A sociedade brasileira é formada por nativos e imigrantes de inúmeras etnias. (Foto AdobeStock/Detalhe invertido)

O texto que se propõe agora é uma releitura do tema que abordei em palestra no Plenário da Câmara Municipal de São João Batista-SC aos 27 de março de 2021  por ocasião da assembleia da Adampib Associação dos Descendentes e Amigos do Núcleo Pioneiro da Imigração Italiana no Brasil, que questionou:  a Colônia Nova Itália em São João Batista-SC é berço da imigração italiana no Brasil? Santa Teresa-ES é o berço da imigração austro-húngara?

 Antes de qualquer discussão a respeito do tema, proponho duas perguntas:

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 1) Qual foi o critério técnico definido pela Lei Federal n.º 11.687 de 02 de junho de 2008, iniciativa do então Senador Gerson Camata (PMDB-ES), que definiu o Dia Nacional do Imigrante Italiano como 21 de fevereiro em todo território nacional?

 2) Da mesma forma, atual critério técnico foi escolhido pela Lei Federal n.º 13.617/2018, iniciativa do então Deputado Federal Sérgio Vidigal (PDT-ES),  para definir que o município de “Santa Teresa” no Estado do Espírito Santo é a cidade que retrata o pioneirismo da imigração italiana no Brasil?

Em outras palavras, quais os fundamentos históricos de tais legislações?

Ambos diplomas legais, na verdade, se confundem em seus fundamentos, pois partem de um mesmo equívoco histórico.

Para início da constatação do erro histórico, o vapor “La Sofia” aporta no porto de Vitória, no Espírito Santo, aos 17 de fevereiro de 1874 – e não no dia 21 de fevereiro – tendo a bordo exatos 388 camponeses de língua e cultura itálicas, expedição organizada pelo tirolês Pietro Tabacchi, nascido em Trento quando estava cidade encontrava-se sob o domínio do então Império Austro-Húngaro.

Os sobrenomes de alguns desses tiroleses de língua italiana, conforme o Arquivo público do Espírito Santo que indicam lista de passageiros do La Sofia, são Abdermarcher (Roncegno); Armallao (Borgo Valsugana); Baber (Tenna); Boneccher (Borgo Valsugana); Comper (Besenello); Palaoro (Novaledo); Tesainer (Roncegno); Toler (Roncegno); Zen (Novaledo). Todas cidades que pertenciam ao Império Austro-Hungaro em 1874.

Apenas os 5 (cinco) famílias imigrantes e familiares Bolin, Demonier, Landini, Piovesan e Zambropgno eram provenientes da região do Vêneto, que em 1866 tinha sido anexada pelo Reino da Itália. Todos os demais imigrantes daquela embarcação da “primeira leva” eram súditos do então Império austro-húngaro e, portanto, possuidores de passaporte austríaco.

Atenção, em negrito grifei propositalmente língua e cultura itálicas e não a língua e cultura “italianas”.

A designação ‘itálica’, ao meu ver, seria mais correto do ponto de vista linguístico porque designa a qualidade de quem pertence à língua e cultura de povos de territórios que formam a chamada península itálica; já a designação ‘italiana’ liga-se ao critério da nacionalidade, vínculo este diretamente relacionado ao povo do país Itália que, em 1874, data do aporte da embarcação “La Sofia” em Vitória, não compreendia o território de emigração de quase a totalidade dos imigrantes que chegaram em Santa Teresa/ES.

Mas então, é de se pensar por qual motivo quiseram os políticos do Espírito Santo ler “Reino da Itália” onde estava escrito “Império austro-húngaro” na lista de passageiros do “La Sofia”?

Cultura, nacionalidade, povo, língua, nação são diferentes critérios que, quando combinados, podem servir tanto para a sociologia, da antropologia, mas também, para a própria Ciência do Direito quando utiliza alguns desses elementos e estabelece as bases de formação de um Estado no modelo westfaliano e do seu ordenamento jurídico, como exemplo do Reino da Itália em 1861.

