TEXTO DA ENTREVISTA DE FÁBIO PORTA À REVISTA INSIEME, NÚMERO 100 (ABRIL 2007)

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u CURITIBA – PR – “Não perder tempo com a retórica da imigração” ítalo-brasileira foi o conselho dado ao primeiro ministro do governo italiano, Romano Prodi, no dia em que ele chegava ao Brasil. “Corriere della Sera” em mãos, já cedo Fábio Porta esperava uma oportunidade para protestar contra o editorial do jornal, assinado pelo ex-embaixador Sergio Romano. À noite, no Círculo Italiano de São Paulo, entregou pessoalmente a Prodi a carta que havia redigido ao editorialista e que já circulava nas agências de notícia italianas. “Caiu minha ficha”, disse Porta depois. “Comecei a compreender que as muitas dificuldades colocadas ao reconhecimento da cidadania italiana ‘ius sanguinis’ talvez sejam mais de ordem cultural que real”. Casado e residente no Brasil, o sociólogo Porta, formado pela Universidade “La Sapienza” de Roma, afirma nesta entrevista ao editor de Insieme que a Itália está à beira da inconstitucionalidade ao negar, na prática, direitos assegurados no papel. Para ele, o inchamento de números é outra evidência da falta de vontade política. Ele analisa este e outros candentes temas de grande interesse para os ítalo-brasileiros e advoga a eleição direta para a escolha dos membros do CGIE – Conselho Geral dos Italianos no Exterior. Dos parlamentares eleitos na América do Sul, como eleitor, ele pergunta: “Onde estão?” 

 

n Que avaliação faz da recente visita de Prodi ao Brasil?

Na política, também os gestos têm valor, e o fato de que a primeira visita de Prodi fora da Europa tenha sido feita ao Brasil e a São Paulo, uma das grandes capitais “italianas” no exterior foi um sinal importante, que não podia passar despercebido. Me pareceu um Prodi menos tenso do que de costume, convencido e feliz de sua presença no Brasil. Em todos os seus encontros envidenciou a forte correspondência entre a presença italiana e as perspectivas políticas e comerciais de integração entre os dois países.

 

n Quais são as perspectivas políticas e econômicas mais evidentes? Refere-se também ao projeto energético?

Sem dúvida, as perspectivas mais interessantes são aquelas que derivam da expansão do mercado mundial de biodiesel, onde o Brasil é já o líder. Logo após a visita de Prodi, visitei com alguns conselheiros do Comites de São Paulo a fábrica Dedini, em Piracicaba, a maior empresa de tecnologia de base e de ponta do setor; o presidente, Mario Dedini, nos mostrou o extraordinário cenário para o Brasil nos próximos anos, e a Dedini é parceiro de empresas italianas: é um dos claros exemplos de como a presença italiana pode ser também útil e estratégica quando se fala das relações comerciais entre os dois países.

 

n Bem no dia em que chegava ao Brasil, Prodi foi aconselhado a deixar de lado as reivindicações da comunidade ítalo-brasileira sob a alegação de que elas atrapalham as relações entre os dois países. O Senhor discordou de pronto, e por escrito. Por qual motivo e o que lhe disse Prodi a respeito?

Sou um leitor atento do “Corriere della Sera”, aliás, há algum tempo também ajudei a empresa responsável pela distribuição no Brasil a sair de uma perigosa crise que nos teria privado da leitura diária do jornal aqui em SP (que junto com Buenos Aires tem este pequeno “privilégio”…). Também por isso senti-me pessoalmente ofendido ao ler o editorial assinado por Sergio Romano no dia da chegada de Prodi ao Brasil. No artigo convidava-se Prodi a “não perder tempo com a retórica da emigração”  representada pela comunidade italiana no Brasil, e a passar aos fatos, isto é, aos negócios… Nem todos sabem que Sergio Romano foi um importante embaixador italiano no exterior e que poucos dias antes daquele editorial esteve exatamente no Brasil. Quero dizer que a minha indignação se devia exatamente ao fato que uma pessoa que conhece bem o peso e o valor da comunidade italiana no exterior, e particularmente no Brasil, não poderia jamais escrever tamanho absurdo!. Escrevi uma carta a Sergio Romano e a entreguei a Prodi, que cumprimentou-me dizendo que eu tinha sido bondoso demais…

 

n  Sem fazer o papel de “Maria ofendida”, sendo o colunista alguém assim tão ligado à diplomacia ou à burocracia italiana, não houve aí uma clara e grave ofensa à comunidade ítalo-brasileira?

