CURITIBA – PR –

PATROCINANDO SUA LEITURA

O mundo da imigração, da literatura, da pesquisa e do Talian, além do religioso, chora a morte de Frei Rovilio Costa (74 anos), ocorrido neste sábado (13.06.2009). Ele será entrerrado neste domingo após missa na Igreja Santo Antônio, em Porto Alegre-RS, no cemitério do Convento dos Capuchinhos. Em sua vida o religioso se destacou como escritor e professor, tyendo escrito mais de 20 livros e editado um número que supera os dois mil títulos. Grande parte de suas obras foi dedicada à imigração italiana no Brasil.
O religioso era licenciado em Filosofia e Pedagogia, Mestre em Educação e Livre docente em Antropologia Cultural. Foi o Patrono da Feira do Livro de Porto Alegre em 2005. Estava na direção da Est Editora desde 1973. Frei Rovílio nasceu em Veranópolis-RS, caçula de sete irmãos. Seus pais eram agricultores pobres.
Frei Rovílio é colaborador da revista Insieme praticamente desde a sua fundação, há 15 anos. Foi convidado para escrever um ensaio intitulado “O Italiano que Está em Você”, que deveria ser uma análise antropológica, social e psicológica dos descendentes de imigrantes italianos. Ao ficar doente, e para não interromper a série, solicitou a amigos que colocassem sobre o papel o que significava para cada um ser italiano. A série desde então tomou outra forma e passou a ser publicada também no jornal Correio Riograndense.

Em novembro de 2006, em Farroupilha, Frei Rovilio Costa concedeu entrevista ao editor da Revista Insieme, jornalista Desiderio Peron, falando da grande comiunidade ítalo-brasileira, sobre o Talian e sobre questões históricas que marcaram a comunidade italiana no Brasil, como a proibição de falar a língua. As entrevistas, em Talian, estão a seguir.

Entrevista Frei Rovilio I

Entrevista Frei Rovilio II

Entrevista Frei Rovilio III

Entrevista Frei Rovilio IV

 


A edição número 59  (novembro de 2003), da Revista Insieme tinha como capa “O frade dos Livros”, com o seguinte texto, de autoria do jornalista Desiderio Peron:

“Aquilo que traduz a vida é o que importa”

Pesquisador, historiador, escritor, editor, padre, frade, professor, confessor… Frei Rovílio Costa. Uma legenda, uma referência. Um amigo. Respira e transpira cultura italiana. Melhor, ítalo-brasileira. Sua Editora Est (mais de 2 mil títulos publicados) é uma espécie de QG nacional da história da imigração italiana. Especialmente a do Rio Grande do Sul. Agora também dos negros.

