Taddone: "No “Fantástico Mundo da Cidadania Italiana” parece que estamos presos no “Ano da Marmota” (Fotomontagem de Desiderio Peron sobre imagem de Sven Herrmann/AdobeStock)

Este ano completam-se trinta anos desde a estreia do filme “Feitiço de Tempo” estrelado pelos atores Bill Murray e Andie MacDowell. Seu título em inglês é Groundhog Day, ou “Dia da Marmota”. É um dos meus filmes preferidos, sempre vale a pena rever de tempos em tempos. A película conta a história de um jornalista que de repente se vê preso num mesmo dia que se repete a cada manhã exatamente igual ao anterior. É Dia da Marmota todos os dias.

No “Fantástico Mundo da Cidadania Italiana” parece que estamos presos no “Ano da Marmota”. Certos eventos repetem-se numa macabra alternância anual. Vamos desde as variadas invencionices que um consulado aqui e outro acolá tiram de suas criativas cartolas até o indefectível projeto de lei com teratologias legislativas com o objetivo de “exterminar o direito à cidadania” dos descendentes de emigrantes italianos.

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As justificativas já conhecemos: os descendentes não falam italiano, não sabem nada da Itália, querem só o “passaporte” para ir à Disney ou ir trabalhar na Irlanda. Chi più ne ha, più ne metta. Bom, sejamos francos, é em grande parte verdade. Não tapemos o Sol com uma peneira. Admiti-lo, todavia, não nos impede de dizer que há muitos que procuram o reconhecimento da cidadania por questões afetivas e de orgulho da Madrepatria.

Já escrevi e discorri sobre isso inúmeras vezes. Num artigo de 2020, nesta mesma revista Insieme, constatei o “naufrágio da Itália Transoceânica”. A ideia propagada no início do século XX que via nos “filhos da Itália” uma forma de colonização cultural em países de grande emigração italiana não ocorreu como se imaginava. É um fato inescapável.

Detalhe da capa da edição 258, de novembro de 2020: “A Itália transoceânica naufragou”

O grande problema é que a Itália vive em inércia e negação sobre o real estado dos seus milhões de descendentes espalhados pelo mundo. O país não sabe como lidar com esse enorme recurso, deixando que o navio siga afundando lenta e placidamente, ano após ano. Nenhuma política eficaz é adotada e os mesmos temas são repetidos anualmente, como o tal Dia da Marmota.

De um lado, a opinião pública italiana celebra os descendentes ilustres, quase sempre norte-americanos. Faz-se “festinha” periódica com Robert DeNiro, Martin Scorsese, Lady Gaga, Ariana Grande, a mulher de Joe Biden etc. Quando famílias norte-americanas obtêm a cidadania italiana sem falar nem buongiorno, os italianos em grande parte acham tudo “uma simpatia”. Estes sim obtêm o reconhecimento por motivos nobres, pois não é por necessidade, mas por genuína e desinteressada vontade. Eles consideram que se um norte-americano ou australiano solicita a cidadania italiana o faz por um ato de deferência, sendo quase um elogio ao brio italiano.

Já aqueles pobres sul-americanos… Estes são aproveitadores de uma lei troppo generosa. Só querem diventare italiani (o erro já começa da ideia de que os descendentes “tornam-se” italianos) para ter mais mobilidade internacional e por motivos puramente utilitaristas. Como eu disse acima, isto em grande parte é verdade, mas a constatação dos dois pesos e duas medidas é gritante. E do incômodo flagrante com esses sudamericani nasceu uma sequência de lugares-comuns e evidências anedóticas.

Na primeira assembleia da quinta consiliatura do Conselho-Geral dos Italianos no Exterior (CGIE), durante seu pronunciamento o subsecretário Giorgio Silli informou ao plenário que os parceiros europeus já haviam sinalizado o problema dessas cidadanias “generosas”. Alguém já leu algum documento sobre essas “sinalizações”? Eu nunca encontrei uma mísera frase. Talvez esses parceiros europeus expressem suas preocupações na pausa para o café e acabem se esquecendo de fazer isso por escrito.

Outra famosa consequência da malfadada lei de cidadania troppo generosa seria a possibilidade sinalizada pelos Estados Unidos de que a Itália poderia ser retirada do Visa Waiver Program, o programa de isenção de visto para permanências curtas a turismo, justamente porque a facilitação seria utilizada de forma “abusiva” pelos inconvenientes ítalo-brasileiros, ítalo-argentinos, ítalo-venezuelanos etc. Novamente, onde está a sinalização?

Estas nada mais são que bravatas usadas como armas de chantagem cujo real objetivo é restringir a possibilidade do reconhecimento da cidadania italiana por parte de ítalo-descendentes. Felizmente para nós ítalo-sul-americanos, aqueles que torcem o nariz para nossa existência até o momento não passaram das bravatas e do negacionismo.

E visto que a palavra “negacionismo” está na moda, vou empregá-la porque se encaixa perfeitamente no tema ora tratado. Quando querem se defrontar com o tema da cidadania atribuída aos descendentes de emigrantes, todos aqueles que até o momento o fizeram negam-se terminantemente a estudar a matéria. E isso ocorre porque estão plenamente convictos que a conhecem à perfeição por algum tipo de “osmose cívica”. Como são italianos “legítimos” preocupados com o aviltamento de sua cidadania, automaticamente – por osmose – tornam-se especialistas no assunto.