Creio que sim, e não é a primeira vez que o ‘Corriere’, exatamente através da assinatura da Sergio Romano, ofende os italianos no exterior: já o tinha feito durante a campanha eleitoral, com um péssimo artigo cheio de estereótipos sobre os italianos da Argentina; também então respondi com uma dura crítica. Infelizmente em ambas as oportunidades o jornal não teve a educação e o bom senso de publicar a minha carta. Por sorte, caro Peron, nem todos os diplomatas pensam como ele; veja o que escreve Ludovico Incisa di Camerana (outro conhecido ex-embaixador) no prefácio de seu livro “O Grande Êxodo” , dedicado à emigração: “Na área diplomática procura-se antepor uma separação formal a uma identificação plena com os concidadãos, donde este ambíguo entendimento  que inevitavelmente comporta exceções com o nascimento de relações de amizade frequentemente não correspondidos a nível oficial (…) Não quero justificar-me – conclui o diplomata – mas reconheço que existe um débito moral que procuro saldar relativamente à outra Itália”.   Eis aí uma posição diversa, respeitosa e autocrítica, e não ofensiva e esnobe como aquela de Romano.

 

n  É sabido que a busca pelo reconhecimento da cidadania italiana “iure sanguinis” (uma grande janela para o renascimento de uma italianidade sufocada em outros tempos) constitui-se na principal reivindicação da comunidade ítalo-brasileira. Por qual motivo, a seu ver, esta reivindicação não está sendo atendida a contento?

Todos os brasileiros conhecem uma expressão muito simpática que é “caiu a ficha”:  Quando li o artigo de Romano no ‘Corriere’ è “caiu a minha ficha”, ou seja, comecei a compreender que as tantas dificuldades colocadas ao reconhecimento da cidadania ius sanguinis talvez são mais de caráter cultural que real. De outra forma não teria sentido a progressiva redução do pessoal consular destinado ao setor, a obstinada aversão a qualquer tentativa de “terceirizar”  parte do serviço, a não assinatura das convenções com os patronatos, o silêncio sobre a proposta de uma “ força tarefa”, o injustificado e inconstitucional “ fechamento” de alguns consulados…

 

n  Consulados como o de Curitiba estão fechados a novos pedidos de cidadania desde 2005. Não lhe parece que ao arrepio da lei cada cônsul está fazendo um pouco o que bem quer, dependendo da corrente com a qual melhor se afina?

É o que acabei de dizer: estamos à beira da inconstitucionalidade, impedir um cidadão de poder gozar de um direito, isto é verdadeiramente grave. E mais grave de tudo é a possibilidade que existam diferenças entre consulados, isto é mesmo inaceitável, além de incompreensível. E a coisa mais grave é que o “ fechamento” do consulado de Curitiba foi feita pelo antecessor do atual cônsul que, se não me engano, tem hoje um papel importante de coordenação da nossa rede consular em todo o mundo.

 

n  Pela legislação em vigor, todo descendente de italiano, italiano é. O reconhecimento é apenas, como a certidão de nascimento, um ato burocrático. Que devem fazer os que não conseguem a “certidão” ou são impedidos até de solicitá-la? Além do político, mais natural, há remédio jurídico para isso? 

Falo como representante eleito da comunidade italiana (Porta é Vice-presidente do Comites de SP, NdR): ser cidadão quer dizer responder a um conjunto de direitos e deveres; do mesmo modo que o Estado deve exigir o respeito aos deveres é obrigado a garantir o pleno exercício dos direitos. É esta a questão! Não existem direitos “por tempo indeterminado” ou, pior ainda, conforme “critério de um cônsul” . Não quero fazer demagogia nem terrorismo, mas simplesmente repito: “não é sério continuar assim”, sem ter a coragem de enfrentar a situação nem de uma forma nem de outra. Com a conseqüência de diminuir toda a discussão sobre os italianos no exterior, sobretudo no Brasil, ao assunto da cidadania. Preferiria falar de cursos de língua, bolsas de estudo, estágios e treinamentos na Itália, promoção da cultura e dos intercâmbios universitários, intensificação das joint-venture entre jovens empresários italianos e sul-americanos… Por isso me incomodo quando se fala de cidadania, porque não se resolve o problema e não se consegue enfrentar as grandes questões ligadas à presença de nós, italianos no exterior.

