Cicero acusando Catilina no senado (Afresco de Cesare Maccari, século XIX). (Reprodução)

Por qual motivo a imprensa não pode documentar uma assembléia eleitoral convocada para a escolha dos quatro representantes do Brasil no CGIE – ‘Consiglio Generale degli Italiani all’Estero’? A apresentação formal e o discurso dos candidatos, a reação dos selecionados eleitores vindos de associações indicadas pela Embaixada a somarem-se aos 120 conselheiros dos Comites – ‘Comitati degli Italiani all’Estero’, o sistema secreto de votação, a contagem dos votos, a reação dos eleitos e derrotados após semanas inteiras de diálogos, escaramuças e conchavos… tudo isso não interessa aos representados, isto é, à grande comunidade ítalo-brasileira calculada em 35 milhões?

Quem disse que a imprensa não pode registrar jornalisticamente tudo isso? Numa primeira instância, foi a Embaixada. Não tendo recebido convite (nem informações sobre o evento), dia 19/02 manifestei ao setor de imprensa da Embaixada a “minha intenção e interesse de realizar a cobertura das eleições para o CGIE, no próximo dia 9 de abril”. Como resposta, recebi a seguinte orientação: “Por ocasião da abertura da sessão (prevista para o próximo dia 9 de abril, com credenciamentos a partir das 8hs00), a imprensa local poderá apresentar uma específica solicitação para a cobertura, que poderá incluir apenas breves vídeos e algumas fotos”.

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Não estamos falando de passagens aéreas, hotel e despesas de viagem e, sim, apenas de direito ao trabalho, em primeiro lugar; em segundo, dever profissional de cobrir evento relevante à comunidade ítalo-brasileira; em terceiro, à liberdade de imprensa e “diritto di cronaca”, como dizem os italianos. Não me conformei e, no dia 22/03, escrevi diretamente ao embaixador Francesco Azzarello, nos seguintes termos: “Permito-me escrever em português, dada a sua manifesta decisão de aprender a nossa língua portuguesa, fato pelo qual já externei meu apreço publicamente.

Ainda lhe agradecendo por ter permitido que eu registrasse sua visita, em Curitiba, à nova sede consular (a ordem que eu tinha recebido era exatamente o contrário, e só não fiz mais devido aos vetos recebidos), venho às sua presença para expor, com todo o respeito, minha contrariedade à orientação que acabo de receber desta Embaixada no caso da Assembléia “Paese”, concomitante à eleição da nova representação do Brasil junto ao CGIE, no dia 9 de abril próximo.
Em primeiro lugar não tenho recebido nenhum comunicado, informação ou convite sobre o evento que, entretanto, é indubitavelmente de grande relevância para a grande comunidade ítalo-brasileira e que Insieme sempre procurou seguir em detalhes. Afinal, serão nossos representantes na instância institucional máxima.
Em segundo lugar, ninguém está solicitando a esta Embaixada apoio financeiro ou cobertura de custos, seja com passagem, seja com alojamento ou alimentação. Os recursos que sustentam as atividades de Insieme ultimamente prescindem até mesmo do “contributo stampa” do governo italiano, como bem o Senhor deve saber. E no entanto continuamos a dinfundir a língua italiana, já que é ela a ter o maior destaque no material sempre bilingüe publicado.
Em terceiro, sair de Curitiba para chegar em Brasília sem saber ao certo se, e o que é possível fazer, tendo ainda a explícita orientação caprichosamente restritiva (“apenas breves vídeos e algumas fotos”, como me acabam de escrever), não rima com o investimento necessário para efetuar a cobertura do evento em si e, também, a oportunidade de colher informações, impressões, sentimentos, depoimentos, imagens e tudo o mais que uma reunião do tipo oferece a um jornalista que, na medida do possível, procura ser atento às questões da comunidade em que vive.
Gostaria muito, enfim, de contar com a sua compreensão (para não dizer colaboração) para com o nem sempre fácil trabalho da imprensa, mesmo que ela às vezes coloque ideias e conceitos em contraposição (gerando, como o Senhor gosta de dizer, polêmica), geralmente apenas e com frequência timidamente espelhados na realidade de nossa comunidade que não é uníssona nem unívoca, mas é rica, criativa, grande e generosa. Fico no aguardo de sua orientação. Com sinceridade e cortesia.”
A resposta me chegou no dia 24, mas subscrita pelo chefe da Chancelaria consular e coordenador da rede consular no Brasil, Carlo Jacobucci (filho do ex-embaixador no Brasil na virada do século, Michelangelo Jacobucci), a pedido do embaixador Azzarello, que se encontrava “empenhado numa missão fora de Brasília”. Na correspondência, Jacobucci informava (em texto traduzido por nós) que “a orientação fornecida pela Embaixada em relação à cobertura da imprensa sobre o evento foi explicitamente estabelecida pelo ‘Ministero degli Affari Esteri e della Cooperazione Internazionale’ e se aplica a todas as assembléias “paese” do mundo. Sou, portanto, constrangido a repetir que nos trabalhos da Assembléia não é permitida a participação do público: na abertura da sessão a imprensa local poderá efetuar, mediante explícito pedido, breves tomadas de vídeo e tirar algumas fotografias”. Se eu tivesse outros pedidos “mais específicos” – acrescentava o e-mail – sobre o evento, “seremos felizes de avaliá-los sob a luz das linhas gerais fornecidas pelo Maeci”.

