Proclamação da República, de Benedito Calixto 1893. "Como não havia ninguém para anistiar, o governo republicano resolveu decretar a grande naturalização, em 14 de dezembro de 1889, pela qual passariam a ser brasileiros todos os estrangeiros residentes no país que não manifestassem, no prazo de seis meses, o propósito de conservar a respectiva nacionalidade. "(Wikipedia)

A ‘Avvocatura Generale dello Stato’, órgão equivalente à Advocacia-Geral da União no Brasil, apresentou uma “memoria difensiva” datada de 27 de novembro passado numa ação que corre no Tribunal Civil de Roma em que os reclamantes questionam a ilegalidade da fila de espera da cidadania de uma representação consular italiana no Brasil. Normalmente a ‘Avoccatura dello Stato’ não se manifesta sobre o mérito das ações, limitando-se apenas a afastar danos pecuniários ao erário, ou seja, para evitar que o Estado seja obrigado a pagar multas e valores relativos à sucumbência.

Desta vez, a “memoria difensiva” foi muito além e apresentou um verdadeiro libelo contra a manutenção da cidadania pelo princípio do ius sanguinis por parte de descendes distantes de um imigrante italiano, além de apresentar o argumento da chamada “Grande Naturalização de 1889” como base para afirmar que não houve a transmissão da cidadania italiana aos descendentes cujo ancestral italiano estabeleceu-se no Brasil antes de 15 de novembro de 1889.

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O argumento da “Grande Naturalização” sempre esteve à espreita nas discussões de temas ligados ao reconhecimento da nacionalidade italiana dos ítalo-brasileiros, todavia, não havia sido ainda – ao menos que se saiba – trazida à tona por um órgão de Estado.

A “Grande Naturalização” foi uma naturalização tácita prevista pelo Decreto nº 58-A de 14 de dezembro de 1889, regulado posteriormente pelo Decreto nº 200-A de 8 de fevereiro de 1890, decretos que depois convergiram no artigo 69 inciso 4º da Constituição Federal de 1891  que foi promulgada em 24 de fevereiro daquele ano. Com a previsão constitucional, o estrangeiro que não quisesse ser brasileiro deveria dentro dos seis meses subsequentes manifestar tal vontade em ato público lavrado em livro próprio.

Na prática, a tal “Grande Naturalização” foi uma montanha que pariu um rato. Os estrangeiros então residentes no Brasil eram em grande parte trabalhadores braçais do campo e nem mais remotamente vieram a tomar conhecimento que haviam se tornado cidadãos brasileiros e, muito menos, que por consequência haviam perdido sua nacionalidade original. Nem mesmo as autoridades consulares italianas da época tomaram conhecimento de tal medida, como comprovam o retorno de milhares de italianos munidos de passaporte italiano à pátria, mesmo aqueles que estavam no Brasil antes de 1889.

Alguns deles tiveram normalmente um registro de estrangeiro quando tal documento tornou-se obrigatório em 1938. Enfim, quase ninguém sabia o que quer que fosse da tal “Grande Naturalização”. Todavia, ela existiu. E agora a Advocacia do Estado da República italiana quer cobrar essa conta.

Como é possível ler no recorte nº 2, o advogado do Estado propugna que a “Grande Naturalização” é “elemento obstativo insuperável ao reconhecimento da cidadania italiana iure sanguinis” dos requerentes e que tal situação afeta “milhares de casos análogos”.

Não satisfeito somente com o argumento da “Grande Naturalização”, o advogado do Estado invoca (ver recorte nº 4) outro controverso dispositivo de lei previsto no Código Civil de 1865 (artigo 11 inciso 2) relativo à perda da nacionalidade italiana dos nascidos antes de 1º de julho de 1912 em país em que vigorava o ius soli, dentre eles o Brasil, a Argentina, os Estados Unidos etc. Tal hipótese de perda não respeita a interpretação vigente à época e consagrada nos manuais de então, como já expliquei em um artigo de 29 de abril deste ano .

Depois de defender dois argumentos absolutamente duvidosos, o advogado do Estado passa então ao libelo contra o reconhecimento da cidadania italiana por parte de descendentes que não têm mais uma ligação efetiva com a pátria-mãe (ver recortes nº 6 e 7). O advogado do Estado não apresenta, todavia, em base a que normativa poderá fazer essa “triagem”, então parece querer escavar motivos de perda a fim de perseguir os objetivos que ele considera serem os do Estado.

O advogado do Estado ainda apresenta dois argumentos estapafúrdios de natureza administrativa com relação ao decurso do prazo de 730 dias para o reconhecimento da cidadania. Por ora, deixo essas duas questões para outro momento, pois a “Grande Naturalização” e o nascimento em solo brasileiro antes de 1912 são elementos muito mais perigosos aos direitos dos ítalo-brasileiros.

Se o “Ministero dell’Interno”, órgão a quem a “Avvocatura dello Stato” defende, resolver adotar o mesmo entendimento com relação a esses dois pontos, as coisas podem tomar um rumo muito ruim, criando ainda mais confusão e insegurança jurídica nas questões ligadas ao reconhecimento da cidadania iure sanguinis.

Por enquanto é apenas uma defesa do Estado numa única ação. É preciso ver se essa “memoria difensiva” vai extrapolar sua função objetiva para pautar decisões de outros órgãos.