 

n Os consulados reclamam que não têm estrutura, mas de forma geral não aceitam a colaboração dos patronatos ou da comunidade. E quando aceitam, como na questão dos trentinos em Curitiba (na verdade, uma rara exceção), os processos, às centenas ou milhares, ficam dormindo nas gavetas de Roma. Que dizer disso?

Quando digo que se trata de um problema “cultural” quero dizer exatamente isto; há uma certa resistência em admitir que existem soluções e que frequentemente o problema “ falta de recursos”  é apenas uma desculpa para não estudá-las e experimentá-las. Trata-se, também, de um certo modo de entender da diplomacia e, portanto, da rede consular: para alguns (como Romano), os diplomatas devem ocupar-se dos grandes sistemas (a assim chamada “alta diplomacia”)  e não dos problemas concretos como aqueles da comunidade italiana na América do Sul. Vejo que também entre os nossos cônsules existem alguns mais propensos a encontrar soluções neste sentido e outros menos; para alguns deles não existe um problema insolúvel, mas apenas uma vontade política por definir.

 

n Enquanto transita no Parlamento projeto de lei abrindo para o reconhecimento da cidadania italiana também pelo lado materno (antes de 1948), outros, como o senador Edoardo Pollastri, temem que se chegue a Adão e Eva. Que pensa a respeito?

Creio que o senador Pollastri não tenha sido feliz em sua expressão, e que quisesse simplesmente dizer que precisaria dar tempos certos para a realização dos processos de cidadania, talvez colocando algum entrave na reconstrução da cidadania. Uma visão pragmática, de empresário, como Polastri é. O problema são os números que são apresentados a cada dia, números grandes (498 mil requerimentos não atendidos no Brasil) mas que frequentemente são aumentados de propósito exatamente por quem pretende eliminar para sempre a cidadania ius sanguinis, coisa que juristas e constitucionalistas entendem como impossível. Eu convidaria a todos, então, e em primeiro lugar o senador Pollastri e a deputada Bafile – ambos do Ulivo – a serem verdadeiramente pragmáticos, defendendo seriamente a proposta já realizada da “força tarefa”  para a eliminação da chamada “fila” e definindo critérios eficientes e rápidos para os novos requerimentos, recorrendo, se for o caso, às convenções com os patronatos e à “terceirização” de parte do serviço, incluindo uma pequena participação econômica dos interessados.

 

n  Como explica as últimas medidas tomadas pelo governo italiano no campo que interfere com o reconhecimento da cidadania (visto, residência, etc.)? Concorda com os que advogam uma lei mais restritiva?

Sou o primeiro a afirmar que a corrida à cidadania na Itália (dos que vão para a Itália para obter o reconhecimento do direito – NR) deva ser bloqueada, desencorajada e desincentivada; isto, no entanto, diante de uma ação séria pela solução dos processos de cidadania, sobretudo no Brasil e na Argentina. Fechar aqui e na Itália teria como conseqüência o recrudescimento de fenômenos de corrupção e incentivaria subterfúgios e irregularidades, que precisamos evitar e condenar. Por isto volto a dizer aos nossos políticos e governantes: tenham a coragem de realizar escolhas, porque tudo pode ser feito, exceto deixar a situação como está. A Itália é um grande e sério País e não pode permitir-se o luxo dessa imagem, nem de iludir ninguém com um direito garantido no papel mas que é nagado de fato.

 

n Esse direito de sangue nos vem desde os romanos? E não é uma das pedras fundamentais da grandeza dessa Itália fora da Itália?

Disseste-o bem, tanto que a cidadania ius sanguinis tem raizes exatamente no direito romano, de que nós italianos nos orgulhamos. Sabe onde tinha nascido o grande imperador Adriano? Na Espanha, mas ainda hoje é lembrado como um dos grandes imperadores romanos… Sim, sei, também eu sou nascido na Itália e frequentemente ouço dizer: “Não podemos colocar no mesmo nível quem, como nós, nasceu na Itália e os bisnetos de um italiano que nasceram no Brasil ou na Argentina…” O problema porém não é este; a verdadeira dificuldade é no ver a condição de “duplo cidadão” como um valor agregado, um patrimônio único para a Itália, que se adequadamente valorizado e organizado pode constituir um formidável instrumento de desenvolvimento cultural, econômico e social para o nosso País. Quero ser sincero e não esconder o fato que existem pessoas à procura de um “passaporte europeu” mais que de uma verdadeira “cidadania italiana”; mas então, se este é o problema, estudemos e avaliemos seriamente as formas (que existem) para desencorajar este tipo de procura “oportunística” e ajudar aquela, digamos assim, “legítima”. Argumento que, paradoxalmente, o atual sistema acaba por ajudar o próprio “mercado dos passaportes” contra o qual precisamos nos mobilizar.

