Os Italianos no Rio Grande do Sul
© Luiz Alberto De Boni e Frei Rovílio Costa *
u O Rio Grande do Sul situa-se no extremo meridional do Brasil. Com uma área de 282.184 km2, contava, em 1822, por ocasião da independência do Brasil, com cerca de 40.000 habitantes. Quando, em 1875, iniciou a imigração italiana de massa, eram 400.000 habitantes. Hoje a população ultrapassa os dez milhões. A capital é Porto Alegre, com 1,4 milhões de moradores, sendo 3,5 milhões na região metropolitana.
No final do século XV, a região não despertou interesse nem dos portugueses, nem dos espanhóis, por apresentar uma costa arenosa quase inacessível e um interior com vastas campinas desocupadas ou com serras íngremes. Os primeiros europeus que se fixaram no Estado foram os jesuítas, que iniciaram um trabalho de catequese junto aos índios da região centro-oeste, a partir de 1629. Entre eles havia italianos, como o milanês Giovanni Battista Primoli, arquiteto da Igreja de São Miguel – hoje em ruínas, no município de Santo Ângelo –, além da Catedral de Córdoba e do Cabildo de Buenos Aires, na Argentina.
A maciça imigração trivêneto-lombarda para o Rio Grande do Sul situa-se dentro da grande onda imigratória do século XIX e início do século XX, que levou dezenas de milhões de europeus para outros continentes, principalmente para as Américas. Nesse período, cerca de seis milhões de europeus se instalaram no Brasil, dos quais 1,5 milhões eram italianos. Destes, aproximadamente 100 mil se estabeleceram no Rio Grande do Sul.
Antes ainda da independência, o governo de Dom João VI havia promovido a vinda de suíços e alemães para o Brasil, com os quais criou, entre outras, a colônia de Nova Friburgo, no Rio de Janeiro. Em 1824, alemães entraram no Rio Grande do Sul, fundando a colônia de São Leopoldo, a qual seguiram diversas outras. O governo imperial, dirigido por uma elite de funcionários portugueses e por brasileiros não-comprometidos com os grandes latifundiários, tencionava modificar as estruturas do país, até então baseadas no tripé monocultura-latifúndio-escravidão. Os colonos deveriam ser pequenos proprietários policultores que, com o trabalho livre, fornecessem gêneros de primeira necessidade ao país. Esperava-se deles e de seus sucessores que abrissem pequenas indústrias e que, ocupando o solo do Sul, servissem como barreira contra as pretensões da Argentina; que possibilitassem a formação de um exército de brancos (a revolta negra no Haiti estava presente na memória de todos) e que, no meio de negros e mulatos – a grande maioria da população brasileira de então –, se tornassem fator de branqueamento da raça.
Entre 1824 e 1830, cerca de 5.300 alemães entraram no Rio Grande do Sul, tendo a maioria se fixado na região de matas da baixada ao norte de Porto Alegre. A cada família foi dada uma gleba de terras de aproximadamente 77 hectares. Apesar das dificuldades enfrentadas, a experiência foi um sucesso e, em pouco tempo, os colonos já estavam descendo de barca pelo rio dos Sinos, a fim de vender seus produtos na capital.
Inesperadamente, no orçamento de 1830, foram cortadas todas as verbas para imigração e colonização e, em 1834, por Ato Adicional da Regência, os encargos com a vinda de estrangeiros passaram para as províncias, carentes de recursos, às quais, aliás, não foram concedidas glebas para tanto, na medida em que as terras devolutas continuavam pertencendo ao poder central. A causa de tão abrupta mudança encontra-se no parlamento brasileiro, que se estruturou naqueles anos, tomando o poder para si. O sistema eleitoral, privilegiando os bens de fortuna, fez com que se elegesse a elite agrária do Império que, de imediato, entrou em choque com as idéias modernizadoras de D. Pedro I que, por sua vez, em 1831, acabou renunciando.
Senhores da situação política, os grandes latifundiários se consolidaram no poder, impedindo a entrada de colonos estrangeiros, cujo modelo de produção, baseado na pequena propriedade, na policultura e no trabalho familiar, representava uma bomba de efeito retardado no arcaico sistema vigente de produção. Desprezar a colonização européia significava, então, apostar no sistema escravocrata. Mas, apesar da legislação promulgada por exigência da Inglaterra para o reconhecimento da independência, nunca como então entraram tantos escravos no Brasil: aproximadamente 50 mil por ano, entre 1830 e 1850. Dos cerca de quatro milhões de africanos transportados para o Brasil em mais de três séculos de escravidão, metade deles entrou no país após a proibição legal de 1831. É que o Brasil, então o mais rico país das Américas, comprava da Inglaterra 7/10 do material destinado ao transporte de escravos, e cabia à marinha mercante inglesa 3/8 do transporte do açúcar, metade do de café e 5/8 do de algodão brasileiros. Mudando-se a situação, e voltando-se os interesses ingleses também para a África, foi relativamente fácil ao Império Britânico liquidar com a escravidão no Brasil. Apoiada no Bill Aberdeen (1845), a esquadra inglesa interceptou navios negreiros, invadiu portos para aprisioná-los e exerceu policiamento ostensivo em toda a costa brasileira. Assim, em poucos anos acabou-se o tráfico: em 1849 entraram cerca de 54 mil escravos; em 1852, foram apenas 700.
Na década de 1840 a 1850, a economia brasileira passava por importante modificação: o café substituíra definitivamente o açúcar como principal produto de exportação, e o centro econômico do país deslocava-se do nordeste para São Paulo. A lavoura cafeeira crescia, enquanto se exauria a fonte de suprimento de mão-de-obra: um escravo custava dois milhões de réis, e seu lucro anual ficava entre 200 e 300 mil réis, o que era suficiente apenas para os juros de amortização. Tornava-se, pois, necessário apelar novamente para o trabalho europeu. Agora, porém, eram deixados de lado os motivos que, há um quarto de século, haviam levado à colonização alemã. Predominava quase que exclusivamente a preocupação em obter trabalhadores assalariados para a grande lavoura monocultora paulista. A partir deste momento, a única maneira de compreender a aparentemente desconexa e até contraditória legislação brasileira sobre imigração e colonização, é tendo presente o fato de que a procura de imigrantes vai ser determinada pela crise do estatuto da escravidão.
Já em 1847 tentou-se introduzir os contratos de parceria em fazendas de São Paulo. Eram contratos leoninos, pelos quais o colono vendia seu trabalho futuro para pagar os gastos que com ele tivera o proprietário da terra, desde o embarque no porto de origem. Criticados na Europa como forma de escravidão camuflada, foram tais contratos suprimidos, quando a Alemanha, a Inglaterra, a França e, posteriormente, a Itália, fizeram restrições à emigração para o Império do Brasil.