Foge-lhes um fato irrefutável que é fruto da legislação italiana sobre cidadania inaugurado pelo Artigo 4º do Código Civil italiano de 1865 e depois reconfirmado em sua plenitude pelos Artigos 1º das leis 555 de 1912 e 91 de 1992, esta última atualmente em vigor. O que determinam estes artigos? Determinam o princípio soberano do ius sanguinis de forma absolutamente incondicional: “é italiano o filho de pai (e depois também mãe) italiano”. Não há nenhuma outra condição além do estabelecimento da filiação na menoridade.

Portanto, os efeitos de todas essas três normas acontecem automática e irrefreavelmente para todos os filhos de cidadão italiano, geração após geração. O procedimento de reconhecimento da cidadania apenas declara, traz ao mundo, um status que já existe e que se formou no nascimento. Os descendentes de emigrantes são italianos de iure desde quando nasceram e foram reconhecidos como filhos pelos seus pais. O procedimento de “reconhecimento da cidadania” recebe a denominação não por acaso. Só se reconhece algo que já existe. A fraseologia é clara: trata-se da “verificação da posse ininterrupta da cidadania italiana desde o nascimento”.

O Estado não “concede” a cidadania, mas a “reconhece”. A atribuição do status civitatis dá-se ao nascer e não como conclusão de um procedimento burocrático. E não sou eu que o digo, mas a própria legislação e todos os juristas que de fato debruçaram-se sobre este tema. Até mesmo os manuais do Ministero dell’Interno o dizem. Basta querer lê-los. A questão é que nossos “cavaleiros da boa cidadania” não querer ler nada, nem aprender nada. Querem resolver algo que lhes é incômodo por meio de bravatas e teratologias legislativas.

E na aparição da marmota deste Ano do Senhor de 2023 não foi diferente. O senador Roberto Menia do partido Fratelli d’Italia, hoje no comando do governo italiano, apresentou este mês um disegno di legge (nº 752) em que pretende resolver o problema que procura definir nestas palavras: cittadinanze concesse a persone nate all’estero che non sono in grado di dire una sola parola in italiano, che non parlano l’italiano da generazioni ed hanno sostanzialmente legami effimeri se non nulli con l’Italia.

Tomei a iniciativa de grifar e sublinhar a palavra que demonstra o desconhecimento da legislação italiana em matéria de cidadania. O Estado italiano não “concede” a cidadania aos descendentes de emigrantes italianos. Como eu disse antes, o status civitatis é atribuído automaticamente por força da lei a todos os filhos de cidadão italianos desde o momento de seu nascimento, com a única condição de que o genitor italiano os reconheça na menoridade.

O senador Menia e tantos outros estão firmemente convencidos de que a possibilidade de obtenção da cidadania está prevista no Artigo 4º da Lei 91/1992, o que é um gravíssimo erro de interpretação, seja da mesma lei, seja da história normativa da cidadania italiana. Uma pessoa descendente de um imigrante italiano chegado ao Brasil ou à Argentina em 1900, é reconhecido de facto cidadão italiano, se tiver menos de 30 anos, pelo Artigo 1º da Lei 91/1992. Se tiver mais de 30, será reconhecido pelo Artigo 1º da Lei 555/1912. E se, num exemplo extremo, um ancião ainda vivo nascido em 1910 solicitasse hoje o reconhecimento de sua cidadania italiana, o artigo que seria chamado em causa seria o Artigo 4º do Código Civil de 1865.

Isso acontece porque tempus regit actum, o tempo rege o ato. Aplica-se a norma em vigor no momento que se verificou o ato. A cidadania é atribuída no nascimento, portanto, vale a lei em vigor no dia do nascimento e não a lei em vigor no dia do procedimento de reconhecimento da cidadania, pois não se trata de uma concessão, mas de uma atribuição.

Outro importantíssimo princípio está presente seja no Código Civil italiano de 1865, como naquele de 1942, ainda hoje em vigor: La legge non dispone che per l’avvenire: essa non ha effetto retroativo (“A lei só dispõe para o porvir [futuro]: ela não tem efeito retroativo”). Todas as mudanças normativas terão efeito para atos futuros, não podendo retroagir para atingir atos jurídicos já concluídos no tempo, como é o caso do estabelecimento da filiação e a automática transmissão da cidadania de pai (ou mãe) para seu filho.

Portanto, a modificação proposta pelo senador Menia, se vier um dia a ser aprovada e sancionada, o que duvido, é absolutamente inócua para os pedidos de reconhecimento da cidadania, pois introduz condições e requisitos num artigo da Lei 91/1992 que trata de uma outra fattispecie (no caso, da cidadania de descendentes de ex-cidadãos italianos que perderam a sua cidadania antes do nascimento dos filhos, não tendo ipso facto nascido de um cidadão italiano).

Para concluir este longo artigo, esta proposta de lei patrocinada por um parlamentar de importância do partido Fratelli d’Italia serve para que possamos ver claramente que a contrariedade ao reconhecimento da cidadania dos ítalo-descendentes existe em todo espectro político italiano, da extrema-esquerda à extrema-direita. Não há quem nos defenda senão nós mesmos. Cabe a nós propormos mudanças de possam acomodar todos os interesses, sejam os nossos como comunidade no exterior, sejam as justas preocupações de grande parte da sociedade italiana.