Concepção sobre foto de imigrantes no pátio central da Hospedaria dos Imigrantes de SP, por volta de 1890 (Foto Wikipedia / PNGWing)

Considerando a situação “extremamente grave” tanto para ítalo-brasileiros quanto para qualquer ítalo-descendente, a recém-fundada Associação “Italianità in Movimento” expediu hoje, Dia Nacional do Imigrante Italiano no Brasil, manifesto em que se pronuncia sobre o teor de recentes decisões judiciais de segundo grau, na Itália, a respeito da cidadania ‘iure sanguinis”. O documento se refere também à orientação do governo aos municípios italianos no caso da Grande Naturalização e conclui que a justiça italiana estaria agindo politicamente.

Trata-se – diz o documento assinado por três líderes da entidade (Augusto Ornellas, Daniel Taddone e Luis Molossi) – de um “conjunto de fatos aparentemente sem conexão entre si que, observados a uma certa distância, configuram uma única e incontestável decisão política: a de limitar na prática os direitos dos cidadãos, esgotando-os psicológica e financeiramente, para que desistam de fazer valer as prerrogativas de que são titulares desde o momento de seu nascimento”.

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No documento, os signatários explicam que, em sua última visita ao Brasil, no início do mês de fevereiro, o senador Ricardo Merlo (Maie), assumiu o compromisso de levantar a questão no Parlamento e que já o fez através de anunciada interpelação ao Ministro da Justiça italiano. O Manifesto tem por título “Pelo respeito aos direitos dos que nasceram italianos”. Confira o texto, na íntegra.

“A Associação Italianità in Movimento, enquanto movimento cultural, social e político que surgiu de maneira orgânica na comunidade ítalo-brasileira, tem entre seus princípios basilares a defesa da italianidade e dos direitos de todos que, à luz da legislação vigente, são italianos desde o nascimento, independentemente de já terem completado ou não os procedimentos burocráticos de reconhecimento desse fato consumado e irrevogável.

Temos acompanhado com especial consternação uma série de ações de autoridades dos poderes Judiciário e Executivo da Itália desde o final de 2019 com a finalidade clara, algumas vezes até admitida publicamente, de impor limites ou negar os direitos de italianos nascidos no exterior, em particular no Brasil.

Nesse sentido, por ocasião do ato formal de lançamento de nossa Associação em 5 de fevereiro último, que coincidiu com uma visita oficial do Senador Ricardo Merlo à cidade de São Paulo, apresentou-se a ele a situação e seus desdobramentos, igualmente preocupantes do ponto de vista da separação dos poderes. O senador se comprometeu a apresentar uma interrogação parlamentar formal a respeito.

Abaixo elencamos os principais fatos ocorridos ao arrepio das leis e jurisprudência italianas que são fonte de preocupação não só da comunidade ítalo-brasileira, mas também o deveria ser para todos os cidadãos italianos residentes no exterior.

1) Atuação política e obstrucionismo da Avvocatura dello Stato

No segundo semestre de 2019, os advogados do Estado, que até então nunca se apresentavam como parte em processos de reconhecimento judicial da cidadania italiana perante a 18ª. Seção Cível do Tribunal Ordinário de Roma, passaram a se fazer presentes, argumentando pelo indeferimento do reconhecimento em função de uma suposta perda da nacionalidade italiana por parte dos imigrantes que chegavam no Brasil no final do século 19.

Defendiam que a lei brasileira impôs a naturalização automática a todos os estrangeiros que estavam no território nacional em novembro de 1889 e que não se manifestassem seu interesse de conservar sua nacionalidade originária. Esse entendimento foi prontamente rechaçado pelas autoridades do Reino da Itália, que em inúmeras correspondências oficiais deixaram claro que o estado italiano não reconhecia a aplicabilidade desse dispositivo a seus cidadãos, com base do Código Civil de 1865, que não admite a possibilidade de uma renúncia tácita da nacionalidade. De fato, tal posição se consolidou em diversos atos oficiais italianos que se seguiram e em pelo menos uma sentença da Corte de Cassação de Nápoles exarada em 5 de outubro de 1907.

