Museu Oscar Niemeyer apresenta grande retrospectiva da obra de Guido Viaro

u CURITIBA – PR – A maior exposição já realizada da obra do italiano Guido Viaro está à disposição do público até o dia 4 de março de 2007 no Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba. A mostra, intitulada “Guido Viaro – Um visionário da arte”, aberta no dia 29 de novembro último, reúne mais de 200 peças, incluindo pinturas, desenhos, gravuras e esculturas, integra um grande projeto de resgate da produção do artista.

“O Medo”, “O Homem sem Rumo” e “A Polaca” são algumas das obras-primas presentes na exibição. A maior parte das obras pertencem à família do artista e apenas 30 delas à colecionadores particulares e instituições de arte. Complementando o projeto cenográfico, na sala expositiva, o público poderá assistir a um vídeo inédito sobre Viaro, elaborado pelo neto do artista, Túlio Viaro, e também poderá ver a projeção de mil e cem obras catalogadas e fotografadas por Juliano Sandrini. 

PATROCINANDO SUA LEITURA

Todo o projeto de resgate da obra de Guido Viaro está sendo desenvolvido sob a curadoria do filho do artista, Constantino Viaro, em parceria com Estela Sandrini e Maria José Justino. Além da apresentação da retrospectiva de Viaro, no Museu Oscar Niemeyer, o grupo prevê ainda a edição de um livro e de um DVD sobre a vida e a obra do artista, e também de um CD, com o levantamento de aproximadamente mil obras fotografadas e catalogadas. 

 O ARTISTA – Críticos de arte e estudiosos da obra de Guido Viaro afirmam que o artista “abordou com muita sensibilidade e competência diversas problemáticas e gêneros na arte”, entre eles, o social, o religioso, a paisagem e o retrato por meio da pintura, desenho, gravura e escultura. A curadora Maria José Justino diz que “em todas essas experiências, salta o humanista, com uma linguagem moderna, expressionista”.

Nascido na Itália (Badia Polesine, província de Rovigo), Viaro escolheu o Brasil para viver. Desembarcou no Rio de Janeiro (1927) e seguiu para São Paulo, onde estabeleceu uma breve convivência com artistas que mais tarde comporiam o “Grupo Santa Helena” (Volpi, Clóvis Graciano, entre outros). Nesse período, Viaro sobreviveu como ilustrador em jornais e realizou serviços gráficos e afrescos em cafés, residências e fazendas.

Mais tarde (1929), fixou-se no Paraná, onde constituiu família, fez amigos e amadureceu como artista. Aqui, “no meio da forte influência dos discípulos de Alfredo Andersen e da tendência paranista, inaugurou uma nova linguagem, uma pintura de cunho expressionista, que soube diferenciar assunto de arte e uniu verdade à beleza”, disse Maria José. Segundo ela, Viaro foi precursor, entre nós, da linguagem estética atualizada. Responsável, ao lado de Poty Lazzarotto, pela ilustração da “Revista Joaquim”.

Além de grande mestre da arte paranaense, Viaro foi o único a estender essa experiência ao trabalho infantil, criando a primeira “escolinha de arte” (1937), com a vontade e o compromisso de alargar a dimensão estética aos menos favorecidos. “Essa preocupação ética e social permanece presente em toda a sua obra. É o primeiro a lidar com arte e educação, não apenas no Paraná, mas no Brasil, no entendimento profundo da arte como forma de elevar o homem.”

Maria José disse que “como ninguém, Viaro teve a fina sensibilidade de perceber que fazer arte é educar-se na liberdade instigando a curiosidade de seus alunos –crianças, adolescentes e adultos –, procurando abrir caminhos sem impor o seu próprio”. Leonor Botteri, Ida Hannemann Campos, Luiz Carlos de Andrade Lima, Jair Mendes, Fernando Velloso, Fernando Calderari, Domicio Pedroso, João Osório Brzenzinski, Estela Sandrini, Zimmermann foram alguns de seus discípulos.

“A arte foi a sua humanização, no diálogo autêntico com a vida. Além de ensinar, sua obra se abre generosamente para uma experiência singular da beleza, fazendo-nos experimentar algo de vital, emoção e prazer pela arte, ao mesmo tempo em que nos ensina o respeito e amor pelo homem, pela mulher, pela arte e pela vida.”

 

Serviço:

Guido Viaro – Um visionário da arte

Período de Exibição: 29/11/2006 até 04/03/2007

Patrocinadores: Agência de Fomento do Paraná S/A

Apoio: Tim, Governo do Paraná e Ministério da Cultura

Onde: Museu Oscar Niemeyer

Endereço: Rua Marechal Hermes, 999

Centro Cívico – CEP: 80530-230

Telefone: (41) 3350-4400

Horário: de terça a domingo, das 10h às 18h

Preços: R$ 4,00 adultos e R$ 2,00 estudantes identificados

(Crianças de até 12 anos, maiores de 60 e grupos de estudantes de escolas públicas, do ensino médio e fundamental, agendados não pagam)

