Parece ter nascido hoje uma nova coalizão de governo na Itália. Amanhã, 29 de agosto de 2019, saberemos se o presidente da República, Sergio Mattarella, aceitará o novo governo formado pelo Movimento 5 Stelle (M5S) e pelo Partido Democrático (PD).
As eleições de 4 de março de 2018 não deram uma clara maioria de governo a nenhum partido, mas num “contrato de governo” o M5S e a Lega decidiram formar um governo bicéfalo, com os respectivos candidatos a primeiro-ministros, Luigi Di Maio e Matteo Salvini, transformados em vice-primeiros-ministros, tornando necessário escolher um outsider para o cargo de chefe de Governo (primeiro-ministro). O escolhido foi Giuseppe Conte, um professor universitário discreto e, de certa forma, anódino.
O contrato de governo gialloverde (amarelo-verde, cores de cada um dos partidos da coalizão) durou quatorze meses. Nesse período, Matteo Salvini ganhou protagonismo e se colocava publicamente como um condestável da República, usando as redes sociais como arma para ganhar consenso, sem nunca temer assuntos polêmicos como os problemas ligados à imigração e aos refugiados.
As pesquisas de opinião demonstravam mês após mês que a população italiana era majoritariamente favorável às medidas duras anti-imigração ilegal e Salvini, num movimento político arriscado, quis aproveitar o seu momentum e provocou uma crise de governo que em seus cálculos teriam uma única saída: novas eleições. Num novo pleito, Salvini calculava que poderia alcançar uma maioria estável com a sua Lega mais alguma formação de centro-direita, preferencialmente o partido Fratelli d’Italia (FdI).
Contudo, o tiro parece ter saído pela culatra. A outrora inimaginável aliança M5S+PDparece estar em vias de se concretizar. Se for uma maioria estável, deixará a centro-direita novamente fora do poder na Itália até 2023. As características do M5S, partido antissistema e transversal, não me fazem crer que uma maioria sólida pode ser formada com um partido como o PD, tradicional e fisiológico. Ademais, o PD está comprometido a uma política de imigração que a maioria da população não parece mais tolerar. Veremos.
E o que muda no “fabuloso mundo da cidadania italiana”?
Como já afirmei repetidamente, as normas que regulam a cidadania italiana parecem estar sempre “a um fio”. Como o trânsito dos planetas diante do Sol, a cada ano estamos fadados a tomar algum susto advindo de algum fugaz arroubo legislativo prestes a tirar algum direito daqueles que hoje são potenciais requerentes da cidadania italiana.
Como se posicionam os partidos italianos quanto ao ius sanguinis? A resposta é bastante clara: nenhum tem posição definida. Nem à direita, nem à esquerda.
É evidente que todos os partidos de centro-esquerda e esquerda, a começar pelo PD, são favoráveis ao ius soli em gradações diferentes. Os partidos de direita e centro-direita, por sua vez, são contrários. O centro do espectro político advoga por um ius soli temperado com alguma mescla da ideia do ius culturae. Todavia, nenhum partido jamais tomou uma posição clara sobre o ius sanguinis. Apesar disso, é possível inferir grosso modo como cada lado político vê a questão.
A esquerda vê no ius sanguinis o legado de um passado etnocêntrico e que privilegia a ideia de uma sociedade etnicamente homogênea em detrimento do conceito de uma sociedade italiana multicultural e acolhedora ao estrangeiro.
A direita é mais ambígua, pois ao mesmo tempo que tende a se orgulhar da “estirpe italiana” disseminada pelo mundo, não raramente demonstra um medo tacanho e desconhecimento sobre as comunidades italianas no mundo, imaginando que são todos aproveitadores cujo objetivo final seria parasitar o Estado italiano (sistema sanitário, previdenciário etc.).
Já o Movimento 5 Stelle, que apresenta em seus quadros membros das mais variadas tendências ideológicas, parece ter uma visão bastante economicista da questão. Os italianos no exterior, sobretudo os de velha emigração, representariam custos a serem cortados o mais rápido possível.
Assim, podemos esperar alguma mudança na lei de cidadania durante um governo M5S+PD? Se uma aliança estável se concretizar, o que hoje parece improvável, é sim possível que haja alguma iniciativa parlamentar para a introdução de mudanças que ampliem o acesso à cidadania a filhos de estrangeiros, sejam nascidos na Itália ou não. Uma ampliação racional e bem feita é sim algo bem-vindo. A lei atual apresenta distorções inaceitáveis e que trazem enormes danos a jovens plenamente integrados à sociedade italiana e que não merecem ser tratados como estrangeiros até depois de completarem a maioridade.
Todavia, o ius sanguinis pode ser modificado? Sim, mas se a Itália pretende continuar a ser um Estado Democrático de Direito que honre sua tradição jurídica jamais poderá ter efeitos que retroajam para afetar aqueles que não tiveram ainda sua cidadania formalmente reconhecida. Sempre será possível criar novos dispositivos que prevejam a posterior perda da cidadania, mas isso é tema de um outro artigo.
Aqueles que têm hoje direito à cidadania italiana por direito de sangue já nasceram italianos. Trata-se de ato jurídico já concluído no tempo. O reconhecimento nada mais é que uma simples verificação formal da posse ininterrupta da cidadania desde o dante causa (aquele que transmite a cidadania) até o requerente.
A relação jurídica entre o descendente avente diritto (aquele que tem em si o direito à cidadania) e o Estado italiano já existe. Portanto, uma nova lei não pode modificar essa situação já concluída à luz da lei em vigor à época do nascimento.
Em toda a história da Itália, desde sua formação como Estado nacional em 1861 até hoje, uma lei jamais retroagiu para desfazer relações jurídicas já concluídas. Os dois códigos civis italianos, o de 1865 e o de 1942 (este ainda em vigor) não abrem lugar a dúvidas quando determinam de forma absolutamente clara e direta que “A lei dispõe apenas para o futuro: ela não tem efeito retroativo”.
Conclusão
Considero pouco provável que a nova coalizão de governo M5S+PD consiga ter uma maioria suficientemente sólida para fazer grandes modificações legislativas na cidadania italiana. Introduzir elementos do ius soli parece até possível, mas modificar o ius sanguinis retroativamente encontraria obstáculos na própria estrutura técnica do Parlamento, que advertiria os legisladores sobre a ilegitimidade de tal iniciativa. E isso se houvesse um improvável consenso contrário ao ius sanguinis.
Concluo, portanto, afirmando que no tange à lei da cidadania há pouco a temer no horizonte próximo e sempre espero contar com a Corte Constitucional para que mudanças teratológicas, se vierem a ser executadas, sejam o mais rapidamente desfeitas e a Itália continue a ter seu lugar entre as nações civilizadas.