A proposta anunciada pelo ministro das Relações Exteriores e vice-premiê da Italia, Antonio Tajani (FI), consegue ser, segundo o jurista Marco Mellone, ainda pior que a proposta do senador Roberto Menia (FdI). Enquanto este quer limitar a transmissão da cidadania por direito de sangue na terceira geração, a proposta dos “azzurri” acaba de vez com essa transmissão assim que eventualmente entrasse em vigor. Dentro de cem anos, no máximo, os oriundi simplesmente desapareceriam da face da terra.
A proposta que teria a assinatura de Paolo Barelli (presidente gruppo parlamentar de Forza Italia na Câmara, e Maurizio Gasparri, presidente gruppo parlamentar do mesmo partido no Senado), curiosamente já consta na agenda da Câmara dos Deputados, mas em um arquivo PDF sem o conteúdo do projeto, remetendo a outros textos no Senado.
Um dos poucos detalhes positivos da proposta, segundo Mellone, é o reconhecimento do direito adquirido: quem nascer até a entrada em vigor da nova lei teria direito ao reconhecimento da cidadania iure sanguinis assim como ocorre hoje. O projeto, entretanto, estabelece a dobra dos valores cobrados pelos consulados, além de instituir uma taxa a ser cobrada também pelos municípios.
Além de “extinguir” os oriundos a pretexto de combater o que o ministro chama de “business” da cidadania, uma das consequências funestas seria a criação de outro “business” – o da maternidade, segundo a análise do jurista Marco Mellone, na longa entrevista exclusiva que concedeu a Insieme.
Leia a transcrição da entrevista exclusiva que foi concedida a Insieme pelo advogado Marco Mellone. Para ele, no combate às informações equivocadas que chegam na Itália, os italianos residentes no exterior também precisam fazer seus deveres de casa:
Como é que o jurista está vendo essa proposta?
Desta vez, a proposta vem, não somente de um senador ou de um deputado, mas de um partido do Parlamento Italiano, chamado Forza Itália, que tem mais ou menos dez por cento da força parlamentar, ou seja, um partido que não tem a maioria política no Parlamento. Outros partidos que fazem parte do governo italiano, ao que me parece, não estão de acordo com essa proposta. Na verdade, é ainda um texto com o qual esse partido irá discutir com os outros partidos do governo, da maioria, para, depois, oficialmente apresentar a proposta no Parlamento. Mas vamos comentar essa proposta como se estivesse já no Parlamento italiano.
É uma proposta que, em algumas partes, é mais lógica do que a proposta do senador Roberto Menia, mas tem os mesmos problemas da proposta do senador e, por outro lado, é ainda mais ilógica, ainda mais irrazoável. Essa é a minha consideração geral após ter lido o texto. Se bem que tive somente um dia, para estudá-la.
Vamos por partes porque, na realidade, a proposta abrange não somente a questão do uso do direito dos ítalo-descendentes, mas também outros temas, como a naturalização, ou seja, a aquisição da cidadania por residência no território italiano. E aí a proposta é de introduzir o que foi definido como ius scolae (estamos falando sempre de definições e dos códigos da Itália; falamos sobre uma forma de colocar nomes às regras, mas não temos que focar somente nos títulos porque, muitas, vezes, os títulos das leis e das propostas de lei não refletem verdadeiramente o conteúdo).
A propósito da mudança da lei sobre a naturalização dos cidadãos ou das pessoas que moram já na Itália, mas que ainda não são cidadãos italianos, essa é uma proposta que, para mim, não vai mudar muito a situação atual. De acordo com ela, as crianças, os jovens que já vivem na Itália, após ter completado dez anos de estudo na escola italiana, já podem pedir a cidadania italiana, ou seja, podem pedir praticamente a partir dos 16 anos de idade e a administração italiana tem um prazo de até um ano e meio para dar um retorno. Ou seja, mais ou menos essas pessoas se tornariam cidadãos italianos aos 18 anos.
Mas, na realidade, o que muda (e o que não está escrito nesta proposta) é que esses jovens não irão conseguir a cidadania italiana aos 18 anos por uma razão bem simples que não está escrita na lei, mas que qualquer pessoa juiz ou advogado que trabalha com casos de naturalização aqui na Itália sabe muito bem. O procedimento de naturalização não é um procedimento em que você, como estrangeiro, pede ao Estado italiano a aquisição da cidadania italiana. É uma concessão que o Estado italiano faz. E o Estado italiano, nesse tipo de procedimento, tem uma margem de discricionariedade enorme para dizer sim, ou para dizer não. E pode exigir várias condições, vários requisitos para entender que, realmente, você está vinculado ao Estado italiano.