Em 1848, o poder público voltou a legislar, com o objetivo de reativar a corrente imigratória. A lei no 514, então promulgada, doava a cada província uma extensão de 36 léguas em quadra de terras devolutas, a fim de promover a colonização. A lei parecia voltar ao período anterior, facilitando o acesso à propriedade. Por isso não foi vista com bons olhos pelos grandes proprietários, para os quais estava claro que a única maneira de atrair os europeus para a lavoura de café era dificultar-lhes o acesso à terra. Dentro desta perspectiva deve ser encarada a lei geral no 601, de 18 de setembro de 1850, bem como seu regulamento, aprovado por decreto em 1854. A premência em obter trabalhadores (recorde-se que no mesmo ano de 1850 foi promulgada a Lei Eusébio de Queiroz, que proibia o tráfico de escravos) fez com que a lei partisse decididamente à pro-cura de imigrantes, regulamentando uma série de pendências que haviam sido proteladas durante décadas, tais como a da naturalização e do serviço militar. Criava-se a Repartição de Terras Públicas, que centralizava tudo o que se relacionava com a parte técnica da colonização. O mais importante, porém – e que desde então não foi modificado –, é que as terras não poderiam ser doadas: a compra tornava-se o único meio de acesso à propriedade. Com isso, esperava-se, o imigrante carente de recursos seria levado a vender inicialmente o seu trabalho, a fim de acumular os meios necessários para a posterior aquisição de uma gleba. Levantamento feito então pelo governo mostrou a lamentável situação da imigração européia para o Brasil: entre 1819 e 1850 aportaram no país 25.590 imigrantes – era a metade do que anualmente entrava de escravos provindos da África. A nova lei, contudo, não foi capaz de atrair imigrantes. Por isso, a partir de 1865, o governo brasileiro passou a oferecer aos candidatos à imigração o pagamento da diferença de custos de passagem entre Europa e Estados Unidos e entre Europa e Brasil.
Em 1867, como não se registrasse aumento no número de imigrantes, e como a campanha de abolição da escravatura tomasse vulto, elaborou-se um novo regulamento, com uma série de vantagens para os imigrantes: lote rural a ser pago em dez anos, com dois anos de carência, viagem gratuita dentro do país, construção de habitação, ajuda em dinheiro, sementes e instrumentos nos primeiros tempos, assistência médica e religiosa… Previa-se, com isso, a introdução de 350 mil colonos alemães, suíços e ingleses, o que não aconteceu. Neste momento, porém, a crise socioeconômica da Itália veio ao encontro dos planos dos latifundiários, e os pobres imigrantes italianos acabaram sendo aceitos pelos fazendeiros, por vezes a contragosto, como sucessores dos escravos nas fazendas de café. Como, todavia, fosse elevado o número dos que, atraídos pelas disposições de 1867, procurassem adquirir logo o lote rural, disposição de 1879 suspendeu a maior parte dos auxílios oferecidos, permanecendo apenas a facilidade para comprar a terra no prazo de 10 anos e a oferta de trabalho em obras públicas durante um certo período.
Em 1885, recrudesceu novamente a campanha abolicionista, e ficou claro que a escravidão estava com os dias contados. Acabaria legalmente em 1889, sendo o Brasil o último país do Ocidente a suprimir tal regime hediondo. Acossado, o governo retomou a colonização, reorganizando o serviço de cadastramento e venda de lotes e voltando a fazer campanha na Europa. À grande demanda brasileira correspondeu, por acaso, o auge da crise italiana.
Até 1884, o número anual de entradas de peninsulares nunca superou os 15 mil indivíduos. Em 1885 foram 21.765; em 1887, 40.175; em 1888, 104.353; em 1891, 132.326. Até o fim do século, o número nunca foi inferior a 30 mil. A grande maioria, mais de quatro quintos, dirigiu-se para São Paulo. Apenas 100 mil entraram no Rio Grande do Sul.
Italianos no Rio Grande do Sul
Entre 1830 e 1844, a imigração alemã para o Rio Grande do Sul foi quase nula, influindo, para tanto, além da legislação, a prolongada Guerra dos Farrapos (1835-1845). A partir de 1844, contudo, ela voltou a crescer, sendo que até 1875, outros 19 mil colonos alemães entraram na província.
Aproveitando a doação de terras da lei imperial de 1848, a administração local criou mais quatro colônias destinadas a alemães e organizou o sistema legal de imigração e colonização. Em 1869, alegando que já se encontravam ocupadas as terras anteriormente recebidas, a província pediu, por requerimento, mais duas glebas, com um total de 32 léguas quadradas. A solicitação foi atendida em fevereiro de 1870, estipulando-se, porém, em vista da lei de 1850, o valor de um real por braça quadrada. Em 24 de maio de 1870, o presidente da província criava as colônias Conde d’Eu e Dona Isabel, homenageando assim o príncipe consorte e a herdeira do trono. As novas colônias, situadas entre os rios Caí e Antas, tendo mais ao norte os campos da Vacaria e mais ao sul as colônias alemãs, localizavam-se em terreno acidentado da Serra Geral, com alguns relevos íngremes e densa vegetação. Ocupá-las com imigrantes seria também uma forma de, aos poucos, abrir uma via de comunicação com os campos do nordeste da província.
O plano era ambicioso. O sucesso da colonização germânica levara o governo a pensar na introdução de 40 mil colonos nórdicos no período de dez anos. Contudo, como eram insignificantes os números da imigração espontânea, e como o poder público não se julgava apto a procurar, por si mesmo, emigrantes na Europa, contratou um armador particular, que se comprometeu a introduzir uma média de quatro mil colonos por ano. Ao mesmo tempo, iniciava-se a medição dos primeiros lotes em Conde d’Eu.
O fracasso não se fez esperar. Na Alemanha, há pouco unificada, dificultava-se a emigração, e os que saíam optavam pelos Estados Unidos e por outros países, mais que pelo Brasil. E, mesmo quando se decidiam pelo Império Brasileiro, eram-lhes bem mais atrativas as propostas do governo imperial que as do provincial. Assim, entre 1872 e 1875, não chegaram a quatro mil os transportados pelo armador. Destes, inúmeros eram portugueses, outros haviam sido procurados entre os emigrados para a Argentina e o Uruguai, o que feria os termos do contrato. Já os colonos, ao invés de ocuparem os novos lotes que aos poucos iam sendo demarcados, preferiam ficar na baixada, nas proximidades de seus compatriotas. Por isso, em fins de 1874, havia apenas 19 famílias, com 74 pessoas, habitando as novas terras de Conde d’Eu.
Entrementes, os serviços de imigração do Império, tendo-se voltado para a Itália, defrontavam-se com a falta de alojamento para um número de imigrantes maior que o esperado para as plantações de São Paulo. Considerando que a província não conseguia ocupar as terras que recebera, e que aos poucos estavam sendo medidas, o Império, que não encontrava lugar para colocar os excedentes, resolveu indenizá-la pelos gastos feitos até então e, em 1875, assumiu as duas novas colônias. Em maio do mesmo ano já começavam a chegar os primeiros imigrantes. Eram italianos do norte. Já antes haviam sido introduzidos colonos italianos. Dados do governo provincial indicam que, entre 1859 e 1875, 729 italianos entraram na província, sendo provável que a maioria proviesse de Montevidéu e Buenos Aires e que não fosse de agricultores. Mas também nas levas que o armador contratado devia transportar encontravam-se cerca de dez famílias de italianos que, em 1873, contavam-se entre os povoadores da colônia de Santa Maria da Soledade.
Portanto, foi por mero acaso, e não por decisão de sabedoria administrativa, que se iniciou a colonização italiana no Rio Grande do Sul. Se dependesse da província, a região teria sido ocupada por alemães, franceses, ingleses e povos nórdicos. Da parte do Império, as preferências eram as mesmas. Havia um sério preconceito de nacionalidades no Brasil, que não pretendia criar colônias para introduzir portugueses, espanhóis ou italianos (e eram impensáveis colônias para nacionais ou ex-escravos). Na falta de braços para o café, o Império foi constrangido a procurar emigrantes no norte da Itália, e assim iniciou o período da imigração e colonização italiana também no Rio Grande do Sul.
Abrigo de carroças e cavalgaduras de viajantes e comerciantes juntos às tradicionais casas de pasto. Final do século XIX.
Já em pleno século XX ainda era necessário justificar a entrada de italianos no Sul, e mais de um intelectual ufano falava do destino daquele Estado dentro da confederação brasileira, pelo fato de ser ariano, povoado que foi por açorianos – descendentes de germanos que se perderam no período das cruzadas –, por alemães e por italianos do norte – que também eram germânicos, filhos de invasores bárbaros do ocaso do Império Romano!
