Bem-vindos a 2024!

Sobre multas, alarmismos e interesses mercadológicos

Prezados leitores, nosso ano começou quente. Não somente no sentido literal – visto que, após o ano de 2023 ter sido declarado o ano mais quente de todos os tempos, ondas de calor têm fritado o território brasileiro –, mas, igualmente, em sentido figurado. Em 30/12/2023, restou aprovada a lei orçamentária italiana, com uma “novidade” que sacudiu nossa comunidade: a instituição de pesadas multas para aqueles que, porventura, estivessem irregulares com o anágrafe.

No Brasil, a Insieme foi a primeira a se manifestar sobre o tema – ao menos até onde eu tenha ciência. Na primeira “4 Chiacchiere” do ano, nos reunimos eu, Peron, Claudia Antonini e a Dott.ssa Francesca Barbanti, oficial hoje lotada no Ministero dell’Interno, para discutirmos a novidade. Ali, ficaram claras três posições totalmente distintas: eu, alarmado com a notícia; Antonini, em posição de relativa neutralidade e Barbanti, tranquila, exarando a opinião de que a referida multa não se aplicaria a nós, ítalo-descendentes nascidos e desde sempre residentes no exterior.

PATROCINANDO SUA LEITURA

Pouco tempo depois da chiacchierata, não faltaram empresas de cidadania se manifestando – espertamente post factum – no sentido de que os cidadãos deveriam ter “cuidado” com “empresas” e pessoas alarmistas: obviamente, em clara referência à minha posição no debate. A mim, nenhum estranhamento: somente mais uma faceta do “mercado da cidadania” que vem sitiando o Brasil e dilacerando interesses verdadeiramente coletivos. As manifestações que pude acompanhar tiveram lugar, curiosamente, logo após a divulgação da consulta, feita por Daniel Taddone, na qualidade de membro do CGIE, ao Dott. Luigi Vignalli, membro do Maeci, sobre a questão. Ou seja, estiveram todos “na moita” até poderem se posicionar como donos da verdade no momento correto: aproveitando a oportunidade, inclusive, para fazerem marketing ao se dizerem “não alarmistas” em contraposição aos “concorrentes” que, por sua vez – conforme se entende subliminarmente – deveriam ser evitados por estarem criando alarmes com “clara” finalidade mercadológica. Ao final deste artigo, quero que os leitores se perguntem, com sinceridade, onde estão, de fato, interesses de mercado. Vamos até o fim.

Primeiramente, é importante ressaltar que há um grande distanciamento entre o falado e o escrito. E, nesse sentido, somente meus leitores podem percebê-lo. Ao sermos chamados a nos manifestar sobre uma notícia “quente”, não há tempo hábil para análises aprofundadas. São medidas inversamente proporcionais: ou perde a agilidade da notícia, ou perde a exatidão da análise. Para um “furo”, pesa-se mais na agilidade – mas, obviamente, isso não desqualifica a exatidão que, no caso da minha participação como colunista na Insieme, vem quando escrevo. Assim, apoiar-se tão somente no que é falado revela ou preguiça ou má-fé. Costumo apostar mais na segunda hipótese, a depender dos interlocutores. Questões de alta indagação somente são resolvidas a partir de muita leitura, de bastantes estudos e consultas a várias vozes: não podem ser respondidas de pronto. Se, no falado, eu peso na intuição, no escrito entra em jogo a ponderação.

Em segundo lugar, toda a mídia internacional – e muitos órgãos oficiais (vide alguns Consulados e Embaixadas mundo afora, exemplificativamente, Washington e Genebra) noticiaram, nos mesmos termos, a questão das multas (sobre a qual falarei mais adiante, não se preocupem). Mesmo instituições de inegável renome (vide, p. ex., artigo no La Reppublica, ) deixaram claro o fato de não estar assentado o que poderá ocorrer àqueles que não se inscrevem no Aire e que, posteriormente, possam ser descobertos, reclamando o artigo que “un chiariamento sarebbe auspicabile”. O fato é que, neste momento, as alterações trazidas pela Lei Orçamentária ainda estão sendo avaliadas em tese.