Entre estes requisitos tem também o requisito de provar ao Estado italiano que o interessado já tem pago impostos no Estado italiano, ou seja, a pessoa já tem trabalhado na Itália pagado impostos ao Estado italiano. Normalmente, a administração pede pelo menos as últimas três declarações de renda do requerente para demonstrar que esse requerente já está trabalhando na Itália, já contribuiu ao Estado italiano. Se você for na internet, no próprio site do Ministério do Interior italiano, pode simular um pedido de naturalização online (porque é um procedimento online), e verá que tem uma parte em que o sistema eletrônico vai pedir para você a apresentação eletrônica das últimas três declarações de renda na Itália.
Isso faz com que um jovem, aos 18, 19 anos, não tenha ainda três anos de trabalho completado. Porque é muito complicado trabalhar aos 16, 17, 18, 19 anos. Inclusive devem ser declarações já com um bom dinheiro ganho durante o ano. Nós estamos falando mais ou menos de mil, mil e duzentos euros por mês. Então é muito complicado ganhar este dinheiro aos 19, 20, 21, 22 anos. Isto faz com que normalmente os pedidos de naturalização só sejam apresentados a partir de 24, 25, 26, ou mesmo 27 anos. Porque essa é a época em que, normalmente, os jovens italianos entram definitivamente no mercado de trabalho e começam realmente a ganhar algum dinheiro.
Então isso não está escrito na proposta. O pedido pode ser feito perante a administração mas isso faz com que a idade em que a pessoa pode, real e concretamente, adquirir a nacionalidade italiana não é aos 18 anos, mas muito mais à frente. Então eu acredito que nesta parte relativa à naturalização não vai mudar muito, porque a proposta não enfrenta as verdadeiras questões relativas à possibilidade concreta para um jovem estrangeiro ter a nacionalidade aos 18, 19 anos, quando a cidadania começa a servir. Porque a cidadania, ou seja, os direitos relacionados à cidadania italiana realmente são relevantes e começam a ser realmente importantes a partir dos 18, 19 anos. Quando uma pessoa é ainda menor de idade, a cidadania é menos importante. Pode ser importante por alguns motivos, porém, não é tão relevante como quando uma pessoa se torna maior de idade.
Então, essa é, em termos gerais, a minha opinião sobre a questão da naturalização, das possíveis mudanças sobre a nacionalidade, a adequação por residência no território italiano.
Depois vem a parte relativa à mudança burocrática de impostos ou de taxas que o requerente deveria pagar para apresentar o pedido de reconhecimento da cidadania italiana, que pode ser até de 600 euros. No geral, não discordo do fato que os Oficiais de Estado Civil italianos e os comunes deveriam ter mais recursos financeiros para enfrentar a grande demanda de serviços relacionados à cidadania italiana. Porém, aqui não estamos falando da apresentação de um pedido de reconhecimento da cidadania italiana.
O artigo 2 fala de “domande di riconoscimento della cittadinanza italiana”, ou seja, pedidos de reconhecimento da cidadania italiana. Na realidade, quando alguma pessoa pede a um comune italiano o reconhecimento da cidadania italiana, tecnicamente, o que ele pede não é o reconhecimento, mas a transcrição da sua certidão de nascimento nos registros italianos, que é coisa diferente.
Só que, implicitamente, o Oficial deve também reconhecer a cidadania para poder transcrever esse documento. Então, tecnicamente esta proposta não é muito correta, porque, na realidade, não estamos falando de pedidos de reconhecimento, mas de transcrição de documentos. Além disso, o artigo 2 desta proposta também não cita o Código Civil de 1865, que é um dos dispositivos que fazem com que, hoje, os descendentes de quinta ou sexta geração tenham direito ao reconhecimento da cidadania italiana.
Então digamos que tem algumas coisas que, tecnicamente, não são muito corretas, como muitas vezes acontece com esse tipo de proposta.
Em geral, não estou de acordo com o pagamento de um imposto para pedir o reconhecimento de um direito que existe por lei. Já não estava de acordo com os 300 euros consulares. E aqui chegaram até os 600 euros, que é ainda pior. E tem também diferença de imposto se o requerente for apresentar o pedido no comune ou em um consulado. Tem também esta diferença entre os vários pedidos de cidadania italiana. Então eu acredito que neste caso vai ter ainda muita discussão sobre a aplicação desse imposto, e isso é o resultado desta grande discussão, hoje, sobre o trabalho que tem os comunes italianos e que geralmente pedem recursos e mais tempo para cuidar de todos os casos de cidadania italiana. Essa proposta de mudança, para mim, é o resultado desta grande discussão que está existindo hoje na Itália sobre o trabalho administrativo. Esses são o outros dois pontos da proposta de mudança da cidadania italiana.
O que interessa mais aos ítalo-descendentes é a proposta de modificação do ius sanguinis e do artigo número um do texto que foi distribuído pelo próprio partido Forza Itália e que se refere às modificações do ius sanguinis.