Para entrar em sua própria casa, pede licença aos livros. Literalmente. Tem de tudo e de cada um ele conhece a história, compartilhada com alguns gatos e com o pessoal de apoio. É incrível. Também no pequeno quarto de dormir a cama some entre livros. E, para dizer a verdade, ele já vive num apêndice, fundos do número 311 da Rua Veríssimo Rosa, no bairro do Partenon, em Porto Alegre- RS, onde costuma servir polenta, lingüica e vinho a seus eventuais visitantes. Foi, por dizer, expulso pelas obras que mandou imprimir. Histórias, estórias, impressões vida e sentimentos de gente, maioria simples, como ele, marcada pela epopéia da imigração que ele conhece como ninguém. Dois mil títulos já, desde os anos 70 com a reedição de Nanetto Pipetta – literatura decalcada na experiência popular dos imigrantes. Sem esgotar a fronteira italiana, lança-se agora na documentação do que sobrou da memória dos negros (A Vida dos Negros em Porto Alegre no Século 19). Coisa única de gente sem genealogia.
Rovílio Costa é natural de Veranópolis-RS, onde nasceu de pais agricultores em 1934. Seus avós, também agricultores, vieram da pequena Ca’ de’  Soresini, município da província de Cremona, sul da região da Lombardia. Embora de sotaque cremonês, é a casamata do Talian, mistura lingü.stica de preponderância vêneta. Conhece essa língua de berço, como conta:
Na comunidade da capela ou na cidade, quem falasse o cremonês era zombado. Em função da campanha de nacionalização do Estado Novo, fui alfabetizado em português. Meu pai tinha uma bodega na colônia, onde passavam tropeiros que iam para Guaporé, depois Passo Fundo, Lagoa Vermelha, Vacaria…, e eles paravam lá em casa. Eu sabia que existia italiano e negro: quem não era italiano, era negro. Quem não falava italiano, falava português, e quem falava português era negro. O negro era interessante porque era jocoso, brincalhão. Meu pai não entendia quase nada, mas eu, como ia à escola, entendia. Durante a guerra, seu pai tinha que ficar escondido durante o dia, “porque caçavam as pessoas que não sabiam falar português”. Como não tinha luz elétrica, ele podia ficar em casa à noite. “Se alguém chegasse, os cachorros acoariam.” Aos 11 anos entrou para a vida religiosa. Pensou: “se não vou ficar em casa (o que meu  pai queria), vou estudar para ser padre.” Influência da mãe, que pagou o hospital com trabalho nos três anos que ficou internado, com meningite. A mãe manteve o hábito de visitar os doentes e com ela ia junto Rovílio, o filho menor. Em sua lembrança ficou gravada a importância atribuída pelas famílias ao sacerdote que estava sempre por lá. O seminário menor dos capuchinhos de Veranópolis, onde estudou até a terceira série, é hoje sede de uma escola do MST. Depois foi estudar em Ipê, em Flores da Cunha, em Marau, em Garibaldi e Porto Alegre, na Escola Superior de Teologia, hoje Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana.
Ordenou-se padre em 1960. Seu pai dizia que ser padre e não rezar missa não fazia sentido. “Isso fez com que eu nunca perdesse o encantamento com a vida religiosa”, conta Rovílio.
Trabalhou na catequese na Vila Santa Luzia, que depois deu origem à Restinga Velha, foi diretor do Teologado e, com seus alunos, estabeleceu morada em Charqueadas, no leprosário de Itapoã e na Penitenciária Estadual do Jacuí onde, junto com eles, organizou biblioteca e hortas, tendo que prestar concurso para entrar na polícia. Em 1980, foi trabalhar no Presídio Central de Porto Alegre. “A gente fazia trabalhos de grupo com os detentos, segundo o princípio de que era preciso ser feliz na prisão”, conta Rovílio.
Se alguma vez pensou em deixar de ser capuchinho? Pelo contrário. Uma vez, uma aluna lhe disse: “É a última proposta que lhe faço”. E ele: “Como assim? Tu fizeste outras?”. Rovílio conta que ela queria casamento: “Eu brinquei com ela, dizendo que ela só queria casar comigo para ficar com o que eu tinha. E ela: “O senhor é tão rico assim?”. Eu respondi que era mais do que rico, tinha estimado quantas mil jovens tinham sido minhas alunas, aproximadamente 6 mil. Disse a ela: “Se eu escolher a ti, perco 6 mil. Prefiro 6 mil amizades do que uma exclusividade”. Deixar o outro livre é o mais importante.”