É importante ressaltar também que, apesar da intenção do legislador brasileiro em 1889, nem mesmo o próprio Brasil jamais aplicou efetivamente essa dita ‘Grande Naturalização’, fato evidenciado pela não inclusão do enorme contingente de imigrantes nos registros de naturalização. Isso se verifica facilmente com a emissão em cada caso individual pelo Ministério da Justiça da chamada “Certidão Negativa de Naturalização” (CNN), documento rotineiramente incluído seja nos ritos administrativos de reconhecimento de cidadania italiana, quanto nos processos judiciais movidos com a mesma finalidade.

A essa alegação da ‘Grande Naturalização’, carente de qualquer base legal, os advogados do Estado adicionaram uma interpretação já plenamente rechaçada da Lei nº 555/1912, segundo a qual filhos de italianos nascidos antes de 1 de julho de 1912 em territórios onde vigia o ius soli (como o Brasil e o restante do continente americano) teriam perdido o direito à cidadania italiana transmitida iure sanguinis por seus pais.

A advocacia do Estado, representando o Ministério do Interior, decidiu, assim, em memórias defensivas repletas de conteúdo político, contrárias ao princípio da legalidade, ignorar todo o arcabouço legislativo e a jurisprudência estabelecida há 155 anos. Pretendiam cancelar retroativamente um entendimento aceito e pacificamente aplicado por mais de um século e meio desde a criação do estado italiano e adoção de seu Código Civil.

Os juízes da seção cível incumbida da análise desses processos de reconhecimento de cidadania, com a experiência adquirida no julgamento de milhares de processos semelhantes a cada ano, chegaram à conclusão unânime da improcedência dos argumentos do estado.

Inconformados com a derrota inequívoca na primeira instância, os advogados do Estado resolveram recorrer de uma parte dessas sentenças, de maneira aleatória e muitas vezes inconsequente, escolhendo alguns processos em que sua tese nem mesmo se aplicava por ter o antepassado italiano chegado ao Brasil muitos anos após a tal ‘Grande Naturalização’.

Sua motivação para tanto ficou muito clara no discurso de abertura do ano judiciário de 2020 da Corte de Apelação de Roma, proferido pelo vice-advogado-geral Giuseppe Albenzio. Nessa mensagem, ele deixa evidente o caráter político da intervenção da advocacia do Estado ao insistir que a lei italiana de nacionalidade seria muito “permissiva” e “colocaria em risco a credibilidade” da Itália no contexto da União Europeia. Ele cita números fantasiosos e inventados de pedidos de reconhecimento que viriam do Brasil (segundo ele 90% de todos os processos judiciais) e menciona uma inexistente sobrecarga dos serviços de saúde de Portugal à conta de brasileiros com cidadania italiana que se estariam mudando para lá, ignorando completamente os tratados bilaterais que facilitam a permanência de brasileiros sem nenhuma cidadania europeia naquele país.

Insiste ainda na falácia de que a Itália seria o único país que permite a “concessão” da cidadania “sem limites de gerações”, “por gerações infinitas”, bastando reunir algumas certidões de registro civil, cuja credibilidade ele coloca sob dúvida. Por último, zomba abertamente do entendimento unânime dos juízes de primeira instância e dos diversos estudos jurídicos feitos por constitucionalistas respeitados na Itália sobre a improcedência de seus argumentos.

2) Primeiras decisões das Cortes de Apelação

Em seguida aos recursos interpostos pela Advocacia do Estado que reconheciam a cidadania italiana de milhares de requerentes, em setembro de 2021 começaram a surgir algumas primeiras sentenças de segunda instância.

As duas primeiras (dentre as quais a Sentença n.º 1460/2021, de 30 de setembro) foram emanadas pela Corte de Apelação de L’Aquila, que, em ambas, rejeitou ponto a ponto os argumentos dos advogados do Estado, reafirmando a interpretação vigente do Código Civil de 1865, da Lei n.º 555/1912 e toda a jurisprudência consolidada em mais de um século.