Antes de comentar este texto da proposta, quero falar também sobre outra coisa: os jornais italianos comentaram a proposta do partido Forza Itália. O Corriere della Sera, que é o jornal mais importante na Itália, dedicou duas páginas ao tema. Só para dar uma ideia de como esse tipo de temática é considerada aqui na Itália: Noventa por cento do conteúdo dessa matéria do Corriere della Sera, e também dos outros jornais italianos, focavam sobre a proposta de modificação do procedimento de aquisição da cidadania por naturalização, ou seja, do ius scholae. Pouquíssimo espaço foi dedicado à possível mudança do ius sanguinis. Isso é muito engraçado. Por que? Porque sabemos que hoje 90 ou 95% dos cidadãos italianos são cidadãos italianos por ius sanguinis e não por naturalização. Só que aqui na Itália se fala principalmente sobre a naturalização, sobre a aquisição da cidadania por naturalização. E quando se fala em ius sanguinis, infelizmente, fala-se sobre o fato de que muitas vezes os descendentes somente se aproveitariam de uma lei generosa para se tornarem cidadãos italianos. Então, é um problema midiático importante.
Dito isso, vamos enfrentar a questão da proposta de possível mudança do ius sanguinis.
Antes eu estava dizendo que esta proposta tem algumas coisas que são mais lógicas em relação ao projeto Menia. E são dois os aspectos que fazem mais sentido em relação ao projeto Menia. Primeiro, a proposta respeita o princípio de evitar os casos de apatridia, ou seja, de deixar uma pessoa sem cidadania. Trata-se de um princípio internacional, e a Itália também faz parte de tratados internacionais que procuram evitar este estado de apatridia, que é uma situação muito complicada. Isto porque a proposta de lei fala que este novo critério que se pretende de alguma forma introduzir não se aplica quando a pessoa não tem outra cidadania à disposição. A proposta reduz, mas não elimina, os casos de apatridia (e depois vou explicar o porquê). Então, reduz muito os casos de apatridia que, na proposta Menia, eram muito frequentes. Mas não os elimina completamente (e depois também vou explicar o porquê).
O segundo ponto em que essa proposta é melhor do que a de Menia está no fato que, pelo menos de acordo com as “Notas”, essa [mudança] não seria retroativa. Porém, também aqui é uma coisa que está em uma nota da proposta e, então, não é uma coisa oficial (quando você apresenta uma proposta no Parlamento, tem uma parte inicial que é um resumo, uma introdução). Mas, de qualquer forma, está escrito que [a mudança] não é retroativa e vamos ver se isso vai ser colocado na proposta oficial. Se for assim, claramente já é um ponto importante, porque esta possível limitação do ius sanguinis se aplicaria somente para as pessoas que ainda não nasceram. Então a todas as pessoas que até hoje já nasceram se aplica a lei atual, que não prevê nenhum tipo de limitação.
A propósito de apatridia, só para completar a parte relativa aos possíveis pontos positivos desta proposta: Quando eu dizia, antes, que não elimina completamente a apatridia e, por conseguinte, a razão porque o status de apátrida, ou seja, de pessoa que não tem nenhuma cidadania, é uma coisa que deve ser demonstrada. Não existe um certificado internacional que você pede a qualquer autoridade que diga que você não tem nenhum tipo de cidadania.
Então, quando uma pessoa nasce, para demonstrar que essa criança não tem nenhum tipo de cidadania, é necessário demonstrar isto para o Estado italiano, para que os italianos possam entender que esta criança não tem nenhum tipo de cidadania e, portanto, possa atribuir-lhe a cidadania italiana. É uma condição que precisa ser provada, e não é fácil. Inclusive você pode pedir a um juiz que reconheça o status de apatridia. Então, até que você não demonstre ao Estado italiano ser apátrida, de acordo com esta proposta, não vai ter atribuída a cidadania italiana pelo ius sanguinis. Esse é um problema que, caso esta lei passe, pode ocorrer na prática.
Dito isto, então, a apatridia e a não retroatividade, que são os dois pontos em que a proposta é melhorativa, o resto é ainda pior do que a proposta Menia. Por quê? Porque a proposta Menia dizia, mais ou menos, o seguinte: se o seu pai, se o seu avô, seus avós, bisavós não nasceram na Itália, você, última geração, para de ter ou recuperar a cidadania italiana, deve vir aqui na Itália, morar um ano na Itália, certo?; deve obter uma constância de conhecimento da língua italiana, fazer o pedido e obter a cidadania italiana. Isso, mais ou menos, dizia a proposta de Menia.