Informando já ter comprado passagem, respondi a Carlo Jacobucci nos seguintes termos: “Agradeço a sua pronta resposta. “Devo lhe confessar que estranho tal orientação, de vez que em eventos iguais anteriores (em 2004 e em 2015) tive ampla liberdade para desenvolver meu trabalho que hoje se constituiu na única memória para a história de tais eventos, a ponto de ter sido convidado a desenvolver matéria especial por ocasião dos 35 anos de atuação dos Comites/CGIE, como se pode ver a partir da página 67 da edição de novembro último de Insieme: http://www.arquivo.insieme.com.br/edicoes/insieme%20269.pdf
Sobre “pedidos específicos” referidos em sua resposta, reafirmo minha intenção de, sem causar interferência de qualquer espécie no desenvolvimento dos trabalhos da assembléia eleitoral que consagrará os quatro representantes da imensa comunidade ítalo-brasileira perante o CGIE, poder documentá-la em sua inteireza, pois não estamos falando da eventual participação de “público” e, sim, do trabalho de imprensa, essencial para a democracia de países que a prezam, como é o caso da Itália. Cordialmente.”

A nova resposta de Jacobucci veio no dia 32/03: “Consultado novamente o Maeci, infelizmente tenho que lhe comunicar que me foi reafirmado que não é possível à imprensa acompanhar os trabalhos, e que na abertura da sessão será possível efetuar, sob explicita solicitaçãqo, breves tomadas de vídeo e tirar algumas fotos. Foi-me confirmado também que as mesmas instruções foram daqdas em 2015”.

Fim de linha. Fui ter com os senadores Ricardo Merlo e Fabio Porta. Merlo me respondeu apenas que não tem boas relações com o embaixador Azzarello. Porta comprometeu-se a tirar a questão a limpo, lamentando “que o papel fundamental da midia pela informaçao dos italianos no exterior não sempre seja suficientemente valorizado pela nossa diplomacia”. Foi até a Farnesina mas a resposta veio assim (e aqui a mantemos em língua italiana):

“(…) In realtà ci siamo mossi in linea con l’esperienza del 2015 (che già costituiva, a quanto mi dicono, una… apertura rispetto al passato). Anche per questa tornata di rinnovo del CGIE non sarà dunque possibile prevedere la stampa all’interno della Sala Assembleare.

In apertura di sessione (quindi prima che la seduta inizi ufficialmente) abbiamo comunque previsto che la stampa locale possa effettuare, dietro esplicita richiesta, brevi riprese video e scattare alcune fotografie. Questa è l’indicazione che abbiamo dato alle 17 Sedi coinvolte dall’esercizio elettorale, inclusa Brasilia.