Ao mesmo tempo, no entanto, por razões que merecem investigação pois vão contra a práxis e procedimentos estabelecidos pela corte, dois processos foram distribuídos erroneamente para a vara de Pessoas, Família e Menores do Tribunal de Apelação de Roma. Nesses dois processos, dentre eles o mencionado na Sentença n.º 5172/2021, de 14 de julho, a magistrada relatora repetiu literalmente a argumentação dos advogados do Estado, acolheu o recurso negando a cidadania aos requerentes, e lhes impôs o pagamento de custas e sucumbência de 8 mil euros.

Cumpre mencionar que a Advocacia do Estado tem adotado a prática pouco ortodoxa de se apresentar em juízo como representantes não só do Ministério do Interior, mas também do Ministério das Relações Exteriores, mesmo que esse último não seja – por lei – competente para ações de cidadania, com a intenção clara de multiplicar as custas de sucumbência devidas à intervenção de um segundo órgão estatal.

Logo em seguida, a Primeira Seção Cível do Tribunal de Apelação de Roma, desta vez a vara correta e natural para processos de cidadania, após audiência deliberativa em 24 de junho de 2021 e audiência de sentença em 23 de setembro, emanou a sentença n.º 6640/2021, de 8 de outubro, em que reafirmou os princípios constantes na legislação e jurisprudência, indeferindo completamente o recurso dos advogados do Estado. O magistrado relator mencionou as decisões da vara de Família e Menores acima descrita e explicou em detalhes porque divergia da então relatora.

3) Interferência do Ministero dell’Interno

Ignorando deliberadamente as três sentenças em segundo grau, mencionadas acima, que rechaçavam os argumentos da Advocacia do Estado e reafirmavam o entendimento consolidado da legislação e jurisprudência em vigor, o Ministério do Interior publicou em outubro de 2021 uma circular, n.º 6497/2021, enviada a todas as preffeture e, consequentemente, a todos os municípios (comuni) italianos, repercutindo somente as duas sentenças proferidas pela vara equivocada do corte romana de apelação.

Nela o Ministério determina aos municípios que os pedidos de reconhecimento de cidadania que envolvam um dante causa chegado ao Brasil até 15 de novembro de 1889 deverão ser adiados sine die (sem prazo) para um “momento sucessivo” não especificado. Os pedidos não deveriam ser rejeitados, mas deveriam ficar suspensos até uma decisão da Corte di Cassazione, para a qual não há nenhuma previsão de quando ocorreria.

Essa circular gerou efeitos imediatos em dezenas a centenas de práticas de reconhecimento por residência em cidades italianas e teve repercussões inclusive em pelo menos um dos sete consulados italianos no Brasil, que passou a exigir comprovação de data de imigração do italiano antes de emitir atestados de mancata rinuncia para municípios italianos. Isso ocorreu a despeito de declarações de que a Embaixada e os consulados não levariam em consideração a chamada ‘Grande Naturalização’ em seus procedimentos de reconhecimento de cidadania.

4) Últimas decisões da Corte di Appello di Roma

Mais recentemente, uma outra turma pertencente à Primeira Seção Cível do Tribunal de Apelação de Roma, agora presidida pela juíza Mariarosaria Budetta (presente no julgamento da sentença n.º 6640/2021 de 8 de outubro de 2021 mencionado acima) no papel de relatora, passou a adotar um entendimento da questão totalmente diverso, que especialistas de direito civil e constitucional italiano julgam extravagante, preocupante e especialmente perigoso.