Os requisitos que Menia pedia a pessoas que nasceram após a terceira geração fora da Itália eram requisitos mais lógicos do que os colocados agora, porque o morar na Itália um ano e o falar italiano são duas coisas que poderiam ser vinculadas à ideia de nacionalidade, de vínculo com o território italiano. Aqui você fala outra coisa: se o seu pai, avô, bisavô não nasceram na Itália, você, para demonstrar que ainda é italiano, deve nascer na Itália. Só que o nascimento na Itália é um evento completamente casual.
É um evento que tem um relacionamento com a nacionalidade italiana muito menor, muito mais fraco do que morar um ano na Itália ou falar a língua italiana. É um evento casual e, portanto, muito mais ilógico, irrazoável não atribuir, na hora do nascimento, a cidadania italiana a uma criança só pelo fato de que esta criança não nasceu no território italiano. Por esta razão é muito mais ilógica esta proposta em respeito à proposta de Menia.
Além disso ela tende, de alguma forma, a misturar dois princípios que, pelo que eu saiba, nunca, ou quase nunca, são aplicados de forma cumulativa. Ou seja, ius sanguinis e ius soli, juntos. Duas condições diferentes. Ter nascido de pai ou de mãe italianos e ter nascido também na Itália. Por que os outros Estados nunca, ou quase nunca aplicam cumulativamente esses dois princípios? Porque são dois princípios que entram em conflito entre si, em conflito filosófico. Por quê? Porque a filosofia do ius sanguinis é muito simples. O Estado italiano diz: Você, pai ou mãe, possui os princípios e os valores relativos a esta comunidade e, salvo melhor juízo, são as pessoas que podem transmitir esses princípios para a criança. Por quê? Porque, claro, vocês fazem nascer e crescer uma criança. Então, na educação vão transmitir esses valores, esses princípios.
Aplicando também o requisito do ius soli ao ius sanguinis, você praticamente vai contradizer o que você fala diz do ius sanguinis. Porque é o mesmo que dizer: não é suficiente que você pai, você mãe, sejam italianos, sejam nacionais. Vocês possuem os valores e princípios, mas é necessário também que a criança tenha que nascer no território nacional. Então são princípios em conflitos.
Além disso, existem outros conflitos, outras coisas tecnicamente erradas quando se acumula esses dois princípios. Por quê? O ius sanguinis funciona da seguinte forma: tem um sujeito que é o pai ou a mãe, que tem a cidadania e que tem capacidade de transmitir a cidadania para o filho. Certo? Dizendo que o filho não nasceu na Itália e, então, não recebe a cidadania, o que acontece? Você, Estado, vai introduzir praticamente uma forma de incapacidade da criança de receber, através do pai ou da mãe, um direito, que é o direito à cidadania italiana. Porque o pai permanece italiano. De acordo com esta proposta, o pai ou a mãe permanecem italianos e também permanece a capacidade dele ou dela de transmitir a cidadania. Tanto é que, se o filho, nasce na Itália, sim, seria considerado italiano. Então o que iria mudar esta proposta? Iria mudar a incapacidade do menor, da criança, de receber este direito, por ter nascido fora do território nacional.
E aí vem outras aporias, outras coisas que não fazem sentido, porque não é o filho que escolhe onde nascer, não é o bebê na barriga da mamãe que escolhe o lugar de nascimento, não é? Então acontece que o filho paga por uma ação do pai ou da mãe, porque são os pais que escolhem onde o filho nasce. Certo? E neste caso, a criança não somente paga por causa, entre aspas, dos pais, mas paga também por causa dos avós, dos bisavós, dos trisavós que escolheram, por sua vez, o lugar de nascimento dos respetivos filhos.
Há outras coisas tecnicamente muito erradas, porque você, com esse tipo de proposta, faz com que não se atribua, na hora do nascimento, a cidadania, não a um adulto, mas a uma criança, ou seja, a um bebê, a um menor de idade. E um menor de idade, como estava dizendo antes, primeiro não exerce todos os direitos e deveres relativos à cidadania. A cidadania de um menor de idade é atenuada, porque não vota, não pode ser votado, não trabalha, não paga impostos. Uma criança é uma criança, sem novidades. Você está eliminando um direito de uma criança que, inclusive, está pagando por uma ação de outra pessoa. E, em geral, é sempre extremamente perigoso não atribuir, ao nascer, a cidadania a uma criança pelo critério principal estabelecido pelo ordenamento jurídico, neste caso o ius sanguinis. Isto porque claramente faz com que a criança não esteja com a cidadania italiana enquanto os pais, neste caso, poderão estar e estarão com a cidadania italiana. Então, na mesma família teremos os pais com a cidadania e o filho, ou os filhos, sem cidadania.
