“O segredo para chegar aos cem anos é não morrer”. Assim ‘nonno’ Martini brincava com a própria longevidade na tarde do dia 7 de maio último, em sua casa, em Guaramirim-SC. Ao lado da esposa e cercado pelos sete filhos, completamente lúcido, durante quase duas horas sem interrupção, ele registrou em vídeo sua história secular, recheada de fé, humildade e de trabalho duro na roça já a partir dos cinco anos de idade, seis dias por semana, ano após ano.
Ludovico Martini lembrou de tudo ou quase, como num filme: mergulhou em tempos distantes, ainda de seus avós, de seus pais, intercalou momentos de reflexão e de grande loquacidade. Seus dias eram longos – contou. Iniciavam sempre bem antes do sol nascer e às vezes iam para além de ele se por. Mesmo aos domingos, madrugava para chegar em tempo, sempre a pé e através de picadas em meio ao mato, na igrejinha mais próxima antes do horário da missa… Agora, mesmo que perceba o final próximo, quer mais tempo: precisa seguir cuidando de Erondina, “essa italiana” de acento mantovano, eterna namorada com quem casou há 72 anos. A paciência, diz, é outro segredo da convivência. E “ela precisa de mim, assim como eu dela!”
Reza todos os dias a oração dos justos e agradecidos, mas certamente não esperava um acidente de percurso: Pouco mais que duas semanas depois da nossa entrevista ele baixou hospital, infectado pela Covid-19. Sobreviver dependia do sucesso de muitas coisas, especialmente de um delicado procedimento cirúrgico para limpeza de um pulmão cheio de líquido que lhe prejudicava a respiração. A luta foi dura, mas ele, quase num milagre, outra vez resistiu. No dia 5 de junho, faltando doze dias para o aniversário, era recebido em casa, de volta, sorridente, calmo e agradecido como sempre. De fato, não era só uma brincadeira: chegar ao dia 17 de junho, dia de seu centenário, dependia basicamente de não morrer…
Um resumo da história de ‘nonno’ Martini foi escrito por seu primeiro filho, Antônio, ex-seminarista, na edição 263 da revista Insieme. No vídeo que acompanha esta matéria, agora estão as lembranças centenárias, contadas na primeira pessoa, desse descendente de imigrantes trentinos que, oriundos do vilarejo de Cunevo, aportaram nas inóspitas terras de Luiz Alves na década de 70 do século XIX. Da hoje “capital da cachaça” que ajudou a construir, Martini guarda vívidas lembranças, inclusive do inusitado desjejum diário, sempre por volta das 4 horas da manhã, feito à base de garapa esquentada com uma dose do destilado de cana numa cuia (“porque não tinha xícara”), bebida que chamava “mãe com a filha” (garapa com cachaça). Sim, cachaça como remédio, nunca como vício.
Trabalhar faz parte da vida. Mesmo agora que praticamente não mais trabalha e a maior parte do tempo é consumido em intermináveis partidas de baralho com Erondina (às vezes com algum filho), do outro lado da rua, bem diante de sua casa, há uma pequena roça de aipim por ele plantada, cuidada, capinada e… colhida. A amigos tem o prazer de oferecer tubérculos descascados e conservados na geladeira. Plantar e arrancar aipim foi a primeira atividade de sua longa vida.
‘Nonno’ Martini, conhecido por muitos na cidade, mas igualmente no interior de Massaranduba onde também viveu parte de sua longa existência, não lembra de inimigos. Ao cabo de cem anos vividos, olhando para trás, o que não gostaria de fazer de novo? “Não gostaria de fazer o que não faço e nunca fiz: mal às pessoas!” Pelo contrário, se alguém demonstra alguma diferença com ele, é candidato certo a se tornar personagem especial em suas orações que, à moda antiga, são constantes, diárias e repetidas, mesmo que não mais se ajoelhe para rezar o terço, como nos antigos tempos, hábito de família trazido da velha Itália.
Reclamar da vida? É preciso ouvir sua narrativa com muita atenção. Naquele tempo de interior quase um deserto verde não tinha luz ou energia elétrica. Consequentemente, nada dessas facilidades hoje obrigatórias na vida de cada um: do rádio à televisão; do telefone a qualquer outro objeto eletrônico. Não tinha automóvel. Estradas eram picadas, quando muito, carroçáveis. Nem parteira existia. Alguém com alguma prática fazia as vezes da cegonha, como, por exemplo, uma vizinha mais experiente ou sua própria avó. Mas ‘nonno’ Martini, o mais velho de doze irmãos, tem orgulho de dizer que serviu o Exército brasileiro. Por longo tempo ficou de prontidão no litoral de Santa Catarina aguardando para lutar no teatro italiano da II Guerra Mundial. Felizmente não precisou atravessar o oceano.
Que significado tem o dinheiro e os bens materiais para alguém como ele? O sentido essencial de sua existência centenária está na própria família: “A maior alegria que a gente tem na vida é quando a família está reunida e todos se dão bem. É uma coisa muito bonita. Não tem coisa melhor que a paz da família”.