CIDADANIA: INCONSTITUCIONAL? TRIBUNAL DE BOLONHA VAI À CORTE CONSTITUCIONAL ITALIANA ARGUINDO A INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 1º DA LEI DA CIDADANIA ITALIANA
Quando tudo já parecia de pernas para o ar no mundo da cidadania italiana, com questionamentos e obstrucionismos nas áreas dos três poderes da República Italiana e mais uma campanha midiática sem precedentes contra o mecanismo de “transmissão ilimitada” do ius sanguinis a descendentes de italianos que a sorte os colocou na América do Sul e, em especial, no Brasil, eis que um juiz consegue mobilizar um tribunal regional para o insólito questionamento de ofício da Lei número 91, de 5 de fevereiro de 1992, isto é, a própria Lei da Cidadania em vigor.
“O Tribunal de Bolonha, com uma decisão publicada hoje (26/11), “levantou, por iniciativa própria, uma questão de inconstitucionalidade da legislação italiana em matéria de cidadania, na parte em que prevê o reconhecimento da cidadania iure sanguinis sem qualquer limite temporal”, dizia um comunicado enviado a Insieme pelo prefeito de Val di Zoldo, Camillo de Pellegrin, curiosamente antes mesmo do envio do material à suprema instância.
“O anúncio – prosseguia o texto – foi feito pelo presidente do Tribunal de Bolonha, Pasquale Liccardo, explicando que foi solicitado ao Tribunal Constitucional que “avalie se o reconhecimento da cidadania apenas pela existência de um antepassado italiano, ainda que distante em muitas gerações, para aqueles que não possuem qualquer vínculo cultural, linguístico, tradicional ou não demonstram nenhuma relação com o território italiano, é compatível com os princípios derivados da Constituição”.
A solicitação foi baseada em um caso que envolve 12 pessoas de uma mesma família brasileira que “reivindicam o reconhecimento da cidadania italiana apenas pela presença de uma antepassada italiana, entre as dezenas de outros antepassados não italianos, nascida em 1876 e que partiu jovem do nosso país”.
O comunicado que, no mesmo dia, ganhou espaço na mídia mundial, considerava que “o ordenamento jurídico italiano é um dos poucos no mundo que reconhece o ius sanguinis sem prever qualquer limite” e que a Itália “possui, no exterior, segundo as estimativas mais confiáveis, várias dezenas de milhões de descendentes de um antepassado italiano”. Explicava também que o Tribunal de Bolonha “solicita ao Tribunal Constitucional, com diversas referências “inclusive às orientações interpretativas da Suprema Corte Constitucional e da Suprema Corte Internacional de Justiça”, que verifique se essa legislação é ou não contrária às noções de povo e de cidadania, conforme referidas na Constituição, ao princípio da razoabilidade e às obrigações internacionais assumidas pela Itália, inclusive no âmbito da União Europeia”.
Imediatamente Insieme passou a consultar juristas italianos acerca do insólito pedido. Um dos primeiros a se manifestar foi advogado Marco Mellone, que reside exatamente em Bolonha, em cuja universidade obteve um PHD em Direito, bisado com a Universidade de Estrargurgo. Ele tentou obter o texto da “ordinanza” no mesmo dia, mas só conseguiu seu intento na manhã do dia seguinte (27/11). E algumas horas depois, “a quente”, nos concedeu a seguinte entrevista:
Sem ainda conhecer o texto, o senhor definiu a questão como a mãe de todas as batalhas. Por que é que o senhor assim pensa, Doutor?
É um grande prazer estar de novo com todos vocês aqui e comentar essa notícia que saiu ontem aqui e que nos deixou com bastante surpresa, porque se trata da primeira decis˜ão nesse sentido.