Isso vai criar outros problemas, porque, imagina se, por exemplo, essa família permanecer morando na Europa, em um país da União Europeia: os pais são europeus, são italianos e, então, podem transitar tranquilamente; o filho, por não ter nascido na Itália, de acordo com esta proposta, não nasce italiano. Então, na mesma família que mora na Europa, temos duas pessoas que podem permanecer porque são cidadãos europeus, e o filho ou os filhos não nascem italianos na Europa, então nem poderiam ficar no território europeu, sempre claramente admitindo que o país europeu onde nasceu não aplique o ius soli, mas aplique somente o ius sanguinis, e os pais não têm a cidadania desse outro país da União Europeia. Então, isso criaria também problemas não somente com o direito italiano, mas também com o direito europeu. E conforme eu já expliquei várias vezes, também o direito europeu aqui é muito importante.
Então, para fazer um resumo da minha opinião sobre este texto, digo que se trata de mais uma proposta que é bastante superficial, como era o projeto Menia. Tem coisas que são mais lógicas, mas tem coisas que são ainda piores do que o projeto Menia. É outro exemplo de proposta que foi influenciada por uma situação específica que sabemos ser a situação dos ítalo descendentes no continente americano. Essa, em geral, é minha opinião.
Essa proposta, claro, ainda não entrou no Parlamento, é de um partido que apoia o governo. Temos lá, como o senhor citou, a proposta do senador Menia. Elas podem ser juntadas, agregadas, se esse assunto prosperar. Eu perguntaria: tanto aquela, com todos os defeitos que já foram apontados, quanto esta, admitindo-se que isso vá para a frente, como é que a Suprema Corte, depois dos julgamentos mais recentes sobre a questão, veria isso?
Primeiro, há um procedimento parlamentar. Uma proposta de lei desta natureza normalmente demora muito tempo para eventualmente ser aprovada. Não é uma lei que pode passar de um dia para outro. Bom, tecnicamente tudo pode acontecer, porém, normalmente de acordo com a experiência legislativa italiana é um processo que demoraria bastante tempo antes de ser, eventualmente, aprovada.
Você citou a Suprema Corte. Imagino esteja fazendo referência à Corte di Cassazione, que é a Suprema Corte italiana. Mas eu acredito que se esta lei passasse, o primeiro órgão jurisdicional que seria imediatamente chamado seria a Corte Constitucional italiana. Porque é uma lei que, pelas razões que estava dizendo antes, ambos os projetos teriam imediatos motivos para ser considerados inconstitucionais por irrazoáveis. O critério de uma lei ser irrazoável é um critério constitucional não escrito expressamente na Constituição, mas, de acordo com a jurisprudência da Corte Constitucional italiana, é um critério que foi elaborado pouco a pouco pela própria Corte.
Ou seja: uma lei deve ter um objetivo e, para chegar a esse objetivo, os meios que o legislador utiliza devem ser proporcionados de forma razoável. Se não tem essa relação entre o objetivo, entre input – diriam os ingleses – e output, ou seja, o objetivo e os meios que você utiliza para chegar a esse objetivo, uma lei pode ser considerada não constitucional ou não razoável. E então, se passasse, claramente teria a possibilidade de subir à Corte Constitucional.
Neste projeto, a vantagem, entre aspas, é que essa proposta não teria efeitos imediatos, negativos, como ocorria com o projeto Menia ou possivelmente outros que pretendiam também ser retroativos de alguma forma. Porque claramente os primeiros destinatários desta lei, ou seja, as primeiras pessoas que seriam vítimas, digamos entre aspas, desta proposta, seriam as pessoas que ainda devem nascer e que serão ainda menores de idade, e que serão afetadas de uma forma menor.
Teríamos então até o tempo técnico para nós, juristas, ir imediatamente à Corte Constitucional e pedir um pronunciamento, uma decisão sobre a legitimidade ou não desta lei. Digamos que, nesse sentido, se realmente esta “Nota” – que acredito seja a parte mais importante desta proposta – que fala que não vai ser retroativo, for parar no texto da lei, este elemento faz com que haveria um tempo útil para eventualmente pedir uma declaratória de ilegitimidade desta lei que, para mim, repito, tem muitos motivos para ser considerada não razoável e, portanto, ilegítima.
A proposta tem um claro endereço político. Ela já nasce no bojo de um grande debate acerca da naturalização dos imigrantes, incluindo até a possibilidade de um referendo sobre o tema. Não vamos falar em xenofobia, mas ela também nasce na sequência de pronunciamentos contra latinoamericanos, exatamente formados pela maior carga atirada ao mar na grande imigração. Isso transmite para a gente a ideia daquela parte italiana que é contra uma Itália diaspórica. Seria um passo nesse sentido? Alguém já calculou que, com essa proposta, dentro de 100 anos ninguém mais seria italiano no exterior, além daqueles que, momentaneamente, estivessem fora da Bota. Esse não é um sinal preocupante, Dr. Mellone?