Nesse sentido, é importante destacar que:

 a) O Tirol Italiano (ou também chamado Tirol Meridional) é um território que pertenceu à Áustria de 1363 a 1918. Em 1867, foi realizado um acordo político para promover a união entre o Império da Áustria e o Reino da Hungria e deram início ao chamado “Império austro-húngaro”.

Este Império se findou ao término da Primeira Guerra Mundial após a realização da  Conferência de Paris, em Versalhes, e a assinatura do Tratado de paz em 28/06/1919 entre países aliados que colocou fim no conflito e também o  Tratado de Saint Germain en Laye em 10/09/1919, que passou ao Reino da Itália os territórios de Trieste, Tirol meridional e península da Ístria e Dalmácia, bem como promoveu anexações dos demais territórios a outros Estados transfronteiriços.

Veja também:

21 de fevereiro: A tola polêmica sobre o pioneirismo da imigração italiana no Brasil

Todos os camponeses que emigraram após 1867 destes territórios pertencentes ao Império tinham passaportes austro-húngaros, visto que estavam sob os efeitos da “suddinanza” dessas duas coroas (Áustria e Hungria), ou seja, eram súditos e mantinham vínculo político-jurídico com esse Império.

 b) Outro fator que precisa ser levado em consideração do ponto de vista histórico, é que a Itália como país se formou apenas após a conclusão do período conhecido como “risorgimento italiano”, que em 17 de março de 1861 proclamou o Reino da Itália, inicialmente com capital em Turim, Florença e, depois, Roma, há exatos 160 anos.

Em ambos os casos, da mesma forma que a nacionalidade italiana não pode ser critério identificador de quem seja “italiano” para antes de 1861, também não poderia ser critério identificador de pessoas provenientes de territórios que não pertenceram ao Reino da Itália quando da sua unificação, independentemente da língua que falavam.

Sob esses aspectos não restam dúvidas sob os olhos das fontes históricas que os 388 camponeses que seguiram viagem com Pietro Tabacchi no vapor “La Sofia” eram em sua grande maioria provenientes do Tirol meridional de língua italiana e possuíam passaporte austro-húngaro, pois estavam vinculados politicamente e juridicamente ao então Império Áustro-Húngaro. Isto é um fato histórico inconteste.

Apenas uma pequena parte desses camponeses eram vênetos e, portanto, possuidores do passaporte do Reino da Itália. Mais precisamente, cinco famílias.

Fala-se que Santa Teresa, Espírito Santo, é considerada por lei o berço da imigração italiana no Brasil porque representa o início da uma grande massa de imigrantes italianos que a partir de 1874 começa a imigração ao Brasil, quando, na verdade, grande mesmo foi a quantidade de tiroleses que aportaram em Vitória naquele fatídico 17 de março.

Por esse ponto de vista, então, Santa Teresa poderia ser considerada o berço da imigração Tirolesa no Brasil?

Há quem diga que sequer isso é possível, pois também existem provas históricas de que um grande contingente de imigrantes provenientes do Tirol de língua alemã, mas também itálica, aportaram no Brasil com direção ao Estado de Minas Gerais, mais precisamente em Juiz de Fora, em 1858.

Inegável, porém, que a expedição Tabacchi inaugura sim o grande fluxo de imigrantes provenientes do Tirol de língua italiana e de vênetos em direção ao Brasil, pois logo em seguida o contrato com Joaquim Caetano Pinto Júnior (Decreto nº 5663, de 17 de junho de 1874) promete trazer para o Império brasileiro cerca de 100.000 imigrantes europeus em 10 anos.

Bem, se o critério ‘nacionalidade’ não pode ser utilizado para identificar o pioneirismo da imigração italiana no Brasil, qual outro critério poderia eventualmente ser utilizado? Indo mais a fundo, mas seria mesmo necessário estabelecer esse pioneirismo para esta etnia?

A língua? A cultura? Seria possível falar de uma língua ou cultura itálicas comuns que identificasse as pessoas que viviam na península itálica? Infelizmente não, pois o latim vulgar e o território bastante acidentado proporcionaram origem a uma série de formas dialetais que, por vezes, não possuem traços que poderiam identificar um pioneirismo italiano. Da mesma a cultura, que pode se manifestar em diferentes aspectos em todo o território.