Além das colônias Conde d’Eu e Dona Isabel, já em 1873 o governo imperial iniciara a medição de terras devolutas às margens do rio Caí. Prosseguindo os trabalhos, foram ultrapassados os limites iniciais e, em 1875, decidiu-se criar mais uma colônia, que recebeu o nome de Fundos de Nova Palmira. Decisão do governo, datada de março de 1877, modificava-lhe o nome, passando a chamar-se colônia Caxias. Foi nela que se estabeleceram os primeiros imigrantes.
Dois anos depois de assumir a colonização, isto é, em 1877, o governo resolveu criar uma quarta colônia para imigrantes italianos, utilizando para tanto as terras de matas nas proximidades de Santa Maria, onde já houvera tentativas anteriores de colonização. Surgiu assim a colônia Silveira Martins. Essas quatro colônias foram o núcleo da imigração agrícola italiana para o Rio Grande do Sul.
Em 1884, estando ocupadas as terras de Conde d’Eu e Dona Isabel, os colonos começaram a atravessar o rio das Antas, e o governo criou a colônia de Alfredo Chaves. Em 1885, retomando a colonização devido à campanha abolicionista, a colônia Caxias ultrapassou o rio São Marcos e foi criada a colônia do mesmo nome. No mesmo período, para além do rio das Antas, surgia a colônia Antônio Prado. No início da década de 1890, para além do rio Carreiro, surgiu a colônia Guaporé e, na margem direita do rio Taquari, diversos grupos de imigrantes criaram povoados que depois se transformariam no município de Encantado.
Em Silveira Martins, o território relativamente pequeno foi ocupado em pouco tempo, o que levou o poder público a criar, já na década de 1880, o Núcleo Norte, atual Ivorá, e o Núcleo Soturno, atual Nova Palma, e, pouco depois, Jaguari, Toropi e Ijuí Grande.
Havia, porém, um sério problema: os custos da colonização para os cofres públicos. Para se ter uma idéia, a colônia alemã de São Leopoldo, com os demais núcleos que a cercavam, em 22 anos recebeu cerca de 500 contos de réis (um conto equivalendo a um milhão de réis). Já as colônias italianas, administradas diretamente do Rio de Janeiro, por meio do Ministério da Agricultura, no curto espaço de cinco anos, custaram aos cofres imperiais 25,782 contos. A documentação da época mostra uma mudança contínua nos cargos públicos das colônias, com intervenções nas quais eram demitidos, por corrupção, todos os funcionários. A solução adotada pelo governo foi a de emancipar as colônias, tornando-as distritos de outros municípios já existentes.
A primeira atingida foi Silveira Martins, cujo território, relativamente pequeno, fora povoado em pouco tempo. Em 1882, transformava-se em 5º distrito de Santa Maria. Os núcleos próximos a ela passaram, mais tarde, a distritos de São Martinho e Cachoeira do Sul. Em 1884, Caxias também foi emancipada, tornando-se o 5o distrito de São Sebastião do Caí, assim como Dona Isabel e Conde d’Eu, tornando-se distritos de Montenegro. Já Antônio Prado, em 1890, convertia-se em distrito de Vacaria.
Em 1889, implantou-se no Brasil o regime republicano. A constituição federal de 1891 transferia às províncias, que passavam a chamar-se estados, as terras devolutas remanescentes, bem como os encargos com a colonização. No Rio Grande do Sul, as terras devolutas limitavam-se então quase que exclusivamente ao Alto Uruguai, onde, em 1908, fundou-se a colônia de Erechim. Acordo entre o estado e a união procurou limitar o número de ingressos mensais. Como, porém, a crise do café impedisse a lavoura cafeeira de absorver a mão-de-obra imigratória, como em outros tempos, levas e mais levas de imigrantes chegavam, agora de trem, ao território gaúcho. Predominavam, neste momento, os poloneses. Estando ocupadas quase todas as terras de mata, o governo estadual, em 13 de julho de 1914, por decreto, declarava encerradas a imigração e a colonização subvencionadas no Rio Grande do Sul. Terminava, assim, um capítulo que durara 90 anos.
A partir de 1920, rareando as terras devolutas no Rio Grande do Sul, iniciou-se um movimento de reimigração, tomando o rumo do oeste de Santa Catarina e do Paraná, seguindo, inicialmente, pela estrada de ferro que margeava o Rio do Peixe. Em alguns municípios desses estados, a quase totalidade dos habitantes, ainda hoje, é de gaúchos ou de filhos de gaúchos. A partir da década de 1970, a Amazônia tornou-se o novo alvo dos descendentes de imigrantes sulinos, principalmente o estado de Rondônia. Entrementes, no Rio Grande do Sul, enquanto as áreas das antigas colônias permaneceram com população de origem predominantemente italiana, os descendentes de imigrantes disseminaram-se pelos demais municípios, exercendo profissão nas cidades ou tornando-se plantadores de soja, milho, trigo e arroz nas férteis planícies do Estado. Numa população de dez milhões de habitantes, mais de dois milhões de gaúchos possuem sobrenome paterno italiano.
O Rio Grande do Sul, apesar de tantas falhas, foi, sem dúvida, o estado que melhor aproveitou a colonização, embora não tenha sido o que acolheu o maior número de imigrantes. Dados levantados por Dietrich von Delhaes-Guenther (p. 36, 47, 55) apresentam o seguinte quadro dos principais grupos introduzidos nos períodos em que tais entradas foram significativas
:Principais grupos ingressos no Rio Grande do Sul (1824-1914)
Alemães |
Italianos |
Poloneses |
Total |
|
1824-1874 |
24.873 |
— |
— |
24.873 |
1875-1879 |
2.440 |
8.579 |
— |
11.019 |
1880-1884 |
1.257 |
8.993 |
— |
10.230 |
1885-1889 |
2.159 |
26.133 |
— |
28.292 |
1890-1894 |
6.065 |
21.591 |
16.188 |
52.370 |
1895-1899 |
1.648 |
4.613 |
2.082 |
10.437 |
1900-1904 |
1.036 |
2.336 |
466 |
5.182 |
1905-1909 |
2.068 |
1.687 |
6.498 |
12.893 |
1910-1914 |
6.498 |
2.256 |
17.308 |
31.735 |
1824-1914 |
48.044 |
76.168 |
42.561 |
187.031 |
Convém observar que esses registros, principalmente os do período imperial, têm lacunas. Há imigrantes que não foram registrados, enquanto outros, encaminhados para uma colônia, não chegaram até ela e deles não se teve mais notícia. Os melhores dados quantitativos existentes referem-se aos alemães ingressos entre 1824 e 1830. Os registros de imigrantes italianos iniciam em 1875, atendo-se quase exclusivamente aos desembarcados em Porto Alegre e geralmente encaminhados para as colônias. Já os documentos eclesiásticos mostram que desde a década de 1820 havia registros de italianos nos proclamas de casamento ou nos registros de batizado. Além do mais, uma ata da câmara municipal de Porto Alegre, de 1839, queixava-se de que o comércio de carne da cidade estava monopolizado por italianos, em prejuízo dos consumidores. Em 1865, o conde d’Eu, na comitiva do imperador, quando da marcha para Uruguaiana, observava que em Livramento, numa localidade de dois mil habitantes, a metade dos moradores não era brasileira, sendo uruguaios, argentinos e europeus, destacando-se entre estes os italianos. Já em 1871, fundava-se em Bagé a Società Italiana di Soccorso Mutuo e Beneficenza e, em 1877, criava-se na mesma localidade uma agência consular para atender a região de fronteira Brasil-Uruguai. Em Rio Grande, no porto marítimo da Província, em 1867, havia uma agência consular italiana (elevada a consulado em 1871), por meio da qual 406 peninsulares enviaram abaixo-assinado a D. Pedro II, felicitando-o pela promulgação de uma lei abolicionista. Em 1873, foi fundada, em Pelotas, a Società Italiana Unione e Filantropia. Em Santa Vitória do Palmar, havia italianos radicados desde a década de 1860. De fato, muitos indivíduos desembarcados em Rio Grande não foram registrados na capital da Província. Ademais, a fronteira sul e oeste, com o Uruguai e a Argentina, respectivamente, foi o caminho de ingresso no Brasil de milhares de italianos não computados nas estatísticas oficiais. Esses dois casos respondem por mais de dez mil ingressos.