Eu concordo com esse cálculo, porque, de acordo com estatísticas, dentro de 100 anos, se esta lei passasse, realmente acabariam os ditos oriundi, ou seja, os ítalo-descendentes, o que é uma coisa que me parece absurda e não justa. Eu acredito que não será assim, porque outro efeito indireto desta lei, se ela passasse, seria o imediato “business” dos partos na Itália. Quer dizer, amanhã mesmo a Itália se tornaria como os Estados Unidos onde, tudo mundo sabe, existe um “business”. Fazem nascer as crianças nos Estados Unidos para pegar imediatamente a cidadania americana. Muitos meus amigos fizeram isto.
É um “business” em que você fica mais ou menos quatro, cinco ou seis meses, tem um acordo de trabalho, residência clínica privada, realiza os trâmites, os documentos burocráticos necessários… É um “business”, só para dar uma ideia, de mais ou menos uns dez, 15.000 euros por operação, pelo menos. E aí vai começar também na Itália este “business”, que será baseado no dinheiro, isto é, não todos poderão fazê-lo, mas haverá um outro “business”. Esse é outro aspecto absurdo desta proposta de lei. Mas repito, hoje todo mundo sabe que muitas pessoas fazem, muitos europeus fazem como Estados Unidos e existem agências que propõem esse tipo de serviços. Basta ir na internet para saber.
Então é outro efeito indireto absurdo deste tipo de proposta, que pretende resolver uma presunta problemática, mas cria outra.
Sobre uma possível xenofobia: acho que a Itália não é um país racista. Eu acho que a Itália não é um país xenofóbico. Porque o racismo e xenofobia são duas coisas bem claras, muito mais graves. A Itália é um país ignorante. Racismo, para mim, é o que está no famoso filme “Livro verde” (Green Book), que retrata os Estados Unidos da América nos anos 50 e 60, com pessoas pretas por um lado, e pessoas brancas por outro lado. Isso é racismo para mim, pelo menos. Mas basta que você vá ao estádio para ver um jogo de futebol aqui na Itália num domingo, e verá pessoas que torcem para oriundi, esquecendo completamente da cidadania desse jogador de futebol ítalo-brasileiro. A coisa importante é que ele marque um gol. Então, só para dar uma ideia de coisas diferentes, racismo e ignorância. A Itália é um país muito ignorante, tanto na história como, também, juridicamente. Essa é uma coisa pior.
Na semana passada, eu estava lendo um artigo de um famoso professor de Direito Constitucional na Itália, que escreveu um artigo no Corriere della Sera, dizendo outra vez que a presença de todos estes “oriundi” é um possível perigo para a democracia na Itália. Esse professor esquece completamente que, se um dia passar a reforma da Constituição que prevê a eleição direta do primeiro ministro, os ítalo-descendentes que não moram na Itália podem eleger só até 12 representantes no Parlamento italiano. E esse número não vai mudar, mesmo que a população italiana fora da Itália fosse 60 milhões. Isso porque está escrito na Constituição italiana. Inclusive, mesmo que a reforma Meloni sobre a eleição direta do primeiro ministro passasse, mesmo naquele caso, a presença de 50, 60 milhões de italianos que moram fora da Itália não iria modificar a situação porque, em todos os casos, o primeiro ministro deve obter a “fiducia”, a confiança, do Parlamento, e os italianos residentes fora da Itália vão eleger sempre até 12 representantes. Doze de 600. Então, é um número bem menor comparado ao número de italianos hoje residentes fora da Itália, onde existem mais ou menos entre cinco e seis milhões de pessoas inscritas no Aire, que podem votar.
Os eleitores que moram na Itália são 50 milhões. Os eleitores, fora as crianças. Então, os eleitores fora da Itália representando 10% dos eleitores italianos podem eleger só 2,5% dos parlamentares, no total. Isso faz com que o poder eletivo dos italianos que moram fora de Itália seja quatro vezes menor do poder de eletivo dos italianos que moram na Itália. Esses são números. É aritmética, é matemática. Então, já hoje, pela Constituição italiana, um italiano que mora fora da Itália não tem o mesmo poder efetivo, de incidir sobre o resultado final de uma eleição, comparativamente ao poder que tem um italiano na Itália.
Então tem muita desinformação, inclusive no ambiente acadêmico, no âmbito jurídico. E por essa razão, parabenizo os colegas Mônica Restanio e Giovanni Bonato que organizaram importante evento no Parlamento Italiano, na Câmara dos Deputados. Espero que a gente possa levar para os parlamentares italianos, e também para os membros do governo, algumas informações e sugestões corretas.