Dentre tantos acredito que um fator poderia ser levado em consideração para identificar o pioneirismo da Colônia nova Itália de São João Batista em detrimento do suposto pioneirismo de Santa Teresa, passa por uma questão do território de proveniência dos imigrantes, que aqui será nominado de critério preunitario.

O território do então Reino da Sardenha – de onde são provenientes os imigrantes que formaram a Colônia em São João Batista – é um dos principais reinos que foram unificados e formou o Reino da Itália. Este é outro fato inconteste.

Importante salientar que, todos os habitantes desse Reino a partir de 1861 passaram a ter o vínculo do status civitatis italiano, ou seja, da nacionalidade do Reino da Itália. E nesse sentido, conforme o código civil do Reino da Itália de 1865, não ficava excluída do reconhecimento da nacionalidade italiana uma pessoa que emigrou do território antes mesmo da unificação da Itália.

Inclusive, conforme a legislação italiana vigente, a nacionalidade do Reino da Itália somente pode ser transmitida aos descendentes de imigrantes dos reinos ‘pre-unitários’ nascidos antes de 1861 se o Estado de nascimento do imigrante passou a fazer parte do Reino da Itália. Caso contrário, a nacionalidade italiana não é possível ser reconhecida.

Interessante e oportuna comparação agora é possível fazer com a nacionalidade italiana daqueles imigrantes do Império Austro-Húngaro de língua italiana que formaram a expedição Tabacchi e fundaram a colônia em Santa Teresa/ES. Do ponto de vista de atribuição da nacionalidade italiana eles jamais foram italianos, seja pela lei italiana 555 de 1912 ou pela lei italiana 91 de 1992 – justamente porque a primeira lei de 1912 teve vigência quando o Trentino fazia parte do Império austro-húngaro e, pela lei de 1992, foi reconhecida a possibilidade de reconhecimento da nacionalidade italiana aos tiroleses de língua italiana apenas após 1919, quando o território passou a pertencer ao Reino da Itália.

Os descendentes daqueles tiroleses de língua italiana, contudo, tiveram única possibilidade de reconhecimento da nacionalidade italiana entre os anos 2000 e 2010, quando a lei italiana n. 379 de 2000 viabilizou o reconhecimento desse status civitatis italiano. Findo o prazo, não é mais possível o reconhecimento.

Portanto, percebe-se claramente que o Reino da Itália manteve vínculos jurídicos políticos com os imigrantes dos reinos chamados preunitarios, como é o caso da Sardenha, e considera – inclusive até hoje – os descendentes dos imigrantes sardos de São João Batista como possíveis detentores do status civitatis italiano e possibilita a eles o reconhecimento da nacionalidade italiana, desde que comprovada a linha genealógica com aqueles imigrantes de modo documental.

O mesmo não ocorre com os descendentes de imigrantes austro-húngaros que formaram a suposta Colônia de Santa Teresa, justamente porque aqueles imigrantes, friso, jamais foram italianos – do ponto de vista da nacionalidade – e nunca o serão, visto o término do prazo da lei que possibilitou o reconhecimento dessa condição e também porque não há qualquer outro projeto atualmente em trâmite no Parlamento italiano nesse sentido. Ainda, sequer a nacionalidade austríaca lhes é possível, pois também não há o mínimo de interesse da Áustria em recuperar vínculo de nacionalidade com os descendentes daqueles imigrantes.

Então, se seria justo escolher um critério para reconhecer o pioneirismo da Colônia Nova Itália de São João Batista/SC para que seja reconhecido o pioneirismo da imigração italiana no Brasil, o critério preunitario acredito ser o mais justo e correto, seja do ponto de vista histórico que jurídico, visto que o Reino da Sardenha formou o Reino da Itália em 1861 e o território do então Tirol meridional de língua italiana foi anexado apenas em 1919 ao reino já existente desde 1861.