Este ponto é importante para um esclarecimento essencial: sociólogos e juristas pensam de formas totalmente diversas sobre os mesmíssimos problemas. E é bom que seja assim. Enquanto o sociólogo se preocupa basicamente com o mundo “posto”, ou seja, como as coisas realmente têm acontecido, juristas devem se preocupar basicamente com as coisas que podem acontecer, ou seja, que estão teoricamente permitidas ou não vedadas em lei, mesmo que jamais aconteçam. Somente pensando assim é que se torna possível orientar comportamentos para evitar consequências futuras, ainda que incertas. Por esta razão, leitores, é e sempre será impossível confrontar minhas opiniões com as do sociólogo Daniel Taddone. Estaremos sempre, cada qual, devidamente aprisionados em maneiras totalmente distintas de ver o mundo – ambas igualmente válidas e necessárias, registre-se. Como jurista, eu sempre pesarei mais minha visão no que pode vir a ocorrer; como sociólogo, ele sempre pesará mais sua visão no que de fato ocorreu ou no que tem grande probabilidade de ocorrência. Todo o Direito é construído a partir de figuras arquetípicas do dever-ser – muitas delas sem uma única ocorrência no mundo concreto –, mas é papel do jurista antecipar consequências em caso de ocorrência, mesmo que remotas. Aliás, dessa habilidade são feitos os grandes advogados da História: enquanto a maioria está só com o fubá, eles já têm a broa pronta. Meu papel sempre será o de tentar antever consequências, mesmo que improváveis ou irrealizáveis, tendo por horizonte, muitas das vezes, somente as frias letras das leis.

No que tange às multas de 200 a 1000 euro, em uma primeira aproximação, de fato antevi a possibilidade de sua aplicação a todos os ítalo-brasileiros em situação de irregularidade junto ao anagrafe. Vamos reconstituir claramente os porquês.

O primeiro documento ao qual tive acesso foi o “Dossie XIX Legislatura”, sobre a Lei do Orçamento, publicado em 20/12/2023. Nos comentários, vejamos o que diz o dossiê:

Do artigo 49.º, o n.º 6 aumenta o valor da sanção administrativa pecuniária pelo descumprimento das obrigações vigentes, tanto de dados pessoais como relativas à transferência de residência para o exterior ou do exterior. Ao mesmo tempo, introduz uma atenuação desta sanção administrativa pecuniária para o caso de comunicações tardias (desde que efetuadas no prazo de noventa dias após o prazo fixado).

O § 7º prevê para as administrações públicas a obrigação de comunicar ao Município de registro e à repartição consular competente, caso percebam, no exercício de suas funções, elementos “relevantes” como a indicação de residência de fato para o exterior do cidadão italiano. Dispõe também que o Município comunique à Receita, para as consequentes verificações fiscais, os registros oficiais e cancelamentos de registro de italianos no exterior.

E continua:

Por descumprimento de obrigações cadastrais – conforme estabelece a lei nº. 1228 de 1954, que contém o “Regulamento dos registros nacionais da população” – a sanção administrativa ‘plena’ é igual a um montante que se prevê estar entre 100 e 500 euros (em vez de entre 25,82 e 129,11 euros).

[…]

Para a comunicação de residência em caso de transferência do exterior, o mesmo artigo 11.º da Lei n.º 1228 prevê sanção administrativa pecuniária (por um valor até agora entre 51,65 e 258,23 euros).

A obrigação de comunicação em caso de transferência para o exterior está prevista na lei n.º 1. 470 de 1988 (“Registro e censo de italianos no exterior), no artigo 6º.

Também para este tipo de obrigação de comunicação, a nova lei prevê agora um agravamento da multa administrativa, que passa a ser entre 200 e 1.000 euros por cada ano em que a omissão persista.