Eu defini essa batalha como a mãe de todas as batalhas, porque é a primeira vez que o instituto do jus sanguinis italiano chega ao exame da Corte Constitucional italiana. Então será uma batalha muito importante, um pronunciamento muito importante. Mas isso não quer dizer que eu esteja preocupado com esta batalha. Ao contrário, estou com muita confiança que este fato, que poderia ser alarmante para a comunidade de ítalo-descendentes, na realidade será um evento, uma coisa que irá reforçar os direitos dos ítalo-descendentes. Porque todos sabemos que a lei atual de cidadania italiana, ou o ius sanguinis italiano, tal como foi imaginado já a partir do Código Civil Italiano de 1865, é uma normativa que não é nada inconstitucional, ou seja, não é contrária aos princípios que foram depois elaborados em 1946 e que entraram em vigor em 1948, aqui na Itália. Então será um momento muito importante, como foi, por exemplo, o momento da decisão da Suprema Corte, em 2022, no caso da grande naturalização brasileira.
Após essa batalha da grande naturalização, nós, a comunidade e as pessoas que trabalham na defesa dos direitos dos ítalo-descendentes, já desenvolvemos os anticorpos necessários para enfrentar também esta nova batalha, que, inclusive eu acho, será menos complicada do que a batalha da grande naturalização, embora seja muito importante, porque aqui estamos falando não de uma parte específica da lei, mas da estrutura da lei sobre cidadania italiana e do principio principal, que é o ius sanguinis. Então, por isso, a grande importância.
E por que me deixou bastante surpreso esta notícia? Porque até hoje muito simplesmente nenhum juiz, que eu saiba, de nenhum tribunal italiano, saiu com este tipo de tese, ou seja, que ou ius sanguinis, sem prever algum tipo de limitação, seria inconstitucional.
Inclusive, vou também dar esta notícia que é importante: o Tribunal de Bolonha até hoje já proferiu, eu acredito, centenas de sentenças em que aplicou os vários dispositivos do ius sanguinis italiano, ou seja, artigo 4º do Código Civil de 1875, o artigo 1 da Lei de 1912 e artigo 1 da lei de 1992. Então, esse mesmo tribunal com – atenção! – este mesmo Presidente da Vara Especializada em Cidadania, O próprio Dr. Marco Gattuso já proferiu muitas sentenças que aplicaram estes dispositivos sem nenhum tipo de dúvida sobre a sua legitimidade, inclusive. Olha que coisa muito esquisita. O próprio Dr. Marco Gattuso, o juiz que proferiu ontem esse pedido de análise de constitucionalidade à Corte Constitucional italiana, ele mesmo, e pelo menos em cada um dos meus casos, mas imagino que tenha muitos outros, em que ele mesmo delegou a outro juiz, depois de analisar o caso e proferir sentença, aprovou, já aplicou, ele mesmo os dispositivos do ius sanguinis italiano sem dizer nada, sem problema nenhum.
Então, como é possível que esse mesmo tribunal, esse mesmo juiz, tanto na sua função de presidente da Vara especializada – o presidente da Vara é uma figura que tem também a tarefa de uniformizar, de dar uma indicação unívoca aos vários juízes sobre as possíveis interpretações – então, tanto na figura de presidente de Vara quanto na figura de juiz num caso concreto, nunca ele saiu com essa mesma tese. É uma coisa bastante esquisita e que gerou muitas dúvidas.
Depois de analisar o que foi escrito, vamos rapidamente explicar o que vai acontecer justo para deixar mais tranquilos os possíveis interessados. É um pedido de analise constitucional. Não vai impactar sobre todos os processos judiciais pendentes ou sobre os futuros processos judiciais. É uma iniciativa isolada de um juiz que pediu para a Corte Constitucional analisar, quando puder, a legitimidade do ius sanguinis italiano. Mas todos os outros processos pendentes não vão sofrer impacto, a não ser que algum juiz preferira esperar o julgamento da Corte Constitucional italiana. Só que a Corte Constitucional Italiana provavelmente vai dar um retorno daqui a seis, oito meses, um ano. Depende de muitas coisas. Não é um pronunciamento que vai ter lugar nos próximos dois, três meses. Então temos que imaginar pelo menos daqui a um ano e para se ter uma possível resposta.