A ocupação do solo: madeira para construir casas.
Quanto à proveniência regional, como o período da grande emigração para o Rio Grande do Sul coincidiu com a crise socioeconômica do norte da Itália, a grande maioria dos imigrantes provinha dessa região. Do sul vieram cerca de 15% do total, com destaque especial para Morano Calabro, província de Cosenza: há mais moraneses e filhos de moraneses residindo em Porto Alegre que na própria Morano. Já a imigração agrícola, responsável por cerca de ¾ do total, provém de localidades italianas não distantes entre si: no Vêneto, as províncias mistas de Vicenza, Treviso e Verona e a montanhosa província de Belluno; na Lombardia, Cremona, Mantova, parte de Brescia e Bergamo; Trento, no Trentino-Alto Ádige, Udine e a atual Pordenone, em Friuli-Venezia Giulia. Levantamentos indicam as seguintes proporções entre os imigrantes italianos agricultores: do Vêneto, 54%; da Lombardia, 33%; de Trento, 7%; do Friuli, 4,5%; outros, 1,5% (Frosi e Mioranza, 1975, p. 36).
A Ocupação do Solo
Ao contrário da Itália, onde a grande maioria dos agricultores vivia em pequenos vilarejos, indo ao campo durante o dia e voltando para casa à noite, o sistema de ocupação do solo no Brasil colocava as famílias relativamente distantes umas das outras. O governo, aproveitando-se da experiência acumulada, principalmente com a colonização alemã, desenvolveu um sistema de repartição das glebas de terra, consubstanciado na lei de 1850. Por ele, previa-se não só o tamanho, mas também a direção que os lotes rurais deveriam ter. A colônia era basicamente dividida em travessões ou linhas, que nada mais eram do que uma estrada em linha reta, com alguns quilômetros de comprimento. Ao longo do travessão ficavam os lotes rurais, com cerca de 250 metros de largura por mil metros de comprimento, fazendo fundos com os lotes de um outro travessão. Próximo à estrada era construída a residência do colono, que, em média, distava cerca de 250 metros da do vizinho. O tamanho do lote variava devido a fortes declives do solo, existência ou não de fontes de água, ou até mesmo maior ou menor proximidade do núcleo urbano. O tamanho médio era de 25 hectares, havendo alguns com somente 15, outros com até 35 hectares. Mas era possível adquirir somente meio lote, ou mesmo 1/4 ou 1/8 de lote. Por pobreza, por medo de não conseguir quitar, ou por julgar que era terra demais, muitos colonos não adquiriram o lote inteiro. O preço também variava, devido à posição, às aguadas ou à proximidade da vila, ou mesmo ao arbítrio de funcionários corruptos. O traçado da colônia previa local para uma ou mais vilas. Nestas, as ruas eram demarcadas em linha reta, com transversais cortando-as perpendicularmente. Lá estavam a administração da colônia, os poucos luso-brasileiros da região e os italianos que desejavam exercer outra profissão que não a de agricultor.
O interesse do poder público ao procurar imigrantes para o Rio Grande do Sul voltava-se para os agricultores. E, quando partiam da Itália, a declaração de profissão era quase sempre a de agricultor, embora entre a declaração e a realidade mediasse por vezes uma diferença. Inúmeros indivíduos diziam-se agricultores para serem aceitos mais facilmente, mas rumavam para o Brasil com intenção de exercer outra profissão. Da parte do governo, aliás, havia preocupação em contar com cerca de 10% de artesãos entre os que aportavam, a fim de possibilitar o sistema de produção da colônia.
Os recém-chegados, como em todos os grupos imigratórios, eram pessoas relativamente jovens. Dados indicam que, entre os adultos da colônia Caxias, 2/3 dos homens contavam entre 20 e 45 anos; já as mulheres, entre 20 e 40 anos (Giron, 1976, p. 35). O grupo vinha constituído basicamente por famílias, distinguindo-se de diversas outras imigrações, como a para São Paulo. Havia viúvos trazendo os filhos, havia casados que deixaram a família na pátria, para mandá-la vir posteriormente, havia solteiros viajando com a família de parentes. Mais de 85% dos homens adultos eram casados. Casais há pouco constituídos, com um número relativamente baixo de filhos: pouco mais de dois. No passar dos anos, tornaram-se numerosos os filhos, tendo-se tornado célebres as taxas de fecundidade da colônia italiana gaúcha. Estudo (Costa, 1996, p. 255 segs.) comparando a idade de casamento e o número de filhos por família em municípios da Província de Belluno – Arsiè (Fastro), Arten e Fonzaso –, com dados da colônia Dona Isabel, para onde emigraram muitas pessoas daquelas localidades, constataram que a média de idade na Itália, na época do casamento, era de 26,17 anos para os homens e de 23,06 para as mulheres. Já no Brasil a média baixava para 24,44 para os homens e 19,65 para as mulheres. Assim, a média italiana de 8,25 filhos por família, contra a média brasileira de 10,81, encontraria explicação não no aumento da taxa de fertilidade, mas nos cerca de 30 meses de antecipação do casamento por parte das imigrantes brasileiras.
A Religião: fator de unificação cultural
Os italianos eram católicos na quase totalidade. Na Itália, praticavam uma religião de cunho agrário, adaptada ao mundo em que viviam, com muitas festas, paramentos vistosos, cantos, orações em latim, fogos de artifício, prédicas solenes e freqüência aos sacramentos, com santos, sinos, velas e procissões. No bojo desta fé, a moral exaltava, entre outras virtudes, o trabalho como forma de ganhar o pão, a paciência no sofrimento, o respeito ao alheio, a palavra empenhada, a castidade e o amor ao próximo. Guarda destes preceitos era o sacerdote que, por meio da pregação e do confessionário, exercia forte controle sobre o grupo.
Na floresta, porém, não havia igreja nem padre, como também não havia traços de cultura. O associativismo do imigrante haveria de criar um novo mundo cultural, por meio da reconstrução do mundo religioso. Não foi algo tirado do nada, mas também não foi a simples transposição do que se fazia na Itália: valores e modos de viver transformaram-se e adaptaram-se.