A ministra relatora, em duas sentenças de janeiro de 2022 redigidas de forma idêntica, deferiu o recurso dos advogados do Estado e condenou os requerentes de cidadania a pagar 6000 euros de custas e sucumbência. Em ambos os casos – dentre eles o processo n.º 1903/2020, com sentença publicada em 20 de janeiro de 2022 – a magistrada resolveu ignorar completamente a argumentação da Advocacia do Estado sobre a ‘Grande Naturalização’ mas criou um entendimento inédito segundo o qual, em função do fato de pelo menos um dos antepassados dos requerentes ter se casado no Brasil e, por ocasião da cerimônia, ter-se declarado “brasileiro” e não “italiano”, essa declaração de um fato inegável constituiria uma renúncia automática de sua cidadania italiana.

A magistrada especificamente vai contra o art. n.º 5 do Regio Decreto n.º 949, de 2 de agosto de 1912, que reza que a renúncia – tema do art. n.º 7 da Lei n.º 555/1912 – “deve ser feita perante o agente diplomático ou consular do local onde o renunciante reside”.

Ignorando deliberadamente todos os dispositivos legislativos que deixam claro que não existe a possibilidade de renúncia tácita da nacionalidade sem que o cidadão tenha expressado seu desejo claro às autoridades consulares italianas, e sem sequer pedir à defesa dos requerentes que apresentem seus argumentos contra essa acusação que nem mesmo constava da apelação feita pelo estado italiano, a magistrada exarou, como se habilitada a isso fosse pela lei, interpretação totalmente inusitada e não prevista da legislação vigente. Extrapolou as atribuições de aplicador da lei e tomou para si o papel do legislador sem a legitimação para tanto conferida em eleições populares.

É um fato extremamente grave e perigoso, porque em um golpe de caneta ela cria jurisprudência já com duas sentenças que tem o poder de virtualmente negar a cidadania de qualquer cidadão italiano nascido no exterior que, porventura, venha a fazer qualquer ato público no país de sua residência e ouse mencionar sua outra nacionalidade. Tal perigo não se restringe a ítalo-brasileiros, não depende da tese esdrúxula da ‘grande naturalização’, mas poderia ser aplicada a qualquer italiano no exterior a qualquer momento.

CONCLUSÕES

A situação acima descrita é de extrema gravidade e, cada vez mais, configura riscos não só a cidadãos italianos nascidos no Brasil, mas à totalidade da comunidade italiana residente no exterior.

Revela, acima de tudo, uma tendência preocupante do Executivo italiano, nomeadamente o Ministério do Interior com a possível participação do Ministério das Relações Exteriores, de operacionalizar e fomentar o ativismo judicial de determinados magistrados militantes. Esses tomam para si as atribuições privativas do legislador, criando obstáculos e obstrucionismos reais ao exercício dos direitos dos cidadãos enquanto o Parlamento, por razões que lhes são próprias, não se debruça em alterações ou reformas que cabem a ele, e somente a ele.

Isso tem o efeito de, em violação dos princípios constitucionais que governam as atribuições separadas e independentes de cada poder no Estado, concretizar judicialmente aquilo que já se vem concebendo politicamente por meio de numerosos projetos de reforma da lei da cidadania, dentre eles o disegno di legge n.º 2269/2019.

É a opinião de quem escreve, e de inúmeros especialistas do direito constitucional italiano, de que se trata de um conjunto de fatos aparentemente sem conexão entre si que, observados a uma certa distância, configuram uma única e incontestável decisão política: a de limitar na prática os direitos dos cidadãos, esgotando-os psicológica e financeiramente, para que desistam de fazer valer as prerrogativas de que são titulares desde o momento de seu nascimento.

A INTERROGAÇÃO PARLAMENTAR

O senador Ricardo Merlo, interlocutor necessário e líder do MAIE (Movimento Associativo Italiani all’Estero), comprometeu-se, em sua visita de 5 de fevereiro passado, em elaborar uma interrogação parlamentar que faça luz sobre os fatos aqui expostos, iniciativa que ele já publicamente anunciou. A associação Italianità in Movimento continuará atenta a essa grave situação e cobrará as instâncias políticas para que tomem medidas que honrem o mandato que receberam das urnas.

* Augusto Ornellas, Daniel Taddone e Luis Molossi são líderes de ‘Italianità in Movimento’