In generale, infatti, ai lavori dell’Assemblea Paese non è consentita la partecipazione del pubblico: i soli partecipanti ammessi sono i membri dei Com.It.Es., eletti e cooptati, i designati delle Associazioni (in Brasile nella misura del 45% dei componenti dei Com.It.Es.), ed eventuali candidati esterni, che partecipano con il solo diritto di parola e a loro spese ai lavori assembleari (…)”

Qual a saída? Seria ético e correto um jornalista “travestir-se” de outra coisa para poder exercer sua função? Eu poderia ter-me inscrito como representante de uma associação (naturalmente precisaria saber quais teriam direito a delegado-eleitor, pois isso continua um mistério). Poderia também me inscrever como candidato (ou anti-candidato!) e, assim teria garantida a minha permanência no ambiente, registrando, como todos nessas oportunidades fazem, com celular, gravador… quem sabe máquina fotográfica…). Decidi – e isso já fazem longos 54 anos! – ser jornalista. E me orgulho de nunca ter passado por tais contrangimentos. Também nunca me “travesti” para exercer o meu trabalho. Então decidi outra vez que a hipótese de uma candidatura finta não me desobrigaria da honestidade: na hora do discurso e minha apresentação aos leitores, forçosamente teria que dizer: sou candidato mas não votem em mim; aqui estou apenas para cumprir minha missão de jornalista que me foi negada! Não sei o que aconteceria a partir de um momento assim…

As coisas foram evoluindo, informei a alguns candidatos na oportunidade da sequência de entrevistas que fiz no correr da semana, tiver a solidariedade de todos, alguns inclusive tomaram a dianteira e saíram (e eu acho que é exatamente este o papel de nossa representação) em minha defesa, intercedendo por mim diante das autoridades. Aliás, vamos colocar as coisas no devido lugar: entendo que não se trata de solidariedade a mim, à minha pessoa especificamente; trata-se da defesa de um princípio. Ou a imprensa é livre, ou não é. Ou tem acesso a informações de relevância para a comunidade, ou está sob censura. E a Itália, pelo que descobrí na sequência, tem isso inscrito em suas leis:

Depois fiquei sabendo que o senador Fabio Porta também foi “desconvidado” a participar do evento. Certo, ele pertence a um partido político, e o CGIE não pertence a um partido, mas institucionalmente ele é um Senador da República Italiana, representa a soberania do Parlamento. E me veio a pergunta: “Santo Dio”, um funcionário público, um diretor da Farnesina teria o poder de vetar um Senador da República?

O candidato Andrea Lanzi (durante muito tempo ele também diretor de revista) mostrou interesse na questão. Pediu-me informações que foram – ao que me dizem – postadas nos grupos de debate dessas eleições aos quais obviamente não tenho acesso. Aconselhou-me a recorrer às entidades italianas dos jornalistas. Sem que tivesse contato com ele sobre isso, o candidato Pasquale Perrini tomou a iniciativa e escreveu à Embaixada:
Excelentíssimo Senhor Embaixador da Itália, Ilustre Senhor Chefe da Chancelaria Consular, na minha qualidade de candidato às eleições para a renovação do CGIE, permitam-me manifestar o meu mais profundo embaraço em relação à notícia que me chega, segundo a qual a Rivista Insieme, por ocasião do evento em epígrafe, teria sido autorizada apenas a “fazer vídeos curtos e algumas fotografias”, sem poder acompanhar todo o andamento do evento.
Em anexo, remeto a cópia da correspondência sobre o assunto, via e-mail, entre a Rivista Insieme e a Embaixada, via Assessoria de Imprensa e Chancelaria Consular, pois foi divulgada por outro candidato.
Permitam-me também afirmar que, como cidadão italiano, como conselheiro do Comitês de Brasília e como candidato nestas eleições, estou absolutamente perplexo! A função da imprensa é recolher informação de interesse público e posteriormente divulgá-la à comunidade e os Órgãos Estatais não podem impedir o exercício desta função, salvo por motivos de ordem pública, sigilo ou proteção da personalidade de outrem.
Há anos, a revista Insieme integra os órgãos de imprensa credenciados no Brasil com o objetivo de divulgar notícias de interesse da comunidade ítalo-brasileira.
O artigo 21, segundo parágrafo, da Constituição da República Italiana dispõe que “A imprensa não pode estar sujeita a autorizações ou censuras”.
Também, art. 2º, parágrafo primeiro, da Lei nº. 69/1963, que regula a organização da profissão de jornalista, afirma que “A liberdade de informação e crítica é um direito irreprimível dos jornalistas, limitado pela observância das leis ditadas para proteger a personalidade dos outros e sua obrigação inderrogável é o respeito à verdade substancial dos fatos, observando sempre os deveres impostos pela lealdade e boa-fé”. Por fim, parece útil notar que, mesmo diante de uma orientação central do MAECI que tende a impedir que os órgãos de imprensa acompanhem a íntegra do trabalho com a desculpa de que seria um evento não aberto ao público, o que, francamente, me parece, no mínimo, uma disposição estranha, a tarefa institucional dos Órgãos de Alta Representação do Estado é privilegiar a Constituição e as Leis, especialmente no infeliz caso em que uma disposição superior afronta diretamente as obrigações nelas previstas, como parece ocorrer nesta triste circunstância.
Portanto, dada a importância das eleições de renovação do CGIE e a relevância que o tema assume perante toda a comunidade de italianos residentes no Brasil, diante do evidente interesse público que caracteriza a ocasião, peço calorosamente às Altas Autoridades endereçadas para que restabeleçam imediatamente o pleno cumprimento dos direitos de imprensa, pedra angular democrática da nossa amada nação e de qualquer outro país democrático, permitindo o acesso ilimitado à imprensa em geral, e em particular à revista Insieme, que já apresentou suas credenciais, para acompanhar todo o andamento dos trabalhos relativos à Assembleia “Paese” que elegerá os novos Conselheiros do CGIE.
Aguardando o feedback necessário, aproveito esta oportunidade para assegurar minha mais alta consideração. Pasquale Perrini, Conselheiro dos Comitês de Brasília, Candidato ao CGIE – Renovação Eleições 2022.