Ora, segundo o dossiê, seriam três distintas hipóteses elencadas para a vinculação das multas – uma geral, uma específica e uma incerta; respectivamente: 1. Pelo descumprimento de obrigações anagráficas – tais quais previstas na Lei n. 1228/1954; 2. Pelo descumprimento de uma obrigação específica de “comunicação de residência em caso de transfência do exterior” – específica porque elencada no art. 11 da Lei n. 1228/54 e 3. Pelo descumprimento de uma obrigação referente à “comunicação de residência em caso de transferência para o exterior – incerta porque elencado o art. 6 da Lei n. 470/1988, sem especificação da alínea, o que levava a crer que o descumprimento de quaisquer das obrigações previstas no referido artigo poderiam ser sancionadas pela extensão maior das multas.

O texto da Lei Orçamentária (Lei n. 213, de 30/12/2023), embora com referências mais claras, não ajudou muito a esclarecer quem seriam os sujeitos passivos das sanções ali previstas – e um reflexo disto são exatamente as publicações jornalísticas e notas oficiais que se seguiram mundo afora (aqui incluída minha controvertida opinião). Vejamos como ficou:

242. Artigo 11 da lei de 24 de dezembro de 1954, n. 1228, passa a ter a seguinte redação:

Art. 11.º – 1. Salvo se o fato constituir crime, quem, tendo obrigações de registo, infringir o disposto na presente lei, na lei de 27 de Outubro de 1988, n. 470, e dos regulamentos de execução das referidas leis está sujeito a multa administrativa que varia entre 100 euros e 500 euros. […]

2. Salvo se o fato constituir crime, a omissão da declaração de transferência de residência do exterior ou no exterior no prazo fixado respectivamente no artigo 13.º, n.º 2, do regulamento a que se refere o decreto do Presidente da República de 30 Maio de 1989, n. 223, ou pelo artigo 6, parágrafos 1 e 4, da lei de 27 de outubro de 1988, n. 470, está sujeito a uma sanção administrativa pecuniária que varia entre 200 euros e 1.000 euros por cada ano em que a omissão persista. […]

Francesca Barbanti, por ocasião da “4 Chiacchiere”, se manifestara no sentido de que as multas de maior extensão não seriam aplicáveis aos nascidos – e sempre residentes – no exterior. Esta opinião, ratificada por Luigi Vignolli, acerca dos sujeitos passivos das multas que vão de 200 a 1000 euro, se mostraria correta. Com efeito, embora no dossiê não ficasse clara a especificidade das hipóteses de aplicação relativamente às tais multas, a modificação do art. 11 da Lei n. 1228/1954 pela Lei do Orçamento fazia referência explícita ao art. 13, 2, do DPR n. 223/1989 c/c art. 6, alíneas 1 e 4, da Lei n. 470/1989, atribuindo-lhes a devida especificidade. Vejamos:

DPR n. 223/1989:

1. As declarações de dados pessoais a realizar pelos dirigentes referidos no art. 6º deste regulamento dizem respeito aos seguintes fatos:

a) transferência de residência de outro município ou do exterior ou transferência de residência para o exterior;

b) constituição de nova família ou nova coabitação, ou alteração da composição da família ou coabitação;

c) mudança de residência;

d) mudança do titular do cartão familiar ou do responsável pela convivência;

e) mudança de qualificação profissional;

f) mudança do título de estudo.

(2. As declarações de dados pessoais referidas no n.º 1 devem ser efetuadas no prazo de vinte dias a contar da data da ocorrência dos fatos. As declarações referidas nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 são efetuadas através de formulários em conformidade com os elaborados pelo Ministério do Interior, em acordo com o Instituto Nacional de Estatística, e publicados no site institucional do Ministério do Interior.)

Legge n. 470/1988:

1. Os cidadãos italianos que transferem a sua residência de um município italiano para o estrangeiro devem declará-la ao serviço consular do distrito de imigração no prazo de noventa dias após a imigração.

4. As declarações dos interessados ​​deverão especificar os membros da família de cidadania italiana a que se refere a própria declaração e serão acompanhadas de documentação que comprove residência no distrito consular.

