Capa da edição 209 (junho) da Revista Insieme.
70 ANOS DEPOIS DE SUA FUNDAÇÃO, REPÚBLICA ITALIANA PODERÁ SOFRER PRIMEIRA GRANDE TRANSFORMAÇÃO
Exatos 70 anos depois de ter nascido sob a égide de um referendo popular que lhe deu vitória sobre o regime monárquico ainda em meio aos escombros da II Guerra Mundial, a República Italiana se prepara para enfrentar aquela que, se assim os italianos entenderem, será a maior reforma de sua estrutura: abandonará, entre outras coisas, o chamado “bicameralismo perfeito”, encolhendo atribuições, número de cadeiras e gastos do Senado e concentrando poderes legislativos e institucionais sobre a Câmara dos Deputados. Desaparecerão as Províncias, reduzindo duplicidades, gastos e atritos de poder.
Capitaneada pelo “desmantelador” Matteo Renzi que assumiu o poder pelas vias burocráticas partidárias e não pelo voto direto na sequência do desmantelamento do governo guiado por Silvio Berlusconi, a reforma pretendida é a terceira tentativa de cirurgia referendária desde a instalação da República. A primeira ocorreu em outubro de 2001 com o apoio de 64,20% de votos favoráveis, e deu mais poderes e recursos às regiões; a segunda, realizada em junho de 2006, que também pretendia reformas institucionais, deu com os burros n’água diante da maioria contrária expressa no referendo popular. Agora, além do abandono ao “bicameralismo perfeito”, a proposta aprovada pelo Parlamento e submetida ao soberano veredito popular, regulará também sobre a forma de eleição do Senado, eliminará a figura do senador vitalício, introduzirá novas regras para a eleição do Presidente da República, instituirá um novo rito para a discussão e aprovação das leis, redefinirá competências do Estado e das Regiões, disporá sobre a eliminação das Províncias e do Cnel – Conselho Nacional da Economia e Trabalho e, de quebra, mudará também as regras para a realização dos próprios referendos.
Em torno dessas mudanças que têm como apelo principal maior agilidade às ações do Estado, cortando gastos e enxugando a máquina, de norte a sul pela península já se enfileiram argumentos pró e contra, “Sim” e “Não”, numa campanha (lançada oficialmente em 2 de maio último, em Firenze) de crescente e apaixonado suceder de argumentos, a ponto de Renzi avisar de antemão que, em caso de derrota, deixará o cargo. Extremismos à parte, há, como sempre e sobretudo em política, um pouco de razão em cada argumento e os embates até aqui travados no Parlamento não são capazes de assegurar nenhuma das pontas, mesmo porque as votações no Parlamento foram apertadas e não há consenso sequer sobre todos os quesitos em decisão. Daí a necessidade do referendo. Há quem prefira mesmo, para simplificar as coisas para o eleitor, submeter ao voto popular uma coisa por vez. No referendo constitucional, que será realizado provavelmente em outubro próximo (dia 16 seria a data), o eleitor terá que decidir tudo num “Sim” ou “Não”.
Assim, para entender melhor as coisas, vamos por partes. Primeiro, dizendo que para o referendo constitucional (diversamente do referendo revogativo), não há exigência de quorum. Independentemente do número de eleitores que compareça às urnas, vencerá a opção que obtiver o maior número de votos. Essas regras atuais serão, também, alteradas, no caso de vencer o “Sim”. Os italianos deverão dizer se concordam ou não com as seguintes mudanças: diminuição, de 313 para 100, do número de senadores, que passarão a ser eleitos durante as eleições regionais e não terão, portanto, remuneração adicional; voto de confiança no governo apenas por parte da Câmara dos Deputados; fim da possibilidade, por parte do Senado, de apresentar emendas às leis que não sejam de sua competência (isso tornará mais rápida a tramitação das matérias no Parlamento). O referendo abrangerá, ainda outras modificações do Título V da Constituição, que trata dos poderes do Estado, do aumento dos poderes da Corte Constitucional (provocada, ela poderá pronunciar-se preventivamente sobre leis que regulam as eleições da Câmara e do Senado), do abaixamento do quorum para os referendos revogativos quando seus requerentes apresentarem o pedido com, pelo menos, 800 mil assinaturas (o voto será sempre válido se participarem pelo menos 50% dos eleitores inscritos, mas se o pedido decorrer de abaixo-assinado com pelo menos 800 mil assinaturas, então o quorum desce para 50% dos votantes nas últimas eleições).