Então, não faz sentido que, por uma iniciativa de um único juiz, todas as dezenas de milhares de processos de cidadania italiana pendentes sejam parados, porque isso seria realmente um absurdo. Inclusive já as primeiras notícias que saíram hoje após essa decisão de ontem nos levam a ter uma confirmação disso, porque eu hoje recebi sentenças positivas, recebi marcações de audiência, inclusive já falei com alguns juízes que me disseram que há uma iniciativa de um juiz que se respeita, mas não é um pronunciamento da Suprema Corte, não é um pronunciamento da Corte Constitucional. Ou seja, é uma iniciativa de um único juiz. E, depois, cada juiz vai trabalhar e pensar de forma diferente. Então, não vai ter um impacto imediato. O único efeito possível seria no próprio Tribunal de Bolonha, onde foi proferida a sentença. Vai ter uma espera. Ou seja, os outros casos pendentes no Tribunal de Bolonha poderiam ser parados até o pronunciamento da Corte Constitucional Italiana. Inclusive eu já vi no próprio Tribunal de Bolonha, onde fui hoje de manhã, que teve alguma decisão de postergar audiência já marcada, exatamente para esperar o pronunciamento da Corte Constitucional. Mas fora isso, os outros processos não serão diretamente afetados.
Outra coisa são os procedimentos administrativos. Isso também depende do Ministério do Interior italiano. Mas eu duvido muito que o Ministério do Interior possa dispor que todos os procedimentos administrativos pendentes de cidadania italiana sejam parados durante um ano somente devido à iniciativa de um único juiz. Isso, para mim, seria bastante grave, pois é apenas um pedido e não quer dizer que a lei seja inconstitucional. Um pedido é um pedido e, pelas razões que vou explicar daqui a pouco, o que está escrito neste pedido é algo que confirma a ideia que ele terá muito poucas chances ser aceito pela Corte Constitucional e, depois, também que possa ser acolhido no mérito. Isso para tranquilizar. Pelo sistema italiano, este pedido não vai, de fato, impactar muito. Teremos, no próximo ano, milhares e milhares de decisões dos tribunais de primeira instância e de segunda instância, inclusive alguma sentença. Também estamos esperando a Suprema Corte e todas elas irão aplicar essa mesma regra e lei que, hoje, este juiz fala que seria inconstitucional. Isso é uma coisa importante para todos.
Depois, se você estiver de acordo, entro também no mérito desse texto que hoje de manhã foi enviado para a Corte Constitucional Italiana, com cerca de 20 páginas. Primeiro, parece que esse tipo de iniciativa já era estava na cabeça do juiz há bastante tempo. Porque ele mesmo explica como foi o processo: teve uma audiência com uma colega aqui de Bolonha, em que esse juiz fez algumas perguntas muito esquisitas para ela. É um clássico caso de cidadania italiana materna já com centenas de milhares e milhares de decisões. E o juiz perguntou para a colega coisas que não eram necessárias para o julgamento. Não perguntou coisas sobre a filiação, a descendência, a interrupção da transmissão da cidadania italiana, mas perguntou onde moravam os requerentes, se os requerentes tinha intenção de vir aqui na Itália ou de morar aqui na Itália, se falavam o Italiano… Ou seja, perguntou várias coisas relativas ao contato, à conexão entre os requerentes e à Itália. Coisas que eu nunca vi em nenhum tipo de processo, até porque não têm nada a ver com os requisitos previstos pela lei italiana para o reconhecimento da cidadania italiana. A coisa ainda mais engraçada é que a colega – a quem eu expresso toda a solidariedade porque imagino que não foi uma situação fácil que ela teve que enfrentar – falou: Eu não sei, não sei e não cabe a mim dizer. Eu não sei quais são as intenções dessas pessoas, em querer morar, em não querer morar; se falam bem o italiano… Não sei. Inclusive o juiz perguntou como ela se comunicava com eles, se em italiano ou em outra língua e coisas desse tipo. Ela falou: Não sei. E o juiz Gattuso, como ela respondeu que não sabia, pensou: devo imaginar que essas pessoas não têm nenhum tipo de conexão com o território italiano e com a Itália e, por isso, tenho dúvida que a lei atual seja constitucional, porque se aplica a pessoas que não têm nada a ver com o Estado italiano, com a população italiana.