Trabalhou muito em seminário e sua vida como professor começou em 1972, quando entrou para a Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor de Psicologia da Educação na Faculdade de Educação, onde ficou mais de 20 anos. Foi então que fundou a revista Educação e Realidade. Depois fez mestrado em Psicologia. Aposentou-se lá.
Levando sempre vidas paralelas, Rovílio deu aulas também numa universidade particular mas seu primeiro livro sobre a imigração foi um acaso. No centenário da imigração italiana (1975) e no sesquicentenário da alemã (1974), foi convidado para o chamado Grupo do Biênio, que estava  organizando as comemorações. Um amigo havia escrito Colonização Italiana no Rio Grande do Sul: Implicações Econômicas, Políticas e Culturais e mandou a tese para ser traduzida. Inscreveu a tese em concurso mas o primeiro lugar ficou com Tales de Azevedo (Italianos e Gaúchos). “Depareime com o seguinte problema – conta Rovílio: se eu desse o livro para minha mãe, ela não entenderia nada daquilo, implicações econômicas, políticas e culturais. E ela tinha vivido tudo o que a colônia tinha passado. Então juntei um material gravado no período em que trabalhava em lpê, que eu tinha feito para publicar histórias de vida no jornal Correio Riograndense e que o diretor do jornal fez o favor de não publicar e jogar fora… Juntei alguns alunos e fiz um livrinho, Imigração Italiana: Vida, Costumes e Tradições, e mandei para a comissão do biênio. Recebeu menção honrosa. Ali eu comecei a colocar o dialeto, provérbios, receitas, tudo sobre a vida na colônia. Publiquei. Era só o que havia sobre o tema. Foi sucesso.
Depois, redescobriu Nanetto Pipetta (obra de Frei Paulino – Aquiles Bernardi). O professor Luis Alberto De Boni voltou de seus estudos na Europa e, trabalhando na redação do Correio Riograndense, em Caxias, descobriu cerca de 5 mil exemplares não encadernados da obra que, por causa da guerra, não podia mais ser vendida porque o livro era em italiano (talian). Além disso, um frade, numa reunião da Província, disse que a circulação do livro deveria ser proibida porque era um “atestado de ignorância”, por ser em dialeto, por conter historietas de rir, etc. “Quando resolvi publicar, o Leopoldo Boeck, então editor da Sulina, disse que não venderia, principalmente porque estava em dialeto, lancei- lhe, então, um desafio: “Pega uma rua em Caxias e manda para aqueles endereços um volante, um panfleto. Se não vender para pagar o volante, eu pago o volante”. Enviamos 600 cartas e vendemos quase 200 livros. Depois, com idéia do De Boni, fizemos o livro Pioneiros às margens do Uruguai, do Frei Aleixo Polesso e do Frei Gentil de Caravaggio, com as crônicas desses frades que andaram pelo interior do Estado. Eram figuras folclóricas, que andavam pelo Interior de faca na bota. Depois lançamos o Togno Brusafrati, de Frei Luís Maria Liberali, também um seriado dialetal que havia circulado no Correio Riograndense (1941) como o Nanetto, de 1924-1925.
Outros livros vieram na coleção do centenário da imigração italiana, hoje com mais de 300 títulos. “Dos mais de 2 mil títulos que publiquei – explica -, mais de 300 são sobre assuntos italianos”. De onte vem tanta história? “O De Boni era professor da Universidade de Caxias e lecionava uma disciplina imposta, Estudos Brasileiros. Sugeri a ele que tomasse o estudo mais interessante aos alunos, pedindo que fizessem pesquisas sobre suas origens. Disso resultaram mais de 22 mil páginas de entrevistas feitas pelos alunos com velhos da região de Caxias e entorno.” Seu interesse, segundo conta, era por uma “literatura participativa”, sobre “pessoas que nunca ouvem falar ou lêem aquilo que elas realmente gostariam de ver: seu jeito de viver, seus costumes, suas tradições… E é essa literatura de famílias, de municípios, de histórias locais, que nos interessavam, seja dos italianos, alemães, polacos, negros, indígenas, judeus… De todos publicamos algumas coisas”.