 

n Como avalia o desempenho até aqui visível da representação parlamentar da América do Sul perante o Parlamento italiano?

Talvez sou a última pessoa que deveria falar neste sentido. Sou o primeiro dos não eleitos na chapa da Unione à Câmara dos Deputados pela Circunscrição América do Sul e creio que a avaliação dos deputados eleitos deveria ser feita pelos eleitores, isto é, pelos milhares de italianos que votaram na América do Sul. Estou consciente de que foi a “primeira vez”  para todos e que não é fácil responder num ano às expectativas criadas no curso de decênios… Mas como eleitor eu esperava mais determinação, sobretudo sobre a situação da “rede consular”  sul-americana, que se constitui no ponto crucial de todos os serviços oferecidos à comunidade (estudo, trabalho, assistência…). Porque não assumir, por exemplo, que 6 (seis!) consulados gerais no Brasil é pouco e que 8 (oito!) na Suíça talvez são mais que suficiente…. É apenas um exemplo, mas continua a ser o mais importante. Outra reivindicação “de eleitor” aos parlamentares eleitos: visitem mais vossas comunidades, vossos eleitores! Infelizmente o delicado equilíbrio no Senado não deixa a meu amigo senador Pollastri uma tal liberdade de movimentos que lhe permita viajar pelo Brasil ou pela América do Sul, mas os outros? Onde estão?

Na sua opinião, o que deve mudar nos Comites? O CGIE deve continuar existindo?

A presença dos parlamentares eleitos no exterior mudou radicalmente o papel desses órgãos que, se não forem reformulados logo, correm o risco de tornarem-se obsoletos, ou seja, velhos e inúteis. O Comites deve tornar-se a verdadeira “Câmara de Vereadores”  dos italianos no exterior, mas para isto deve ter recursos adequados e  estabelecer uma relação real e direta com as exigências da comunidade; também aqui vejo de um lado Comites ativos e propositivos (permitam-se citar aquele de São Paulo, e dizer que a presidente Rita Blasioli sabe trabalhar em equipe e com abnegação em defesa de nossa comunidade, utilizando não apenas o Conselho mas também as comissões de trabalho e as numerosas visitas ao interior…); vejo ao contrário outros Comites adormecidos e distantes da comunidade. Para o CGIE o discurso é ainda mais sério e a reforma mais urgente; sou a favor das eleições diretas dos conselheiros do CGIE, de uma redução do número dos conselheiros e de uma importância maior às reuniões continentais, às quais os presidentes dos Comites deveriam sempre ser convidados.

 

n Concorda com a tese segundo a qual se a eleição para o CGIE não for direta, é melhor que o órgão seja fechado? Que dizer também do grande número de “biônicos” – isto é, indicados pelo governo?

Não creio que o CGIE deva ser extinto, pelo contrário, deveria ser reformado exatamente em função da presença dos 18 parlamentares eleitos no exterior. O CGIE deveria ser o lugar para onde as propostas e reivindicações da comunidade italiana no exterior seriam canalizadas e traduzidas em propostas concretas, também de caráter legislativo, destinadas à avaliação do Parlamento; é claro, porém, menos gongórico e mais concreto: ou seja, menos discursos e mais propostas operacionais. Há quem defenda que o voto direto reduz o peso dos Comites, opinião compreensível, mas de quem nunca participou de uma assembléia de eleição do CGIE, onde os acordos acontecem nos quartos de hotel às 4 horas da manhã e não no confronto de idéias entre Comites e Associações. Quanto aos “biônicos”, eu seria favorável a uma redução do número, mas não de supressão total, uma vez que representam a necessária ligação com órgãos históricos da imigração italiana no mundo, que tiveram e continuam a ter um papel importante e útil para o aumento do poder de representação da Itália fora da Itália.