Olha que coisa. O primeiro erro metodológico é o seguinte: Você tem dúvida que a lei seja inconstitucional, então você deve primeiro ter certeza que as pessoas, que os requerentes realmente não tenham nenhum tipo de conexão com o território italiano, porque sua tese é: como eles não têm nenhum tipo de conexão com os italianos, então eles não “merecem” a cidadania italiana. Mas neste caso isso nem foi analisado concretamente. Foi um tipo de presunção absoluta, como se ele já tinha, na realidade, esse tipo de decisão na cabeça.
Eu estava dizendo que, provavelmente, esse tipo de pedido nem poderia ser considerado aceitável pela corte Constitucional, porque o objeto do pedido é o artigo 1º da lei de 1992. O caso é o de requerentes descendentes de uma mulher que nasceu na Itália 1874. Depois de várias gerações, a maioria dos requerentes nasceram antes de 1992. Então, como nós sempre sabemos e sempre falamos na revista Insieme, tem três dispositivos na história do Ius sanguinis italiano: o artigo quatro do Código de 1885, artigo um da Lei de 1912 e artigo um da lei de 1992. Então esses três dispositivos são os fundamentos jurídicos do pedido de cidadania italiana neste caso. O juiz pediu para declarar inconstitucional a lei atual, mas, na realidade, no caso concreto, era aplicável e se aplicava também as três leis anteriores que não foram objeto de pedido de inconstitucionalidade.
Se você for no site da Corte Constitucional Italiana, aí dá para ver os vários critérios pelos quais a Corte Constitucional pode já considerar um pedido de inconstitucionalidade não aceitável por razões formais, por razões, digamos, lógico-formais. E um destes critérios é quando o juiz que faz este pedido não coloca o artigo específico, a norma especifica que ele fala que seja inconstitucional. Isso denota que ele não conhece muito bem a lei, a historia do ius sanguinis italiano, porque todo mundo sabe que ela tem vários artigos, várias leis que foram aprovadas ao largo dos 150 anos do Estado italiano e da cidadania italiana.
Então já tem essa questão formal que é bastante importante. Em segundo lugar, sabemos – e de duas formas vamos explicar de novo para o público de Insieme – que a Corte Constitucional Italiana não faz as leis, não aprova as leis. Não é o legislador. Quem faz as leis na Itália é o Parlamento italiano. Então, se você pede à Corte Constitucional italiana que declare inconstitucional o ius sanguinis, que preveja algumas condições, algumas limitações, você está pedindo à Corte Constitucional de fazer o papel do legislador, ou seja, você está pedindo à Corte Constitucional que ela mesmo estabeleça os critérios. Mas ela não pode fazer isso. Não são magistrados eleitos pela população. Então não têm esse papel no ordenamento jurídico italiano. Então esse é outro grande motivo pelo qual a Corte Constitucional poderia não declarar aceitável este pedido.
Isso também é muito importante para o público da revista Insieme.
Depois, no mérito do que fala o juiz Gattuso: para sintetizar, mais do que um documento jurídico escrito por um juiz que utiliza muitas normas jurídicas, fundamentos jurídicos, me parece um documento escrito por um “administrativo’, um burocrata, um exponente da burocracia italiana que fala por dogmas, por verdades absolutas. Vou dar um exemplo: Página nove:
“Resulta de um conhecido estudo empírico que a grande maioria dos requerentes, que apresentam entre todos os seus ascendentes pelo menos um único e distante emigrante italiano, não apenas carecem de qualquer contato cultural ou linguístico com o país, mas também estão interessados na cidadania não com o objetivo de um vínculo mais forte com a Itália, mas sim visando a transferência para outros países da União Europeia (60% dos italianos residentes na Espanha nasceram em um continente diferente da Europa; os italianos nascidos na América Latina representam hoje 78% dos cidadãos italianos residentes na circunscrição de Barcelona) ou para os Estados Unidos da América, onde, desde 1986, os cidadãos italianos estão isentos de visto (a literatura menciona controles mais rigorosos na fronteira dos EUA para italianos ‘nascidos no exterior’).”