É inegável, porém, único fato inconteste em prol dos capixabas, e repito, que foi o Estado do Espirito Santo que em 1874 que se inaugurou a grande epopeia das grandes imigrações para o Brasil, mas grande mesmo foi o contingente de nacionalidade austro-húngara organizado por Tabacchi naquele ano, sendo ele mesmo nascido em Trento, então território que não pertencia ao Reino da Itália.

Importantíssimo salientar que, destaco, em ambas as experiências coloniais – seja em Santa Teresa ou em São João Batista – os imigrantes se dispersaram para outros núcleos coloniais vizinhos. A atual cidade de Santa Teresa, por exemplo, se formou e se consolidou com inúmeros outros imigrantes provenientes de outros lugares da Itália e do Tirol italiano e conseguiu manter características culturais na língua e cultura – não propriamente tirolesas, mas itálicas.

No entanto, se apenas a língua e cultura for critério de identificação do pioneirismo italiano no Brasil, São João Batista também tem essa mesma prerrogativa, pois este resgate histórico com as suas raízes italianas está reconstruindo o passado para projetar o futuro, rendendo homenagens aos bravos imigrantes que por aqui aportaram e buscaram fare la Merica.

A Colônia Nova Itália em São João Batista em Santa Catarina é prova do sucesso do árduo trabalho dos seus fundadores, pois ainda está lá e porta uma identidade que não pode ser esquecida, anzi, deve ser recuperada e mantida, pois la Merica brasileira começou mesmo em 1836 para um grupos de pessoas que posteriormente foram (e ainda podem) ser reconhecidos italianos – diferentemente dos descendentes dos imigrantes que chegaram em Santa Teresa que, visto o término da lei 379/2000 infelizmente vão continuar apátridas e jamais serão italianos a não ser que nova lei seja publicada pelo Parlamento Italiano.

Caso Santa Teresa-ES queira receber algum título legal, sugiro seja atribuído o título de “berço dos tiroleses itálicos”, ou “berço da grande imigração” ou “berço do grande fluxo migratório” ou simplesmente que não lhe seja atribuído título algum, pois também os poloneses e ucranianos de São Mateus do Sul-PR; os japoneses de Maringá-PR; os russos de Poxoréu-MS; os alemães de Blumenau-SC ou São Leopoldo-RS; ou os Suíços e Noruegueses de Joinville-SC também poderiam reivindicar leis federais para marcar as suas respectivas imigrações. Por que não?

Toda essa tola polêmica sobre o pioneirismo da imigração italiana no Brasil – para usar uma frase utilizada recentemente por um representante do Conselho Geral dos italianos no Brasil – deveria reconhecer São João Batista/SC como local de pioneirismo de imigração italiana pelos motivos que aqui foram apresentados ou, melhor ainda, deveria mesmo acabar com a revogação de ambas as leis n.º 11.687/2008 e n.º 13.617/2018, pois possuem critérios técnicos duvidosos ou politicamente concatenados e que não respeitam a verdadeira história italiana ou tirolesa no Brasil.

 Por fim, o que de fato deveria acontecer é que fosse elaborado um projeto de lei para declarar inconstitucionais as leis anteriores que discriminam e setorizam a imigração no Brasil, para que fosse instituído simplesmente o “Dia do imigrante” – sem qualquer classificação étnica. Isto porque, caros leitores, como é notório historicamente o Brasil é considerado um país de imigração e, portanto, poderíamos acabar com a polêmica e comemorar num único dia todas as imigrações que por aqui aportaram, não é mesmo? E qual o melhor dia para se comemorar essa nova ideia do Dia do imigrante? Ah, melhor deixar essa fundamentação para uma próxima polêmica; se tola ou não, que seja fundamentada em verdade histórica, em uma dissertação de mestrado ou tese de doutorado, mas não por querer do setor do turismo ou em meras articulações político-partidárias de momento.

  • Elton Diego Stolf foi Consultor da Província Autônoma de Trento para o Brasil e presidente do Circolo Trentino di Curitiba. É professor de Direito internacional, advogado e conselheiro do Com.It.Es.PR/SC.