Ontem à noite, depois de ter falado com o secretário geral do CGIE, Michele Schiavoni, e por indicação dele conforme diz, a conselheira Sivia Alciati (também candidata nestas eleições) me informava estar escrevendo para Giorgio Taburri, chefe da DGIT – ‘Direzione Generale degli italiani all’estero’ nos seguintes termos:
Tomo a liberdade de lhe escrever em nome da CGIE no Brasil.
Recebi a notícia de que o Maeci emitiu uma circular para a rede de Embaixadas de todo o mundo sobre a participação nas Assembleias “Paese” para Eleição dos Conselheiros do CGIE, reservadas apenas aos membros dos Comitês, Cooptados e representantes de associações pré-definidas, uma vez que estes e somente estes sujeitos poderão votar.

Mas, através de um jornalista, também soube que não será permitido o acesso para o serviço de imprensa.

Isso me parece surpreendente, já que em nosso país e também no país onde vivemos, o Brasil, a imprensa é livre.

Lembramos que, de acordo com nossa Constituição, a imprensa não pode estar “sujeita a autorização ou censura”.

Além disso, a Assembleia não acontecerá na Embaixada, mas em um centro de congressos da cidade de Brasília edela também participarão ítalo-brasileiros que ocupam cargos importantes junto às autoridades brasileiras, igualmente surpresos com esta notícia.

Mas é ainda mais estranho saber que esta é a quarta vez que votaremos no CGIE, e nas duas últimas ocasiões o mesmo jornalista fez toda a cobertura jornalística, tanto gravada como noticiada em uma das mais importantes revistas do a comunidade italiana no Brasil, e agora, no entanto, ele se vê impedido de fazer seu trabalho.

Tentei reler a lei constitutiva do CGIE, bem como o decreto de execução. Não identifiquei qualquer referência à presença ou ausência do serviço de imprensa e parece-me que a lei não prevê quaisquer restrições neste sentido.

Talvez possa ser útil entender melhor o real motivo da não admissão da Imprensa na Assembleia.

Além disso, dada a tradição liberal do país em que vivemos, e a habitual participação da imprensa tanto nas Assembléias do CGIE em Roma, assim como nas reuniões dos Comites nos vários países (consideradas públicas de acordo com a lei), talvez pudéssemos envolver diretamente os interessados e recolher o consentimento dos 168 presentes, pouco antes do início da própria Assembleia Nacional, autorizando ou não a presença de jornalistas que, respeitando as regras e a distância definida como adequada para não atrapalhar os trabalhos da Assembleia, possam documentar o que vai acontecer.

Certos de sua resposta, com indicações mais claras e esperando ver garantida, de acordo com nossa Constituição, a participação da Imprensa na Assembleia Nacional no próximo dia 9 de abril, em Brasília. Silvia Alciati”.