Se as devoções individuais e familiares permaneciam inalteradas e, em casa, todas as noites, rezava-se la corona (o terço), no domingo percebia-se a distância entre o mundo que ficara no além-mar e o que se encontrava na América. O dia do traje domingueiro, do encontro com amigos, da missa solene, do trago no boteco, das conversas entre as vizinhas e dos namoros transformava-se em dia de pungente saudade. Para esquecê-la e, ao mesmo tempo, mantê-la viva, visitava-se o vizinho, contavam-se histórias, comentavam-se as poucas notícias recebidas e rezava-se ante um quadro ou uma estátua trazida da pátria. Não demorou e aventou-se a idéia da construção de uma pequena igreja. Às vezes, surgiam divisões e querelas na hora de escolher o local da construção, o material a ser usado (madeira, tijolo ou pedra) ou o santo padroeiro. E quando não se chegava a um acordo, mesmo que colocando dois ou três padroeiros, acaba-se por construir mais de uma capela no mesmo travessão. Se ainda não existisse um cemitério, era ele erigido junto ao templo. Pouco depois, surgiriam o campanário e o salão de festas. Dentro da capela, por vezes, funcionava a rudimentar escola. A união do grupo possibilitava progressivas melhoras, a compra de alfaias sagradas, de bancos, de sinos… A administração e a preparação das festas cabiam aos fabriqueiros, escolhidos pela comunidade. O culto comunitário, na falta de padre, tomava características leigas, pois o terço dominical era puxado por um leigo, também escolhido pelo grupo. A catequese era ministrada por alguém mais instruído. O cerimonial da semana santa e de funerais era presidido por quem já tivera alguma experiência como cantor ou sacristão na Itália. Ao líder religioso – que também preparava as pessoas no momento da morte, levando-as à reconciliação com os familiares e vizinhos e à disposição testamentária dos bens – cabia dar o aconselhamento correspondente ao que faria o sacerdote por meio do sacramento da confissão. Os colonos chamavam-no de nostro prete, ou prete de scapoera (nosso padre, ou padre da capoeira). Não raro, em caso de desavença com o sacerdote que vez por outra vinha da vila, os colonos não duvidavam em apelar ao bispo, dizendo que preferiam el nostro prete (o nosso padre) àquele que o bispo enviara.
A mesma comunidade que construíra a capela e organizara o serviço religioso escolhia a autoridade civil e social, o chamado capo-linea (o chefe do travessão). Cabia-lhe conciliar possíveis desentendimentos, conflitos de terras, queixas por causa de invasão da plantação por parte de animais do vizinho, ou do fogo que passara de um roçado para outro, etc. Se o nostro prete (nosso padre) devia ser uma pessoa piedosa, dada à oração e conhecedora dos problemas da religião, esperava-se do capo-linea que fosse alguém com liderança, objetividade e temperamento conciliador. Ele procurava fazer com que os conflitos fossem resolvidos o quanto antes, pois duas famílias desentendidas poderiam prejudicar o andamento e o bom nome da comunidade. E era criticado quem apelasse para o juiz, o delegado, a polícia ou o prefeito, em vez de resolver o conflito no local. A exceção era o apelo ao padre, a quem se respeitava como se fosse uma autoridade quase divina. Tanto na zona rural como na urbana, os casos mais difíceis eram levados até ele, e sua palavra era definitiva. Alguns sacerdotes, que por muitos anos atuaram em uma comunidade (muitos deles vindos da Itália), são recordados até hoje por sua piedade, seus ditos jocosos, a sabedoria de vida e até mesmo pela habilidade política, capaz de dar razão às duas partes.
A religião do colono radicava-se em profunda piedade interior. Por outro lado, mantinha-se, como na pátria, presa a coisas exteriores: velas, fogos, cantos, cerimônias e imagens de santos. Os lindos altares de além-mar estavam repletos de estátuas, muitas delas tidas como milagrosas. Lá estava a Madona, sob diversas invocações; lá se encontravam os santos, cada um deles especialista em atender alguma necessidade humana: Santo Antônio, o casamenteiro e clínico geral; São Pedro, o primeiro papa e patrono da autoridade eclesiástica; Santa Lúcia, virgem e mártir, médica dos olhos; Santa Rita de Cássia, a santa das coisas impossíveis; São José, padroeiro do trabalho. E vinham os santos dos vilarejos locais: São Vigílio, Santos Vitor e Corona, Santo Isidoro, São Roque, São Valentim, São Jorge… Havia também anjos. Enfim, um exército de intercessores ante Deus. Uns podiam mais, outros menos, e houve mesmo o ocaso da reconstrução de uma capela, destruída pelo vendaval, quando um colono propôs que se trocasse o patrono, Parché quel li no l’è stà gnanca bon de tender la so cesa (Porque esse não foi nem capaz de cuidar de sua própria igreja).
Algumas estátuas vieram da Itália, mas eram poucas. Foi preciso recorrer à habilidade do artesão, capaz de esculpir na madeira as imagens da devoção do povo. Também houve artistas que vieram da Itália, como Tarquínio Zambelli, que marcou época em Caxias. Em geral, porém, o escultor era um santaro (santeiro), um agricultor habilidoso, mas sem grandes conhecimentos de teoria artística. Havia estátuas completas, e também as imagens de roca, que possuíam somente cabeça e mãos, ficando o resto do corpo por conta de uma armação de madeira ou de arame, recoberta de tecido. Os rostos dos santos não diferiam muito entre si, mas pelas vestes e outras características adivinhava-se de quem se tratava: um frade sem barbas, com o menino Jesus no colo, era Santo Antônio; um velho barbudo com um molho de chaves, era São Pedro; um pobre com uma ferida na perna e um cachorrinho, São Roque; um outro, com um porquinho ao lado, Santo Antão; uma senhora, perto de uma roda de moinho, Santa Catarina. Podia-se também, por segurança, escrever o nome no pedestal. Na singeleza destes trabalhos, muitas vezes se escondiam verdadeiras vocações de artistas.
A Língua e a Escola
Poucos imigrantes conheciam a língua oficial da Itália. Não seria no Brasil que haveriam de dar-se ao luxo de aprender o italiano gramatical, eles que se tornaram italianos ao deixar a pátria, pois nela identificavam-se como beluneses, veroneses, vicentinos, bergamascos… jamais como italianos.
A convivência entre imigrantes de várias proveniências, numa situação de isolamento, com poucas escolas fundadas por eles próprios, onde se ensinava mais dialeto que italiano ou português, com pregações religiosas em italiano, com autoridades brasileiras que, seguido, procuravam expressar-se na língua deles: tudo isso levou a um processo de fusão entre os diversos dialetos, criando-se uma língua comum, à qual acrescentaram-se palavras de proveniência portuguesa. Trata-se de um dialeto novo, semelhante, mas não idêntico, aos dialetos trivênetos e lombardos, e que seguiu uma evolução própria, à medida que se estancou a vinda de novos imigrantes e a comunicação com a Itália. No decorrer dos anos, enquanto o italiano oficial perdia ainda mais a importância no ensino e na pregação, o dialeto ia ocupando novos espaços, tornando-se a língua franca, na qual se redigiam jornais, pregava-se e negociava-se. A situação de insularidade e a relativa auto-suficiência das colônias favoreceram a sobrevivência da língua geral, só atingida quando da campanha de nacionalização das escolas e da proibição de expressar-se em línguas estrangeiras, no final dos anos 30. Mesmo assim, nas zonas rurais, ela é a língua habitual de comunicação, principalmente entre os mais velhos, e onde quer que haja descendentes de colonos italianos gaúchos, de Santa Catarina até a Amazônia, fala-se, canta-se e, por vezes, também se blasfema em dialeto.