Aí ele começa com essa frase, a clássica frase que a gente já escutou por milhões de vezes. É um discurso político. É burocrático. E outra coisa: um juiz fala isso aí e, sobretudo, se baseia numa fonte que não se sabe qual é, porque nem cita qual é esse estudo empírico ou análise empírica que demonstraria, de forma científica, que a maioria dos ítalo descendentes estão interessados no passaporte para viajar à Europa ou aos Estados Unidos. Então, isso é uma sentença? Num pedido tão importante, não é aceitável como argumento jurídico. Porque nem tem fundamento científico. Então, isso é bastante grave. Por isso eu estou dizendo “dogmas”, “verdades absolutas” e, digamos “sentenças já escritas”.
Então, por isto estou falando que me parece mais um documento daqueles que já conhecemos, que já vimos muitas vezes, em que se fala de coisas sem um fundamento jurídico, nem tanto normativo, nem tanto científico. Não existe nenhum tipo de estudo ou análise científica que demonstre isso, até porque sabemos que não é assim. Não é assim. Ou seja, a maioria dos ítalo descendentes que inclusive já obtiveram o passaporte italiano, não estão morando hoje nos Estados Unidos ou em outros países da União Europeia. Alguns sim. Mas não a maioria. Ou seja, não tem este fenômeno migratório enorme ligado ao passaporte italiano por descendência.
Então, essa é uma consideração geral sobre o mérito dessa decisão. Depois, sempre sintetizando muito porque o documento é extenso, a tese é que o ius sanguinis italiano seria Inconstitucional porque, de fato, hoje estamos enfrentando uma realidade em que há um número enorme de pedidos de reconhecimento da cidadania italiana devido ao fato que todas as pessoas ficaram sabendo que têm direito ao reconhecimento da cidadania italiana. E ele fala isso exatamente na mesma página nove:
“O duplo pressuposto – a extensão exorbitante do grupo de sujeitos interessados no reconhecimento e a ausência de limites na aplicação do critério da descendência –, combinado com a facilidade de acesso, graças à internet, às informações e procedimentos, levanta hoje diversos problemas em relação a dois âmbitos jurídicos: a compatibilidade com o quadro constitucional como um todo, em particular com a própria definição da noção de «povo», que, juntamente com as noções de território e soberania, contribui para compor a própria noção de «República»; e, por outro lado, a delicada questão da compatibilidade com os compromissos internacionais, tanto de natureza mais ampla quanto decorrentes da adesão à União Europeia”.
Se hoje tem um número potencialmente enorme de interessados, isso deve-se ao fato de que todas essas pessoas ficaram sabendo, graças à internet, graças às redes sociais que eles têm direito à cidadania italiana. E por isso seria inconstitucional porque o fenômeno vai criar uma Nação de população, de comunidade, que não é coesa porque é feita por pessoas que não têm uma conexão efetiva com o território italiano, com a comunidade italiana. Olha que coisa discutível, muito discutível. Ele cita o fato que, de fato, antes, nos anos 50, 60, 70, 80, 90 – lei era sempre a mesma, porque nunca mudou – não criava problemas, não era inconstitucional. Antes. E se tornou Inconstitucional nos últimos anos? Por quê? Porque tem um número muito alto de pessoas que, com internet, com as redes sociais, ficaram sabendo do Direito. Então ele está pedindo a inconstitucionalidade.
Mas eu pergunto: é esta a inconstitucionalidade, ou a inconstitucionalidade está no fato de uma pessoa ter um direito e não ter acesso a esse direito, não ficar sabendo que pode exercer, que pode utilizar esse direito? Então ele está autorizando uma argumentação que ela mesmo, na realidade, é a argumentação que qualquer ítalo-descendente deveria utilizar, porque a Constituição italiana quer fazer saber às pessoas que eles têm o direito. Então é exatamente o contrário. Então, esta é a grande confusão que existe nesta tese do Tribunal de Bolonha.
O ius sanguinis italiano foi sempre o mesmo. A lei nunca mudou. Nunca. Inclusive, não existe na Constituição italiana, na legislação italiana, um princípio de efetividade pelo qual é necessário que haja uma conexão direta, ou seja, é sempre a escolha do legislador, é o Parlamento Italiano que vai tomar a decisão de como vai ser este possível critério. E até hoje a lei italiana, o legislador italiano nunca colocou limites ou condições diferentes. Analisando a história da lei italiana, sempre houve intervenções do legislador em favor dos Ítalo-descendentes. É o contrário, a tendência é exatamente a de favorecer o reconhecimento e de favorecer a participação da comunidade no Estado italiano. Por exemplo, o direito de votar e também de ser votado. Então olha um pouco a confusão, o conflito constitucional que eu vejo aqui neste documento.
