União Europeia na América Latina, continuam a crescer há vários anos.

A União Europeia e seus Estados Membros são o primeiro investidor nesta região.

Nos une uma densa rede de acordos de associação e comerciais, com 27 dos 33 Estados latino-americanos e caribenhos.

O comércio entre nossas duas regiões atinge níveis cada vez mais altos.

Reitero novamente o desejo de uma rápida conclusão dos acordos de associação que estão atualmente em fase de negociação com a União Europeia.

São parcerias comerciais e políticas estratégicas para os futuros arranjos mundiais.

Refiro-me, em primeiro lugar, ao Acordo comercial entre Mercosul e União Europeia, que se encontra em um estágio avançado de definição e pode constituir um impulso adicional aos processos de integração na América Latina.

A cúpula da semana passada entre os Presidentes do Mercosul reiterou a importância de concluir as negociações com a União Europeia neste segundo semestre de 2024, no interesse de ambas as partes.

Senhoras e Senhores,

Autoridades,

Embaixadores,

em Roma já está sendo trabalhada a organização da XII Conferência Itália-América Latina e Caribe em 2025, um momento adicional de diálogo e de síntese das relações entre nossos países.

Sabemos que podemos contar com a contribuição do Brasil em termos de conteúdo e de participação, para dar à Conferência resultados importantes.

Gostaria, em conclusão, de citar uma frase de Sergio Vieira de Mello, brilhante exemplo de diplomata brasileiro dedicado à causa do diálogo e do compromisso humanitário, que cresceu em Roma e faleceu tragicamente em um atentado terrorista em Bagdá em 19 de agosto de 2003: “Um ser humano – dizia ele – tem o direito de viver com dignidade, igualdade e segurança. Não pode haver segurança sem verdadeira paz, e a paz deve ser construída sobre os sólidos fundamentos dos direitos humanos”.

Devemos cultivar a esperança de que um 2024, caracterizado pelas Presidências brasileira e italiana do G20 e do G7, possa representar para nós, povos da Europa e da América Latina, bem como para os cidadãos de um mundo cada vez mais interconectado, um novo ponto de partida, no espírito do pensamento de Vieira de Mello.

Mais do que um passado intenso, Brasil e Itália compartilham um presente de sensibilidades e interesses convergentes, e compartilham a aspiração a um futuro, para o mundo, de bem-estar, paz e liberdade.

Considerem a Itália ao seu lado ao longo deste caminho”.