NERVURAS DA ARTE EM GUIDO VIARO

por Maria José Justino
“Talhado a canivete em madeira, como um ídolo asteca, brutal, não é um anjo saudoso de um éden, mas o anjo expulso do céu e, no entanto, orgulhoso de sua sorte e força (…) duro e baixo como uma casa de pedra”. Foi desse modo que Dalton Trevisan definiu o artista. Voluntariamente excluído da província de *Rovigo* (Badia, Polesine), Viaro, filho de pequenos agricultores, conservou-se a vida toda esse homem da terra. Carnal, rude e generoso. Nessa generosidade, o ateu Sartre podia conviver sem atritos com São Francisco de Assis, as metrópoles com sua pequena aldeia em Badia ou com a pequena Curitiba dos anos trinta. Ele próprio, um ateu convicto, acreditava no homem, na terra e na arte.
Nascido na Itália (1897), Viaro fez do Brasil a sua escolha. Na Itália dos anos vinte, viu a tradição da pintura, desde a estrutura renascentista aos *macchiaioli*; em breve passagem por Paris, encontrou os modernos. Chega ao Brasil, em São Paulo, ávido pelo exercício da arte. É acolhido pela solidariedade dos imigrantes italianos, estabelecendo uma breve convivência com artistas que mais tarde iriam compor o Grupo Santa Helena, em especial Clóvis Graciano e Alfredo Volpi. Trabalhar com ilustrações e humor nas revistas e jornais italianos (Il Pasquino e Il Moscone), decoração de cafés e residências, pintar murais etc., além da convivência com pessoas cultas (jornalistas, artistas, ecumênicos, profissionais liberais), não deixava de ser um exercício técnico importante para a formação artística. Mais tarde (1929), fixa-se em Curitiba, no Paraná. Aqui, no meio da forte influência andersiana e da tendência paranista, a pintura de Viaro vai se construindo como um contraponto. Fora dessa celeuma, inaugura uma pintura essencialmente moderna.
Fez da arte a sua humanização, o seu diálogo autêntico com a vida. Além de ensinar (Fernando Velloso, Violeta Franco, L.C. Andrade Lima, Brzezinski, Calderari, Zimmermann, Estela Sandrini, alguns de seus discípulos), sua obra se abre prodigamente para uma experiência singular da beleza e da verdade, fazendo-nos experimentar algo de vital – emoção e prazer pela arte e respeito pelo ser humano. Privilegiou na pintura a luz – tanto no que trazia da experiência européia e paulista como dos seus estudos sobre Monet e Hopper (pintores escolhidos para ilustrar suas aulas) –, mas também o traço próximo à tradição de gravadores e a estrutura construtiva de Morandi, do pós-impressionismo de Cézanne e do retorno à ordem (Novecento). O desejo de fazer uma arte sólida por meio de uma construção livre foi a escolha de Viaro.
No final dos anos cinqüenta, Viaro não escapa ao apelo do abstracionismo. Chega a experimentar essa linguagem com obras de estruturas geométricas, uma pesquisa voltada mais à matéria. Ele próprio deixa escapar que se tratava de uma experiência: “Estou à procura de uma forma de sensibilidade pictórica e harmonia musical dentro do abstracionismo, o que considero ideal, se atingido algum dia. (…) Devido à minha idade, não sei se conseguirei libertar-me das influências figurativas e se algum dia chegarei ao abstrato puro. “ A sua pintura não se contenta em abstrair nem tampouco em reduzir-se ao gestual; ela quer mais do que o exterior do movimento, ela quer as cifras secretas do ser. Sua relação com o mundo passa pelo profano, pelo matérico, pela carne. Ele precisa dessa materialidade para se expressar. Mas essa necessidade não abandona a estruturação da obra. Como no caso de Hopper, Viaro soube aproveitar a lição abstrata incorporando-a na representação realista. Suas paisagens e mesmo muitos dos trabalhos com a temática religiosa posteriores a essa experiência, ganham em liberdade.
A sua relação com a arte é sempre empática, é um adepto da subjetividade. A objetividade não o seduz, mesmo porque faz parte daquele grupo para quem a exatidão não significa a verdade. O seu trajeto é uma luta constante para escapar ao realismo objetivo e duro, inclinando-se para a liberdade conquistada pela construção moderna, independentemente das vanguardas históricas. A poética de Viaro não está necessariamente interessada na face bela das coisas, mas na sua intimidade, distancia-se do naturalismo e do impressionismo, buscando uma arte mais sólida. Viaro é o encontro de muitas águas: construtivo e intuitivo. Em sua obra não há oposições entre expressionismo e formalismo; a construção não exclui a expressão. Todavia, há momentos na obra de Viaro quase impressionistas e outros que o aproximam da poética pós-impressionista, mais construtivos. Boa parte de sua extensa obra oscila entre a estruturação construtiva e a pincelada expressionista, sem necessariamente haver oposição, pois, “afinal de contas, a continuidade histórica depende das facetas que se escolha acentuar, e nada seria mais equivocado que estabelecer uma dicotomia na história da arte moderna entre as correntes formalista e expressionista” (Rosenberg).
