Na imagem superior da montagem: Mercado de escravos na rua do Valongo, RJ, século XIX, de Jean-Baptiste Debret; na foto inferior, imigrantes europeus no pátio central da Hospedaria dos Imigrantes, em São Paulo.

Hoje, 20 de novembro, celebra-se o Dia da Consciência Negra. Os temas ligados a essa data são inúmeros e servem para que a sociedade brasileira possa refletir sobre a presença dos negros no país, lembrando o tratamento que receberam no passado e as condições que eles têm no presente. E não basta apenas refletir. São necessárias ações concretas, seja no âmbito de políticas públicas, seja nas nossas práticas cotidianas.

A complexidade demográfica da sociedade brasileira e nossa secular dificuldade em lidar com as populações menos favorecidas fazem que essa tomada de consciência não aconteça sem conflitos e negações.

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Mas, afinal, o que isso tem a ver com os descendentes de imigrantes italianos? Ora, tudo! Não raramente vemos por aí, sobretudo na era das redes sociais, descendentes de italianos minimizarem as atrocidades perpetradas contras os negros no Brasil tecendo comparações absurdas entre as agruras enfrentadas pelos imigrantes italianos nos primeiros anos da sua experiência brasileira e a monstruosidade de escravidão.

Não são poucos os ítalo-brasileiros que têm a desfaçatez de dizer que nossos ancestrais livres sofreram tanto quanto os africanos que aqui chegaram escravizados e despidos de qualquer direito, por mais mínimo que fosse.

Além da ignorância, é preciso de uma boa pitada de insensibilidade e crueldade para mesmo que superficialmente comparar as duas situações. Nossos ancestrais imigrantes chegaram sim em situações de penúria econômica e enfrentaram muitas dificuldades, mas eram homens livres e tinham direitos! Não raramente autoridades consulares italianas intervinham em favor dos seus compatriotas.

Os italianos nos primeiros anos sofreram muitos abusos, foram enganados com contratos leoninos, tiveram seus bens ilicitamente confiscados. Mas eram livres! Mesmo após a abolição da escravidão em 1888, os brasileiros negros, ora libertos, sofriam muitíssimo mais que os imigrantes italianos ou de qualquer outra nacionalidade. E não havia ninguém para defendê-los. São situações absolutamente incomparáveis.

Os negros escravizados não tinham qualquer direito, tinham uma expectativa de vida baixíssima e eram literalmente vendidos como mercadorias. São obviedades, mas parece que algumas pessoas têm dificuldade em se colocar no lugar dessas pessoas e dos seus atuais descendentes, que foram relegados a décadas de abandono estatal após a abolição.

No belíssimo livro “A reprodução do racismo: fazendeiros, negros e imigrantes no Oeste Paulista”, o sociólogo Karl Monsma faz um relato detalhado das relações entre os imigrantes italianos e os negros na região de São Carlos (São Paulo). Embora inicialmente não tivessem ideias pré-concebidas sobre os negros, vista a total ausência de contato com pessoas negras em suas aldeias na Europa, os italianos rapidamente passaram a reproduzir o racismo da sociedade brasileira, não aceitando o mesmo tratamento dispensado aos negros e contribuindo ativamente à sua marginalização.

Nós, descendentes de italianos, temos o direito de celebrar a memória dos nossos ancestrais e honrar seus feitos e sua dedicação ao trabalho. Todavia, não podemos de forma alguma deixar de reconhecer nosso status privilegiado na sociedade brasileira, adotando ações concretas, de forma pessoal e coletiva, para minimizar sempre que possível as diferenças sociais oriundas de um processo histórico em que os negros foram sempre marginalizados. E que nossa ascensão social não se deu apenas porque nossos ancestrais eram bons trabalhadores, mas também porque ocuparam um espaço que era exclusivo de brasileiros brancos.

É essencial entender que o sofrimento dos africanos escravizados é muitas e muitas vezes superior àquele que nossos ancestrais enfrentaram e que os nossos irmãos brasileiros de pele parda ou preta ainda hoje são submetidos a tratamentos indignos. Fomentar a consciência negra passa também por dar-se conta que essas diferenças têm reflexos até os nossos dias. Portanto, jamais nos permitamos novamente dizer que “nossos ancestrais sofreram tanto quanto os negros”.