Em 1924, o jornal Staffetta Riograndense, hoje Correio Riograndense, o grande jornal da colônia, iniciava a publicação, em dialeto, de uma série de estórias, da autoria do frade capuchinho Aquiles Bernardi, conhecido como Frei Paulino de Caxias, tendo como principal personagem a figura que deu nome à obra: Nanetto Pipetta. O sucesso foi imediato, como se pôde constatar pelo rápido aumento do número de assinantes do periódico. Mudando a direção, porém, esta solicitou ao autor que “desse os santos óleos a Nanetto”, pois desejava publicar um texto mais sério: Robinson Crusoé, em italiano gramatical. Mas os leitores jamais se esqueceram de Nanetto, o herói desajeitado e sem sorte, em quem viam a si mesmos nas peripécias da viagem pelo mar e da adaptação a uma nova pátria. Por insistência foi lançado, em 1937, o livro Vita e stòria de Nanetto Pipetta, nassuo in Itàlia e vegnudo in Mèrica per catare la cucagna. Em 1975, a quarta edição comemorou o centenário da imigração italiana no Estado. Em 1990, publicou-se a 9ª edição desta obra, considerada pela crítica como o melhor e mais importante texto da imigração italiana. O mesmo jornal publicou também o seriado Togno Brusafrati, de Ricardo D. Liberali, e, anos mais tarde, Stòria de Nino, de Aquiles Bernardi. Após 1975, reavivou-se o interesse pela história regional e pelo dialeto. Dentre as inúmeras obras citadas, cabe mencionar Poemas de um imigrante italiano (1876), de Ângelo Giusti, um colono que conheceu os primórdios da vida na nova terra, e Os pesos e as medidas (1981), num dialeto de cunho urbano, de Ítalo Balen, seguramente o melhor poeta dialetal da colônia italiana.
Hoje, se por um lado os meios de comunicação e a universalização do ensino em língua portuguesa fazem com que a jovem geração tenha dificuldade em falar o dialeto, por outro vê-se um novo interesse por esta língua. Colunas de jornais, programas radiofônicos, teatro e mesmo a missa em dialeto, além do ensino em algumas escolas, mostram a pujança de uma língua que, orgulhosa, se apresenta em adesivos de automóveis, onde se lê: Parlar Talian ou Talian la nostra lìngua…
Em algumas pequenas localidades, tiveram que imparar a balar coi orsi (aprender a dançar com os ursos), pois em caso contrário não se fariam compreender. Em Serafina Corrêa, realiza-se todos os anos a semana do município, quando a língua oficial é o talian até para os atos da administração pública.
A escola vem logo à mente quando o assunto é a língua falada por um grupo. Pois bem, o grupo de imigrantes teve um conceito bem definido de educação formal. É fácil encontrar afirmações que apontam o italiano como contrário à escola, considerada menos importante que o trabalho. Em realidade, o que ele não admitia era uma escola que impedisse o trabalho ou o afastasse dele, sobretudo no tempo do plantio e da colheita, ou uma escola que não se voltasse para a vida, que não fosse centrada no trinômio ler–escrever–contar, três elementos necessários à comunicação e à gerência dos próprios negócios. O estudo devia responder às exigências do trabalho, e a muitos parecia mesmo que os filhos, com pouco estudo, já haviam aprendido o suficiente para a vida, principalmente quando o pai, quase analfabeto, olhava o quanto conseguira acumular. Um estudo meramente teórico carecia de sentido. Mi son omo de pràtica e nò de gramática (Eu sou homem de prática e não de gramática), diziam tanto o agricultor quanto o comer-ciante e o artesão. Também o apego excessivo ao estudo não passava pela cabeça de rudes trabalhadores, que aconselhavam os filhos: Basta de libri desso, che non te magni mia libri sta sera (Chega de estudar, porque hoje à noite não vais jantar livros). Talvez o caso mais significativo do pragmatismo do italiano perante a escola seja o contado pelo missionário capuchinho Frei Bernardin d’Apremont. Devido à insistência do frade, um colono resolveu matricular os dois filhos na escola, mas fez a seguinte proposta: pagaria apenas uma matrícula, e os filhos se alternariam, indo à escola um dia um, e outro dia outro. Desse modo, ele economizaria dinheiro, os dois aprenderiam a ler, a escrever e a contar, e um deles estaria sempre em casa para auxiliar na plantação.
Mesmo assim, foi relativamente grande o número de escolas construídas pelos imigrantes por conta, ou com auxílio da igreja e das autoridades. Se a colônia alemã contou com um sistema escolar melhor que o da italiana, esta, contudo, superou em muito a zona luso-brasileira. Eram geralmente escolas de um só professor. O mestre, algumas vezes, era um indivíduo adoentado, que não podia trabalhar na roça como os outros; outras vezes, tratava-se de alguém que, na Itália, freqüentara a aula por mais tempo. Em algumas escolas públicas, o professor só falava o português e não conseguia comunicar-se com os alunos, que facilmente abandonavam a classe. Noutras, o curso era trilíngüe: o professor dispunha de um manual em italiano, do qual traduzia para o português e, depois, para esclarecer melhor, para o talian. Assim, o aluno ficava sabendo que para pioggia os brasileiros diziam chuva, que nada mais era, de fato, que la piova, no talian.
A língua familiar, com predominância vêneta, foi se estruturando como língua autônoma, integrando os diferentes dialetos trivênetos e lombardos, que é hoje conhecida como talian. A Campanha de Nacionalização do Estado Novo e a Segunda Guerra silenciaram o italiano gramatical nos atos públicos, convivências e festas, e assim o talian passou a ser o idioma único da família e, hoje, é o grande tradutor da vida e história dos imigrantes italianos e de seus descendentes.
O Projeto de Vida
O abandono governamental dos primeiros tempos, dentro de tudo o que tinha de negativo, foi, contudo, uma das razões da manutenção da identidade italiana, servindo para colocar o imigrante ante um dilema: ou lutava com todas as forças para sobreviver, ou haveria de ser levado de roldão para a dureza da vida daqueles primórdios. Desafiado, ele reelaborou um mundo de valores, no qual a propriedade, a parcimônia e o trabalho ocupavam lugares dominantes.
Do fundo da gleba, o imigrante surgia como proprietário rural, deixava de ser o contadino de além-mar. A terra, para ele, jamais significou um empreendimento financeiro, representando também mais do que um local para trabalhar e viver: ela era o sinal de redenção econômica, de liberdade e de ascensão social. A pátria fora deixada porque nela faltava a perspectiva de poder tornar-se proprietário, tal como, segundo dizia a propaganda, era possível tornar-se no Brasil e como, de fato, estava acontecendo no Rio Grande do Sul. “A minha colônia”, “aqui cada um é dono de seu nariz”, “sou tão rico como um conde”, “aqui, quem quer mandar, deve pagar para tanto” são expressões de colonos que traduzem muito bem o fascínio que alguns hectares de floresta exerceram sobre aquela pobre gente. E quando um jovem pensava em casar, devia inicialmente procurar uma propriedade, na qual pudesse ganhar a vida, pois parecia vergonhoso trabalhar como empregado de alguém, quando existia a possibilidade de ser um agricultor autônomo. Esta mentalidade explica, em parte, a contínua procura por novas terras, onde os indivíduos pudessem ser proprietários, e talvez seja, ainda hoje, um dos fundamentos subjacentes dos movimentos de colonos sem-terra.
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O trabalho surgia, assim, como a fonte da liberdade, como um valor mítico, encerrando em si o segredo da dignidade e da honorabilidade. Representava, de certo modo, o conjunto de todas as virtudes ou, ao menos, era capaz de desculpar alguém por vícios que viesse a ter, como o abuso do álcool, os rompantes de cólera, as blasfêmias e, até mesmo, no caso das mulheres, a pouca beleza. Por mais de uma vez foi dito de jovens casadouros que o rapaz era pobre, mas trabalhador, ou que a moça era bonita, mas não sabia fazer nada. Há mesmo quem afirme que a prevenção do italiano contra o negro não estava ligada tanto à cor, mas à pouca importância que este dava ao trabalho. Não era sem uma certa inveja que se dizia de uma família: I laora come orsi, ma i ga de tuto (Trabalham intensamente, como ursos, por isto têm de tudo).