E o segundo argumento, ainda mais fraco, é de que o ordenamento italiano seria contrário a os princípios de direito internacional, aos princípios do direito da União Europeia. Aqui não quero roubar o tempo dos leitores da revista Insieme porque essa argumentação eu já expliquei em matéria publicada há alguns meses, e em que eu já imaginava que um dia se iria falar disso, ou seja, que o ius sanguinis italiano, era contrário ao direito internacional e ao direito da União Europeia. Então escrevi esse artigo exatamente para antecipar essa possível crítica e para explicar que, absolutamente, não é assim. Primeiro de tudo, Gattuso cita uma famosa sentença na Corte Internacional de Justiça, que é um caso absolutamente isolado dos anos 50, em que a Corte Internacional de Justiça nunca aplicou ulteriormente. E também foi um caso em que o princípio de efetividade foi utilizado só por uma questão técnica, mas nunca foi elaborado na comunidade internacional o fato que o cidadão deva ser cidadão efetivo em um país. É uma escolha nacional de cada legislador pode fazer. Em segundo lugar, o ius sanguinis italiano não é contrário ao direito da União Europeia. Por várias razões, que eu já expliquei. Primeiro porque a União Europeia nasceu bem depois do ius sanguinis italiano, da unificação italiana. Quando a Itália participou da Comunidade que, depois, tornou-se a União Europeia, já existia o fenômeno da emigração, inclusive já estava praticamente terminado. Então o ius sanguinis já existia, os outros países já sabiam da realidade italiana. Ou seja, a Itália tinha uma possível outra Itália fora do país.
Depois, a Itália, sabemos, não é o único país em que aplica de fato o mesmo princípio ius sanguinis sem limitações. Porque isso é outra coisa que o Dr. Gattuso disse, que a Itália é um dos poucos países do mundo em que se aplica o ius sanguinis dessa forma. Não é verdade. Já sabemos disso. Então, também nesta perspectiva, o ius sanguinis italiano não é contrário ao direito da União Europeia. E também por esse lado, acho que a Corte Constitucional, se um dia for julgar esse pedido de constitucionalidade, considerará improcedente, não fundado. Essa é uma síntese sobre as argumentações dó pedido que, repito, considero bastante fracas do ponto de vista jurídico, e muito condicionada pelo ambiente que se criou nos últimos meses em torno do fenômeno da cidadania italiana.
Uma observação, Dr. Mellone: os 12 referidos no processo são do Brasil; a segunda observação é o pedido de limitar a transmissão na segunda geração. Certa coincidência com algumas propostas que correm no Parlamento. Como é que o senhor vê isso?
Eu vejo isso como uma coisa bastante ritual, porque, repito, quem faz as leis na Itália é o Parlamento, é o legislador. Não são os juízes, nem a Corte Constitucional italiana. Eu tenho lido, na minha cadeira de profissional, muitos pedidos de análise de constitucionalidade. Mas raramente, ou quem sabe, nunca vi o juiz sugerir a solução concreta à Corte Constitucional italiana, inclusive porque se você faz um pedido, você não vai dar a resposta. Nesse caso, a resposta não pode ser essa, porque a Corte Constitucional não faz as leis.
O que poderia acontecer – mas, repito, não nesse caso – se por absurdo a Corte Constitucional considerasse fundado este pedido, seria enviar formalmente um convite ao Parlamento para que ele legiferasse, fizesse uma nova lei. Ou, no pior dos piores dos casos, dar alguma, digamos, indicação genérica. Mas eu realmente acredito que não vai ser assim. Seria um trabalho que não cabe à Corte Constitucional.