Se as propostas aprovadas no Parlamento forem confirmadas pelo voto popular, tudo somado significará a concentração de mais poderes nas mãos do governo que disporá, também, de uma nova lei eleitoral (a chamada “Italicum”), que concede um prêmio de maioria bastante alto à tendência que obtiver maior número de votos. Há que se consignar que, embora a reforma eleitoral tenha mantido a Circunscrição Eleitoral do Exterior, no novo Senado não existirão mais os senadores eleitos pelos italianos fora da Itália (atualmente seis, no total). Assim, os cargos exercidos atualmente, na América do Sul, pelos senadores Fausto Longo, do Brasil, e Claudio Zin, da Argentina, deixarão de existir – uma realidade que, a ser confirmada, concentrará toda a disputa sobre as quatro cadeiras de que a área geográfica dispõe na Câmara dos Deputados. A composição e o papel do novo Senado italiano tem-se constituído numa das questões fechadas da proposta de reforma política de Renzi, que desde a primeira hora teve o apoio do então presidente Giorgio Napolitano. No lugar dos 315 senadores atuais, farão parte do novo Senado 74 conselheiros regionais, 21 prefeitos de capitais e mais cinco personalidades ilustres nomeados pelo presidente da República. Estes últimos tomarão o lugar dos hoje chamados “senadores vitalícios”, que desaparecem, e sua escolha atenderá os mesmos critérios: “cidadãos que tenham honrado a pátria pelos seus altos méritos”.
A economia decorrente da nova fórmula foi calculada em torno de meio bilhão de euros anuais. Os 95 senadores originários das Regiões e Municípios serão divididos proporcionalmente ao número de habitantes, conservarão seus salários originários e nada mais (atualmente, cada senador ganha mais de 15 mil euros limpos). Todos gozarão, entretanto, das mesmas imunidades parlamentares que hoje são garantidas aos deputados, o que significa que não poderão ser presos, interceptados telefonicamente ou indiciados sem a autorização do Senado. Dentre seus papéis, os senadores perderão a função do “voto de confiança” sobre o governo e votarão apenas sobre reformas e leis constitucionais, leis eleitorais dos organismos locais e retificação dos tratados internacionais. Os novos senadores poderão pedir mudanças de leis já existentes, mas a Câmara não será obrigada a atendê-lo, pois seus pareceres serão apenas consultivos; poderão tratar sobre questões atinentes às Regiões e órgãos locais, mas votarão, entretanto, para a eleição do Presidente da República.
O NASCIMENTO – “Nasceu a República Italiana”, noticiava em manchete de página inteira o jornal “Corriere della Sera” do dia 6 de junho de 1946, ao publicar o resultado ainda não consolidado do referendo institucional realizado nos dias 2 e 3 anteriores em toda a Itália. Os números oficiais, depois de vencidas todas as questões relativas à apuração concentrada em Roma, só foram proclamados no dia 18 de junho pela Corte Suprema: República 12.717.923 (54.3%; Monarquia 10.719.284 (45,7%); votos nulos 1.498.136. Quase noventa por cento (89,1%) dos eleitores italianos tinham comparecido às urnas – pela primeira vez na história italiana, também as mulheres, que formavam maioria (as mulheres votantes eram 12.998.131, contra 11.949.056 homens).
A vitória da república parlamentar unitária sobre a monarquia mostrava, entretanto, uma Itália dividida: enquanto no norte a preferência pela República atingia a média de 66,2% (no Trento, isoladamente, 85%), no sul, a Monarquia vencera com 63,8% dos votos. Juntamente com a escolha do sistema de governo, os italianos escolheram também seus representantes que escreveram a Constituição, promulgada em 27 de dezembro de 1947, entrando em vigor dia primeiro de janeiro do ano seguinte, proibindo, em suas disposições transitórias, os descendentes masculinos da antiga família real, a Casa de Saboia, de entrar no território italiano – dispositivo revogado em 2002. Setenta anos se passaram e, apesar de mais de uma dúzia de alterações, a Constituição escrita ainda praticamente sob o calor dos canhões da II Guerra, passará por nova prova ainda este ano: através de um novo referendo, italianos e italianas (agora também os que vivem no exterior) serão chamados a dizer se, entre outras mudanças, concordam com o fim do chamado “bicameralismo perfeito” que, ao longo desses setenta anos, viveu a maior parte em crise e viu sucederem-se mais de 63 governos – uma situação quase normal para regimes parlamentaristas, mas também quase incompreensível para quem está habituado a regimes presidencialistas, como na República Federativa do Brasil, implantada em 1890, bem antes que a italiana.