Se alguns indivíduos que não nasceram ricos conseguiram fortuna através do trabalho, por que se haveria de excluir de antemão a possibilidade de enriquecer por este que parecia ser o único meio legítimo de amealhar fortuna? Naquelas circunstâncias, não há dúvida, muitos adquiriram um razoável padrão de vida, e alguns até mesmo conseguiram acumular muitos bens. Os que, partindo do nada, ficaram ricos, transformaram-se em conselheiros e árbitros da população, sendo ouvidos até pelo clero.
Paralelamente ao trabalho, caminhava a parcimônia, o espírito de economia que guardava o frasco va-
zio, o prego enferrujado, o trapo de roupa, que juntava grãos caídos e economizava os centavos. A vida difícil da Itália educara-os deste modo, e não seria a situação mais favorável do Brasil que lhes mudaria os hábitos. Aquilo que o berço não dera, o trabalho e a economia haveriam de conceder-lhes. E nisso o italiano sentia-se diferente do luso-brasileiro, em quem recriminava a generosidade com que gastava o dinheiro e, às vezes, esbanjava a fortuna.
Mas, na solidão da floresta, o indivíduo sozinho não teria resistido. O apoio mútuo que se desenvolveu dentro do lar cimentou uma notável solidariedade familiar. A família monogâmica, de direito e de fato, trazia sua organização de além-mar, em que também já constituía o núcleo da produção, nos moldes antigos da grande família patriarcal, com muitos filhos, genros, noras e outros parentes. Em solo gaúcho, os filhos, à medida que iam casando, procuravam adquirir a própria colônia, e o último deles é que, costumeiramente, ficava morando com os progenitores e herdando a propriedade, geralmente com indenização aos demais. O pai representava a autoridade maior, aquele que determinava o serviço, administrava os bens, negociava e gerenciava o dinheiro. Cabia à mãe o trabalho do lar, o cuidado dos filhos pequenos, além de acompanhar o marido à roça, sempre que possível. Por vezes ela assumia o comando da família, e então se ouviam os vizinhos comentar La cesa la ze pi alta del campanile (A igreja é mais alta que o campanário).
A longa viagem de navio, as peripécias do caminho e a vida nos travessões, durante os primeiros tempos, criaram novas formas de solidariedade, que iam além da familiar. O grupo fazia a colheita quando um colono se encontrava doente. A conservação das estradas vicinais só foi possível com a colaboração de todos. Por ocasião do primeiro falecimento, um acordo entre os vizinhos estabelecia o local do cemitério. Sem ter a quem apelar, sem dispor de modelos prontos, o grupo teve que encontrar respostas para necessidades culturais, religiosas, esportivas e administrativas, teve que escolher seus líderes e conferir-lhes poderes de gestão e promoção do bem-comum.
A Medicina quando não havia Médico
Nos primórdios, as distâncias, devido às péssimas vias de comunicação, eram enormes, e os recursos, parcos. Faltavam hospitais, quase não havia médicos. Desses, alguns deixaram nome por sua competência e dedicação; outros, nem tanto. Muitos eram meros charlatões, responsáveis por ditos como: Sbàglio del dotor, volontà de Dio, ou Sbàglio del dotor el cemitero paga (Erro médico, vontade de Deus. Erro médico, cemitério paga).
Nesta situação, desenvolveu-se uma medicina doméstica baseada nos costumes trazidos, nas tradições das populações nativas e nas experiências que se iam fazendo dentro de uma nova realidade. Pertencia a esta medicina o uso de plantas nativas, dentro de um receituário no qual todo tipo de doença era contemplado e que incluía também compressas, banhos, cataplasmas, clister e purgantes.
Três profissões foram importantes no atendimento à saúde: a parteira, o giusta-ossi e a benzedeira. A parteira, com a prática acumulada pelos anos, era a pessoa indispensável em meio a famílias de numerosos filhos. Não se considerava o parto, mesmo nas vilas e cidades, como caso a ser assistido pelo médico. Cabia à parteira orientar a futura mãe durante a gravidez e assisti-la durante o nascimento do filho. Técnicas transmitidas por gerações, incluindo medidas de higiene, a prática constante e a dedicação ao ofício explicam porque eram raros os casos de óbito da mãe ou do filho quando dos trabalhos de parto.
Já uma figura que sobrevive ao tempo e à própria medicina formal é a do giusta-ossi. Era uma tradição na Itália, passando de pai para filho. Pessoas eminentemente práticas recompunham fraturas, curavam luxações e torções, usando apenas o tato e cuidados naturais. Uns apelavam para a força e via-se então o pobre paciente, com a perna quebrada, tomando uma garrafa de cachaça e sendo depois segurado por três ou quatro pessoas da vizinhança, enquanto o giusta-ossi lhe recompunha o membro. Outros, trabalhando com água morna e massagens, atuavam de modo bem menos doloroso. Em muitas localidades seu trabalho era reconhecido pelos próprios médicos. Ainda hoje, esses práticos possuem cativa clientela.
Da Agricultura à Indústria
Os imigrantes italianos do Rio Grande do Sul foram procurados na Europa com a finalidade específica de serem produtores agrícolas em pequenas propriedades. Não interessava ao governo vê-los como criadores de gado – que era a atividade dominante das grandes fazendas do Sul –, nem como monocultores de produtos que o Sudeste ou o Nordeste do país produziam à fartura e exportavam para todo o mundo, como café e açúcar. A função deles deveria ser complementar, produzindo para o consumo interno do país. E assim aconteceu: em poucos anos, onde antes era floresta virgem, cresciam agora as plantações. Cônsules, fiscais do governo ou visitantes, todos se encantavam com o sucesso da agricultura dos colonos. O cônsul Pascoale Corte, em documento elaborado para a exposição de Turim, apresentava em 1884 a seguinte estatística:
Produção agropecuária das colônias em 1884*
Habitantes |
Eqüinos |
Bovinos |
Suínos |
Trigo |
Feijão |
Milho |
Vinho |
|
Caxias |
12.540 |
10.700 |
3.500 |
12.000 |
1.200 |
1.600 |
3.200 |
2.900 |
D. Isabel |
8.339 |
11.700 |
3.800 |
12.000 |
1.445 |
1.736 |
3.011 |
2.795 |
C. d’Eu |
6.036 |
1.732 |
701 |
8.422 |
794 |
1.608 |
3.556 |
2.759 |
S. Martins |
6.001 |
2.000 |
1.000 |
10.000 |
1.200 |
1.600 |
3.200 |
2.900 |
TOTAL |
32.916 |
26.132 |
9.001 |
42.422 |
4.639 |
6.534 |
12.967 |
11.354 |
*
animais em unidades, cereais em toneladas, vinho em litros.
Em suas lavouras, portanto, o colono visava obter gêneros necessários para a família, e só depois de satisfeitas as necessidades de consumo caseiro é que se dispunha a colocar no mercado os excedentes que, por sua vez, serviam para suprir as necessidades do mercado regional e nacional, mas não para obter divisas por meio da exportação. Surgiu assim um mercado interno, acessível aos pequenos proprietários.
O sistema de cultivo – imitando nisto a colonização alemã que, por sua vez, aprendera muito até mesmo dos indígenas – era o da derrubada e queimada da mata, adotando-se depois o rodízio de culturas, de tal modo que uma parte da propriedade sempre descansasse, recobrindo-se de capoeiras que, posteriormente, seriam cortadas, repetindo-se a queimada. A técnica, embora primitiva e representando um recuo ante o que se praticava na Europa, era a única possível no momento, e o solo da mata virgem, nos primeiros tempos, correspondia com férteis colheitas.