Todos esses caminhos são frutos da experiência autodidata, “sem mestre e sem escola”, brotada dos desafios de quem, de seu canto curitibano, fazia a travessia da aventura da arte no mundo. Pacientemente, Viaro foi construindo a sua poética, autêntica, o que não a impede de dialogar com a história da arte.
O último Viaro inclinou-se para uma pintura de síntese, deixando os brancos significarem. Esses brancos já começam a ganhar atenção em aquarelas da década de quarenta, em pinturas como “Santa Ceia” (1954) e nos últimos trabalhos, como “Paisagem” (1971). Para Viaro, como para o pintor da Province, “os brancos não são vazios, mas espaços nos quais vibra a cor excessivamente saturada do toque vizinho, uma zona de transição e de passagem” (Cézanne). É um recurso utilizado por Viaro para fazer a tela respirar, torná-la viva. O silêncio fala, cria sentidos.
Reserva para a gravura o seu lado existencial, expressando não uma rebeldia social, mas uma solidariedade com os mais simples. Mesmo nas gravuras, o lado mediterrâneo sobrepuja a dramaticidade, o claro escuro da existência humana. Entre as nervuras da madeira (xilogravura) e as sendas indomáveis do metal, circula vida. Se os medievais exaltavam, por meio da xilogravura, os santos mártires, Viaro, com as suas, celebra o homem simples no seu cotidiano, o trabalhador nas suas lides. “A gravura vem de dentro”, disse certa vez Viaro a Sérgio Milliet. Profundo conhecedor dos mistérios do traço, Viaro reinventou, por necessidade, a zincogravura, que nada mais é do que o aproveitamento das placas de zinco (reaproveitamento das placas que lhe advinham como ilustrador de revistas, jornais etc.), desenvolvendo uma água-forte impressa não em côncavo, mas em relevo, como o processo mesmo da xilogravura.
A modernidade de Viaro foi, então, um caminho natural de quem vinha para o mundo da arte sem uma escolaridade tradicional. A sua pintura festeja a cor; as gravuras reafirmam o peso da vida. Da pintura à monotipia, da gravura às aquarelas, em menor escala na escultura, a preocupação técnica o acompanhava. Há momentos extraordinários do Viaro pintor, em especial nos retratos. Entre eles, chamo a atenção para “O Medo”, “O Homem sem Rumo” e “A Polaca”, uma das melhores obras de Viaro. É uma pintura que capta a alma da jovem, o seu interior, suas vibrações, sua luminosidade, seu perfume. As cores quentes dominam. O fundo pode revelar certa espiritualidade nas nuanças dos azuis, também no azul do olhar da jovem, mas a sensualidade se sobrepõe na escolha do vermelho como dominante no vestido e no carmesim dos lábios. O etéreo ganha carnalidade. Até o louro dos cabelos ondulados recebe reflexos do vermelho. Revela um pintor apaixonado: pela modelo, pela pintura, pela luz, pela cor. É uma mulher real que possibilita ao artista alcançar valores universais. É uma mulher loira particular, polaca, italiana ou alemã, enfim, uma mulher feita de luz, etérea; ao mesmo tempo, a pintura suplanta o referencial a uma mulher específica, galga uma transcendência, uma autonomia, são todas as mulheres em uma só, todo o feminino sintetizado. Há uma interação entre o mundo fenomenológico e o transcendental, do mesmo modo em que a tensão entre construção e emocional é resolvida. É uma pintura quase de manchas, que o aproximaria tanto dos impressionistas como dos *macchiaioli*, mas nela a expressão se afirma de maneira forte, as pinceladas nervosas captam o essencial. É uma pintura que estrutura as massas, onde o contorno não é um coadjuvante, mas nervura da obra. Incrível como a leveza dessa pintura no ar expressa a espiritualidade da jovem. É como se Viaro tivesse pintado essa obra de um só impulso, e trouxesse o infinito de um só golpe. Nada falta e nada sobra. A displicência das linhas desenhando a gola e as mangas do vestido é exata. Não houve escolha premeditada, os gestos aconteceram na medida. Primado da sensibilidade, da intuição e do instinto, brotados de uma região mais bruta, por isso mesmo tão sensível. Nessa obra, Viaro é soberbo!
E poderíamos falar de tantas outras obras de Viaro com igual entusiasmo.
O que importa é que Viaro toma a arte como um exercício estético e ético que leva ao conhecimento do mundo cósmico, a uma experiência estética do homem no encontro com a obra total de arte. Pintando as prostitutas, os operários, os pescadores, os humildes, a maternidade, os temas religiosos, a vida prosaica, enfim, o homem e a mulher em todas as suas pegadas terrenas, Viaro torna-se um criador genuíno, com uma poética própria tecida no tempo da matéria. Merece, sem nenhum favor, ocupar um lugar na arte brasileira ao lado de Volpi, Rebolo, Pancetti, Di Cavalcanti, Guignard e Iberê Camargo. Curitiba precisa deixar de ser provinciana e apresentar os seus artistas ao mundo, até porque eles cantam a nossa aldeia em linguagem universal.