Além disso, é uma matéria tão importante, tão central no ordenamento jurídico, ou seja, é uma coisa que depende da vontade política, da vontade da população italiana, porque a Constituição tem esse poder de interpretar o sentimento da comunidade nacional. Vejo isso também uma coisa bastante ritual e, além disso, sobretudo na função de explicar o que quer dizer duas gerações. O que quer dizer? Então, é mais uma tentativa de, de alguma forma, limitar o direito atual que existe dos ítalo descendentes que já nasceram. E como já explicamos milhões de vezes, a solução limitatória, esta, sim, seria absolutamente inconstitucional. Além disso, vamos imaginar que, por absurdo, a Corte Constitucional possa dizer sim, é verdade, o ius sanguinis atual é inconstitucional. Mas todas as pessoas que já foram reconhecidas… o que acontece?
Como é que ficaria essa situação?
Na mesma família, quem nasceu depois da sentença da Corte Constitucional, fica sem cidadania? E quem entrou com um processo que ainda não foi reconhecido, como fica a cidadania? Como sempre, quando eu vejo esses documentos, vejo que quem escreve isso nem percebe os efeitos enormes que uma limitação retroativa, uma limitação a quem já nasceu italiano, poderia provocar. Essa é minha grande preocupação, porque quem escreve isso nem vai ter noção das consequências.
Agora vou dizer uma coisa técnica: A Corte Constitucional tem também o direito, o poder de limitar os efeitos das decisões de inconstitucionalidade. Ou seja, dizer que essa decisão vale só para o futuro e não vale para o passado. Só que, no passado, já nasceram e foram reconhecidos milhões de pessoas, entre os quais estamos nós. Porque não podemos esquecer que eu e também você somos italianos em função desta lei que hoje é objeto de um pedido de inconstitucionalidade. Então, como ficaria isso?
Que quer dizer duas gerações? A partir de quando? De quem nasceu? De quem não nasceu? De quem foi o último residente? Essa é a grande confusão que eu vejo nesta matéria. E vou dizer uma coisa: o Doutor Gattuso eu o conheci pessoalmente e inclusive tive também a honra de dar para ele cópia dos livros que escrevi sobre a cidadania italiana. Eu espero que o Dr. Gattuso possa reler minhas obras, mas não porque eu queira, mas simplesmente porque nelas eu descrevi a lei italiana e o que aconteceu na história da lei italiana sobre a cidadania. E espero que essas leituras possam ajudar a repensar a sua opinião sobre essa temática.
O senhor falava inicialmente sobre uma possível preocupação a respeito do trancamento de ações e até de uma orientação do Ministério do Interior até a decisão da Corte Constitucional. Isso tudo não teria um ingrediente político, algum manifesto no âmbito também da Justiça, para chamar a atenção sobre o assunto que se tornou uma evidência hoje na Itália, e muitas vezes até de forma pejorativa e até xenofóbica com relação a certas comunidades, como por exemplo da América do Sul, ou do Brasil?
Eu posso simplesmente dizer que neste documento, como eu disse antes, eu vejo muita coisa que não é necessariamente jurídica, mas que é outra coisa. Inclusive, eu vou dizer que esta decisão, para mim, nasceu no mês de abril deste ano, 2024. Nasceu em Pádova, onde, tanto o Daniel Taddone quanto eu estávamos na conferência de Pádova, onde foi dito, pela primeira vez, e foi explicado que o ius sanguinis italiano podia ser inconstitucional. E essa foi a origem, para mim, dessa decisão que estamos analisando hoje. Porque a partir daquele momento houve um “trend” público em que, de alguma forma, se pensou de como a limitar o atual ius sanguinis italiano. Esse tipo de ideia chegou nesta decisão, porém, uma coisa é certa: o Tribunal de Bolonha, até de Abril 2024, proferiu centenas de sentenças que aplicaram o ius sanguinis italiano sem problema algum, e que reconheceram a legitimidade do ius sanguinis italiano. Então, como é possível que os mesmos juízes, o mesmo tribunal, a mesma Justiça, o mesmo juiz que, também na sua função de presidente da Vara que é de dar a uniformidade de interpretação, como é possível que hoje saia como essa coisa tão importante que é contrária ao que nos foi dito pelo próprio tribunal? Isso é uma coisa esquisita, bastante esquisita.