O trabalho, segundo conta, foi norteado por dois critérios. Primeiro: cada um tem o direito de falar como quiser. O Ramiz Galvão, meu patrono na Academia Rio-grandense de Letras, dizia que a língua só é fixa dentro da Academia Brasileira de Letras, já que o povo está sempre inventando novas formas de falar. Então, dentro desse princípio, nós registrávamos como as pessoas falavam. Nunca havia uma palavra errada. Assim nós chegávamos na linguagem familiar. E como eram famílias que trabalhavam quase que isoladamente, é óbvio que elas criavam expressões próprias de família para família; depois vem uma outra língua, ao estar em comunidade e, depois, ao ir para a cidade, surge uma outra língua, tentando falar o português, que sofre influências do dialeto, tanto quanto o dialeto vai ser afetado pelo contato com o português das cidades.”
Certa vez perguntaram a Frei Rovílio se ele estudou lingü.stica. “Uma vez – respondeu ele -, surgiu a oportunidade de ir estudar metalinguagem na França. Mas quem de fato acabou indo foi um tal de Valter Beber. Ele foi em função de um projeto de formação dos professores para a Província. Eu estava em Ipê, trabalhando com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Estava lendo, por essa época, sobre São Luís Gonzaga, quando me apresentaram a proposta. Dei uma baita risada e disse: “Quid hoc ad eternitatem?”, quer dizer, “O que me adianta isso (metalinguagem) para a eternidade?”
Com isso o “frei dos livros” resume que prefere a vida à teoria. Numa longa entrevista publicada pelo caderno de Cultura do jornal Zero Hora (edição de 09/08/2003), ele foi enfático: “Aquilo que traduz a vida é o que importa. Não adianta sofisticar, se isso não traduz a vida. Por exemplo, a literatura: o que é para uma elite é para uma elite, não adianta.”
Além de seu reconhecido trabalho envolvendo a saga da imigração italiana, Rovílio foi, também, o grande editor de todo o pessoal de esquerda num período em que isso dava trabalho no Brasil, devido à ditadura militar. Na mesma entrevista, ele explica: “Eu sempre admirei a pessoa que pensa, que escreve. Na universidade, por exemplo, nós tínhamos a revista Educação e Realidade, com um conselho editorial. E eu dizia: “Pra quê?”. Nós temos que ter orgulho de que o professor escreva, porque o professor que escreve é o professor que tem coragem de mostrar sua capacidade ou sua incompetência. Quanto mais modos de pensar se expressarem, melhor. E não me importava se o Décio Freitas, que eu publiquei, ou o Voltaire Schilling, que eu não cheguei a publicar, fossem de esquerda. Publiquei os primeiros livros do Charles Kiefer. E eu sempre disse que onde houver idealismo há construção. O esquerdista, quanto mais radical for, mais interessa, porque é uma pessoa que constrói. Se uma pessoa é de esquerda ou de direita, não interessa, me interessa que tenham posição. Por exemplo, eu sempre fiz parte do Conselho Estadual da Cultura, desde o tempo do governador Amaral de Sousa. Mas no governo Olívio Dutra, eu senti a diferença do que é um governo de esquerda. Pela primeira vez, vi o que é apostar numa coisa mais reduzida, talvez, mas com mais élan. Parece que a direita é mais burocrática e a esquerda é mais renovadora, mais ágil.”
Sobre seu relacionamento com os governos militares, Rovílio também tem histórias: “Eu rezava missas numa escola ali no Beco do Carvalho, missas que eram mais uma desculpa para pregar idéias. Eu tinha uma caderneta com pseudônimo do Diário de Notícias, e, numa ocasião, os militares me pediram documentos e levaram essa caderneta. Fui para o Diário de Notícias, eu tinha sido correspondente quando ainda estava em Ipê, e disse: “Zerem tudo isso aí”. Como não tinha fotografia, nunca associaram um animal com o outro”.
Além de publicar histórias, Rovílio pegou fama de pagar os direitos autorais adiantados. Ele explica: “O livro publicado e não pago era sempre um problema. Numa redação dos meus 12 anos, que me valeu o meu primeiro diploma (era para um concurso de rádio), eu concorri com o texto: “Pobre, mas livre”. Então como é que eu vou publicar um livro e ficar com dívidas com o autor, que vai ficar me cobrando? Eu prefiro assim.” Sempre procurando salvar do esquecimento as vivências do mundo colonial italiano a luta de Rovílio foi bem sucedida. E, pode-se dizer, em parte já reconhecida. Basta percorrer as 1.168 páginas de um volume em sua homenagem, com depoimentos diretos e artigos alusivos chamado Etnias & Carismas, organizado por Antônio Suliani (Ed. da PUCRS).