Produtos característicos da colônia italiana foram o trigo, o vinho e o milho. Nenhum deles foi introduzido pelo imigrante peninsular, pois o Rio Grande do Sul já os tinha desde os tempos das reduções jesuíticas, embora não em tais escalas. O trigo fora intensamente cultivado pelos açorianos e, no início do século XIX, a província o exportava para o resto do país e para o exterior. Quando a ferrugem o atingiu, os agricultores em pouco tempo se desinteressaram pela sua cultura e, anos depois, o Rio Grande do Sul voltava a importar este cereal. O empenho em fazer com que o trigo voltasse a ser cultivado no Estado demorou muitos anos, até para obter resultados satisfatórios, quer pelo pouco interesse das autoridades, quer pela falta de técnica e de boas sementes. Foi na região de imigração italiana que o plantio acabou por triunfar. Em 1909, a produção era de 15.250 toneladas, subindo para 110 mil em 1923, e para 248 mil em 1948. Depois, a introdução de máquinas na lavoura fez com que o centro produtor, desde a década de 1950, passasse da região montanhosa da Serra para as terras onduladas do Planalto e das Missões, elevando a área cultivada no Estado de 120 mil hectares em 1920 para cinco milhões em 1950 e para 14,6 milhões em 1970.
Moinho à água, que caracteriza a paisagem das colônias italianas.
Já o milho foi matéria-prima para a polenta, o prato mais conhecido dos imigrantes. Foi cultivado desde cedo, pois era o responsável, ao mesmo tempo, pela criação de suínos, graças aos quais os colonos sempre contaram, não só com a banha, mas também com as mais diferentes espécies de salames e presuntos. Inúmeros frigoríficos, voltados para a industrialização de produtos suínos, surgiram e ainda operam na região, na qual, porém, a criação e abate de galinhas tornou-se a principal atividade.
O que, todavia, mais caracterizou a imigração italiana foi o cultivo da uva e do vinho. Até 1875, as experiências no Rio Grande do Sul não haviam sido das mais expressivas, e o produto era de qualidade inferior. Pouco antes da Guerra dos Farrapos (1835-1845) foram introduzidas na província espécies americanas, entre as quais a Isabel. O interesse do Estado e a procura do comércio no início do século XX fizeram com que fossem importados balecos de diferentes espécies, ao mesmo tempo em que eram fundados institutos de enologia. Os colonos, para superar as dificuldades comuns, fundavam cooperativas vinícolas. Com isso, a produção foi crescendo e melhorando. Em 1920, eram cultivados 11.380 hectares, 25.523 em 1950 e 47.682 em 1970. Hoje, a produção de vinho no Estado supera 200 milhões de litros, provindo quase toda ela da zona de colonização italiana, na qual cerca de 80 mil pessoas dedicam-se à vitivinicultura. A entrada de firmas multinacionais e a abertura para a Argentina e o Chile atingiram os produtores, mas a melhora nos preços internos voltou a trazer esperanças para o setor. Atualmente, cerca de 80% de toda a produção brasileira de vinho provêm da colônia italiana gaúcha, sendo que a Festa da Uva de Caxias do Sul é a maior festa agrícola do país. Também as outras cidades da imigração fazem suas festas da uva e do vinho com grande sucesso turístico.
No decorrer dos tempos, porém, houve uma transformação radical na colônia italiana, que de agrícola transformou-se em industrial. Ilhados, com poucos recursos, em uma região de difícil acesso, num país de poucas indústrias, os italianos – tal como já o haviam feito os alemães – valeram-se de habilidades artesanais a fim de suprir boa parte de suas necessidades.
Durante os meses de inverno, no Velho Mundo, quando era impossível praticar a agricultura, boa parte do tempo era dedicada à confecção de utensílios e instrumentos. Essas técnicas, mesmo que rudimentares, tornaram-se depois de grande valia. Houve um surto geral de artesanato tanto nas vilas quanto na zona rural, desde os primórdios. Assim, já em 1884, na Colônia Caxias, havia a seguinte relação de ofícios e profissões: negociantes, 25; tropeiros, seis; professores, cinco; padeiros, quatro; oleiros, dois; santeiros, um; músicos, três; pintores, três; amolador, um; farmacêuticos, dois; moleiros, um; açougueiros, três; relojoeiros, um; engenheiros, um; sapateiros, oito; carroceiros, dois; hoteleiros, seis; fabricantes, seis; ferreiros, cinco (Giron, 1976, p. 33). Um ano antes, visitando Conde d’Eu, o cônsul Enrico Perrod constatava que a localidade tinha forte indústria agrícola, assim discriminada: três olarias, 20 moinhos de água, uma serraria a vapor, quatro serrarias a água, duas fábricas de cerveja, 12 casas de comércio, dois ferreiros, dois sapateiros, dois alfaiates, dois carpinteiros. Entrementes, em Dona Isabel havia 40 casas de comércio, três ferreiros, um açougueiro, um hoteleiro, quatro sapateiros, dois alfaiates, quatro fábricas de licores, quatro fábricas de cerveja, uma marcenaria, quatro olarias, uma fábrica de cerâmica, um curtume, 60 moinhos hidráulicos, uma serraria a água, uma moenda de cana.
Esta economia familiar, que haveria de crescer ainda mais durante diversos anos, começou a definhar na medida em que a economia do colono se inseria na economia de mercado e o artesanato colonial passava a ser substituído por produtos oferecidos pelos comerciantes. As casas de comércio adquiriam uma importância cada vez maior. Nelas, conhecidas como casas de negócio, organizou-se um sistema que, em seu conjunto, desempenhava as funções hoje atribuídas ao supermercado, ao banco, à transportadora e à manufaturadora de produtos primários. Lá o colono encontrava tudo de que necessitava, e a ela entregava os próprios produtos, já que as dificuldades de transporte impediam-no de levá-los diretamente aos centros consumidores. Nos livros de contabilidade do comerciante havia uma página para cada freguês, anotando-se como crédito a safra que fora entregue e, como débito, as compras que iam sendo feitas no decorrer do ano. O colono confiava ao comerciante até mesmo suas economias em dinheiro, e este, de sua parte, fazia pagamentos a terceiros em nome do colono. Muitas casas de comércio dispunham de aparelhagem para moer o trigo e o milho, para o abate de suínos e para a preparação do vinho. À medida que os negociantes foram enriquecendo, graças ao acúmulo de capital obtido através das transações comercias, foram também investindo parte de seus lucros em alguns ramos da indústria, principalmente em empreendimentos vinícolas, madeireiros, tritícolas e de produtos suínos. Suas firmas concentravam-se, sempre mais, em áreas urbanas. Paralelamente, um antigo artesanato urbano evoluiu e foi-se adaptando às novas situações. Algumas indústrias moageiras e vinícolas, bem como boa parte da indústria metal-mecânica, parecem provir mais do artesanato que do comércio. A indústria metal-mecânica de início trabalhou sob encomenda, ou variando a produção conforme as estações. Consolidou-se, depois, durante as duas guerras mundiais, devido às dificuldades de importações.
O processo de aceleramento da industrialização no Brasil, a partir do governo Kubistchek, no final dos anos 50 e começo dos 60, atingiu favoravelmente a zona colonial italiana, onde o número de fábricas, algumas de grande porte, é, proporcionalmente, dos mais elevados do país. Se, durante as décadas de 40 a 50 a região colonial abriu-se para o Brasil, constata-se que, depois, principalmente após 1980, houve uma abertura para o mundo. As empresas fundadas e geridas pelos italianos e pelos seus descendentes, arroladas nesta obra, expressam a crescente presença e significado do trabalho italiano no Rio Grande do Sul.
* Luis Alberto De Boni
é ensaísta, pesquisador e professor em filosofia
* Frei Rovílio Costa
é escritor e pesquisador da imigração italiana
Referências Bibliográficas
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