É interessante essa sua observação, doutor. Porque, então, em nosso socorro deveríamos recorrer às decisões do próprio doutor Gattuso, em função das sentenças por ele mesmo proferidas até agora.
É. Tenho muitos exemplos, mas também os têm os meus colegas. Porque o Tribunal de Bolonha proferiu muitas sentenças até hoje e, repito, eu tenho inclusive sentenças em que o próprio Dr. Gattuso era o juiz titular, que delegou a outro juiz para analisar o caso, mas ele ficou o juiz titular e o caso chegou à sentença, em que se aplicou a normativa italiana e os vários dispositivos da norma italiana, sem problema nenhum. Então, se uma lei é inconstitucional hoje, era inconstitucional também antes. Então como é possível? Esta seria a pergunta certa.
Outra observação que eu faria: o processo em questão trata da cidadania pela via materna antes de 1948, exatamente o tema principal de suas obras publicadas, mas este assunto não foi questionado no recurso…
Não é questionado e inclusive se fala sobre a questão materna, se fala sobre a Suprema Corte, que disse que os netos de língua materna têm direito e tudo o mais. Ele faz uma argumentação que vai por cima, digamos, da questão materna e de todas as outras questões que tem no mundo da cidadania italiana, isto é, vai à cabeça, dizendo que há algo errado, inconstitucional no próprio sistema, no próprio princípio de usar sem limitações. E depois, posso dizer também uma coisa? Sempre se fala que o ius sanguinis é ilimitado. Na realidade não é verdade que é ilimitado. Isso é outra coisa que seria bom esclarecer um pouco. Ou seja, o ius sanguinis é um pai ou uma mãe que transmite a cidadania ao filho ou à filha. Depois, se essa filha ou esse filho tem outro filho, então a cidadania de novo passa para a geração posterior. Se esse filho não tem filhos, aí pára. Depois, se esse filho, por alguma razão, perde a cidadania durante a vida, não pode mais transmitir, evidentemente. Então, existem limitações. Quando se fala de ius sanguinis ilimitado, parece que realmente não tem nenhum tipo de limitação, que realmente seja uma coisa contínua, um fluxo contínuo até o infinito, sem nenhum tipo de fim. A lei italiana, tanto a atual quanto a lei passada, sim que estabeleciam algum tipo de limitação. Também nesse sentido há que se colocar as coisas na forma correta. Não existe uma lei de ius sanguinis completamente ilimitado. Nem na Itália.
Muito obrigado pela sua paciência, pelo seu estudo e dedicação a essa causa e muito obrigado principalmente pela tranquilidade que o senhor acaba de passar em função desse pedido que aporta no Tribunal de Bolonha. É importante essa tranquilidade do jurista diante desse fato que, para nós, leigos, assusta um pouco. É verdade, porque é um juiz o Tribunal de Bolonha que está pedindo, arguindo a inconstitucionalidade, ele está querendo limitação; não estamos mais no âmbito do achismo. Estamos no âmbito de juristas, de pessoas experientes na área do Direito.
Vou dizer uma coisa que é bastante importante. Eu acredito que este fato irá nos fazer outro favor. Primeiro, vai provocar um efeito de reforçar ainda mais a comunidade dos ítalo-descendentes e de todos os profissionais que trabalham no setor, porque quanto mais ataques têm a comunidade de ítalo-descendentes, mais esta comunidade vai se unir por uma causa comum, que é o que aconteceu durante a grande naturalização. Irá acontecer também hoje com essa questão. Inclusive, tenho muita confiança, repito, que é possível que a Corte Constitucional vai imediatamente dizer que, por vários motivos, não analisará o mérito. Mas se caso a Corte constitucional chegue até o mérito, eu tenho muita confiança que vai sair outra sentença epocal, como foi a sentença das Seções Unidas da Suprema Corte, em 2022, em favor da lei. Vai estabelecer e vai confirmar o que está escrito na lei, no direito italiano. Sabemos que se reconhece a cidadania para todos os descendentes, sem problemas de constitucionalidade. É outra etapa importante neste caminho, mas uma etapa que vai dar o resultado positivo para todos os ítalo-descendentes.
Texto publicado originariamente na edição 302 da Revista Insieme