O senhor, inclusive, vai participar também desses encontros e nós vamos transmitir isso ao vivo. Gostaria que o senhor abordasse sobre esse viés da proposta que tenta atribuir alguma remuneração para os municípios italianos. Hoje, em função de não receberem nada e pelo acúmulo de trabalho, estão de fato colocando uma nova tranca na roda da cidadania, com o problema das transcrições, um verdadeiro gargalo. A proposta está abrindo para a remuneração também desse serviço. Isso aí, isoladamente, me parece que seria alguma coisa interessante, mesmo ela não entrando no campo das transcrições que são determinadas pela via judicial, nem pela via consular…
Como já disse antes, para mim, em geral, quem pede o reconhecimento de um direito que está escrito na lei e na Constituição não deveria pagar nada. Vamos começar por esse princípio.
Exatamente. Eu emendo a pergunta: de repente está havendo uma elitização, uma monetização do direito, quem tem mais dinheiro tem mais direito, né?
Isso se alinha formalmente. Se você tem um direito tão importante na sua vida, você não deveria pagar nada para que o Estado italiano simplesmente possa reconhecer esse direito. Claro, você deve demonstrar com toda a papelada, os documentos, que também têm um custo, sabemos. Mas o Estado italiano não deveria cobrar. Até porque, por exemplo, quando eu nasci e fui inscrito como cidadão italiano, os meus pais não pagaram nada para a minha certidão de nascimento, para que eu pudesse ser cidadão italiano, entendeu?
Então é uma coisa de algo que realmente não é muito lógico. E sabe, na minha opinião, o problema não é tanto os 300 ou 600 euros, mas que este tipo de serviço não deveria estar mais nas mãos dos Oficiais de Estado Civil de cada comuna italiana, nas mãos dos 8100 Oficiais de comunas diferentes na Itália; deveria estar nas mãos de uma entidade central, no Ministério do Interior, que pudesse fazer um serviço centralizado com as mesmas regras previsíveis. Até porque, em Roma, no Ministério do Interior – pode acreditar – existem todos os recursos econômicos e humanos para enfrentar este tipo de demanda, de fluxos de demanda e tudo o mais.
É verdade, nos comunes não existem recursos, tanto humanos quanto econômicos. Os comunes são entidades muito pequenas e que fazem muitas outras coisas. Então, não é lógico deixar nas mãos deles esse serviço. Inclusive porque a cidadania é uma questão nacional. Não é uma questão de um comune, não é uma coisa relacionada a uma cidade. A Itália não é mais a Itália de comunes, como em 1400, quando existiam tantos pequenos estados-cidades, digamos assim. Agora a Itália é uma; tem uma administração central e, para esse tipo de serviços nacionais, deve intervir a administração central.
E sobre os 600 euros… Hoje, um estrangeiro que pede a cidadania por naturalização não paga 600 euros. Ele paga 200, 300 euros. Como explicar isso? Um descendente de italiano pela lei paga muito mais do que um estrangeiro? São coisas que não fazem sentido, entendeu?
O “business” que é condenado na mão de terceiros pelo próprio ministro, agora passa a ser praticado pelo Estado. Como é que é isso?
É um descaramento. O Estado cobra porque, claramente, o Estado, se pode, sempre vai cobrar. Porém, pode acreditar, em Roma, nos ministérios, não faltariam recursos tanto econômicos quanto humanos. E o problema é que a administração em questão é o Ministério do Interior, que é uma administração que nos últimos 20, 30 anos, na realidade, nunca mostrou grande interesse em administrar de forma eficaz, concreta, a matéria da cidadania, que é uma matéria muito, muito importante. Então, essa é a problemática principal. E, de alguma forma, deixa aí os comunes, os Oficiais na frente do problema. E a solução dos 600 euros não vai ser uma grandíssima solução, repito, porque os problemas da gestão do Serviço da Cidadania irão permanecer. Quem sabe, cobrando, poderia ser mais rápido, né? Mas essa não é a solução. Ou seja, o tempo não é o único problema. A duração dos procedimentos não é o único problema que existe na área da cidadania italiana, como nós sabemos muito bem. É absurdo o que sai da cabeça de algum funcionário administrativo.
Antes de passar para as considerações finais, eu queria ainda fazer uma pergunta, que é a que todo mundo faz quando surgem esses fatos. Estamos diante de fatos novos que se repetem, agora com essa veste de que serem iniciativas de partidos da coalizão, tanto no projeto Menia quanto neste de Forza Italia. Embora a presidente Meloni tenha até se manifestado contrária a uma nova lei da cidadania, e também embora o senhor já tenha dito, eu perguntaria: O senhor acredita mesmo que essas iniciativas, dessa vez, possam lograr algum êxito no Parlamento?
A partir de quando saiu a notícia desta nova proposta, o pessoal começou, como sempre, um grande debate. Vai passar? Não vai passar? Vai ser aprovada? Eu acho que sim, eu acho que não. Isso acontece sempre quando sai esse tipo de notícia. A política é imprevisível por definição. Mas acredito que, por muitas razões políticas, não existe o perigo de que esta proposta, principalmente como está hoje, possa passar amanhã e nem no próximo mês, ok? Porque existem muitas condições políticas que precisam se juntar. E tem também certos tempos e passos legislativos a serem superados. Então não é uma coisa que vai acontecer amanhã. Porém, claro, comparado à situação de dois anos atrás, já temos muitas propostas diferentes que pretendem limitar ius sanguinis.
Temos sempre que pensar no porquê hoje temos todas estas propostas e todas essas iniciativas. Existe uma causa que não é somente o incremento das demandas de cidadania italiana, mas principalmente outro fator, ou seja, a percepção, aqui na Itália, do fenômeno do reconhecimento da cidadania italiana, principalmente do mercado dos serviços de cidadania italiana. Este é o principal problema, a principal causa pela qual depois estes políticos fazem esse tipo de propostas. Porque você pode ter direito absoluto. Você tem, os descendentes têm. Mas enquanto existir um fenômeno de venda que aumenta, tão exposta, no serviço da cidadania, e sem regras (porque hoje pela internet realmente existe um mercado absolutamente sem algum tipo de regra e de ética), é claro que a opinião pública italiana pode ser contrária, os políticos continuarão fazendo este tipo de propostas e, antes ou depois, alguma proposta será aprovada, porque quando tem pressão da opinião pública, quando tem pressão política, o Parlamento pode também aprovar, e de forma rápida, alguma proposta de lei.
Então seria muito importante trabalhar neste aspecto, ou seja, trabalhar na justa percepção do fenômeno e eliminar todos os fenômenos antiéticos relativos à cidadania italiana. Porque os serviços de assessoria na cidadania italiana são serviços legais. Ou seja, assessorar uma pessoa sobre a cidadania é legal, mas fazer passar a mensagem que se trata de uma venda, de um serviço que pode ser feito sem regras num mercado sem algum tipo de limite, é o que faz as pessoas pensarem: vamos colocar algum tipo de limite na lei. Então, nós, juristas, com certeza, se alguma lei passar, vamos fazer as batalhas necessárias para que tudo esteja dentro da Constituição, dentro da lei. Porém, é verdade que também a comunidade de ítalo-descendentes, devem fazer as suas tarefas de casa. Porque aqui na Itália está sempre, cada vez mais, chegando uma imagem não correta da comunidade de italo-descendentes.
Numa recente “4Chiacchiere Insieme” surgiu a ideia fazer nascer, na comunidade italiana no exterior, propostas de auto-regulação da perda do direito e da reaquisição da cidadania italiana. Já se fala nisso. Algo como a perda em caso de desinteresse durante longo tempo; desligado, você teria que cumprir certas regras para a reaquisição. Dr. Meloni, eu quero lhe agradecer imensamente a sua paciência de sempre ao estar explicando aqui para nós essas iniciativas, esse debate que é quase continuo aí na Itália, no Parlamento. E deixo a palavra livre para suas considerações finais.
Muito obrigado pelo espaço que você dá, que é muito importante. Minhas últimas considerações vão para o evento do dia 18 de outubro, que vai ter lugar no Parlamento italiano, porque será um evento muito importante. Vamos falar diretamente com os parlamentares ou, pelo menos, na casa dos parlamentares italianos, na Câmara dos Deputados. Parabenizo os colegas que organizaram este evento que, pelo que eu saiba, é o primeiro em que se fala de cidadania italiana iure sanguinis no Parlamento, na Câmara dos Deputados, com a presença de juristas que trabalham na área da cidadania italiana. Isso é muito importante. Inclusive a Revista Insieme irá transmitir este evento. Então convido a todos a participar também online, até porque todos estamos trabalhando para apresentar argumentos efetivos e importantes, tanto de um lado midiático, quanto de um lado jurídico a alguns parlamentares, à opinião pública italiana, para que este fenômeno possa ser percebido de forma diferente daquela que vemos quase todos os dias aqui na Itália, nos nossos jornais.
Este evento terá a participação de juristas que são professores de direito constitucional italiano, que será a área em que um dia poderá ter lugar uma batalha, caso esta proposta ou outras propostas passem. Porque a palavra final será da Corte Constitucional italiana, caso um dia uma lei limite o ius sanguinis – uma matéria intrinsecamente constitucional. Então, a participação de professores de direito constitucional é muito importante. Inclusive a participação também do professor Bonetti, que foi o professor que, em Padova, defendeu o direito dos ítalo-descendentes. Acredito que estamos, pelo menos nesse lado, no bom caminho. Claro que é necessária a participação total da comunidade italiana e é preciso também cuidar de muitos outros aspectos midiáticos de apresentação do fenômeno. Porque, caso contrário, este trabalho que estamos fazendo aqui na Itália não vai ter efeitos.