Assim, quanto às hipóteses relacionadas às multas mais pesadas, não restam mais dúvidas. Minha primeira intuição, baseada unicamente no dossiê, estava equivocada e, com efeito, estas multas são aplicáveis somente, mesmo que em tese, às pessoas que descumprem prazos diante do anágrafe nos casos restritos de emigração (da Itália) ou imigração (para a Itália). A fattispecie requer, necessariamente, como apontou Francesca Barbanti e ratificou, a pedido de Daniel Taddone, Luigi Vignalli, entrada ou saída do território italiano – não estando contidos como sujeitos da norma os italianos nascidos no exterior e ali sempre viventes (obviamente, com a franca exceção dos menores filhos de pessoas emigradas a partir de 1º/1/2024).

Importante ressaltar, entretanto, que, ao contrário do que foi propagandeado com clara finalidade concorrencial por empresas de cidadania, há evidente risco para ao menos duas categorias de ítalo-brasileiros. E quais seriam estes cidadãos? Todos aqueles que reconheceram sua cidadania no território (por fixação de residência nos comuni) e que, ao mudarem-se para o exterior, não fizeram as comunicações necessárias em tempo, sendo o mesmo raciocínio válido para ítalo-brasileiros que ingressam no território com animus permanendi e que não fixam sua residência de jure junto ao Comune de residência. Se, nos primeiros dias de análise, não estava claro qual seria o alcance da norma para nossa população de interesse, agora fica bem nítido que, especialmente para aqueles que reconhecem sua cidadania diretamente na Itália, existe a possibilidade real de aplicação de pesadas multas. Ora, não é “alarmismo” orientar tais cidadãos para que, o mais rápido possível, realizem suas inscrições no Aire, atualizando, igualmente, sua ficha anagráfica com os competentes registras civis.

Adicionalmente, a Lei Orçamentária trouxe outras novidades a respeito do anagrafe: as mais notáveis, o fato de se tornar o Comune o beneficiário final do valor arrecadado (Lei n. 213/2023, art. 242, 3 e 4) e a necessária integração e comunicação dos órgãos da Administração Pública (inclusive os Consulados) entre si e com o Fisco, com o objetivo de, havendo indícios de residência de facto, serem tomadas as providências administrativas e fiscais pertinentes (Lei 213/2023, art. 243).

Estas alterações me levaram a crer que a primeira hipótese descrita no dossiê, esta sim, seria aplicável a todos os cidadãos residentes no exterior – e não somente àqueles que saíssem do ou reingressassem no território. Segundo minha interpretação, as multas de 100 a 500 euro poderiam, ao menos em tese, serem, com efeito, aplicáveis a todos. As alterações legislativas previstas no art. 243 da Lei Orçamentária, para mim, reforçam francamente a “carta branca” dada aos comuni para fazerem caixa com quaisquer descumprimentos, por parte dos cidadãos, a suas obrigações diante do anagrafe.

Esta conclusão não se dá com base em nada mais que não seja a própria letra da lei – o art. 242 da Lei Orçamentária prevê a aplicação das multas em caso de descumprimento de quaisquer obrigações previstas na Lei n. 1228/1954, sem fazer especificações. Para mim, seria um erro (análogo ao que eu mesmo cometi, inclusive) misturar fattispecies distintas.

Em síntese: a Lei Orçamentária de 2023 (vigente a partir de 1º/1/2024) abre espaço para que os comuni arrecadem receita a partir da aplicação de penalidades em vários níveis: em um nível mais geral, contra todos que desrespeitem quaisquer regras a si pertinentes, conforme previstas na Lei n. 1228/1954 – são as multas de 100 a 500 euro; em um nível mais específico, contra aqueles que deixem de comunicar transferências de residência do ou para o exterior – são as multas de 200 a 1000 euro. No que diz respeito aos ítalo-brasileiros, seriam sujeitos das alterações: no primeiro caso, todos os ítalo-brasileiros, independentemente de terem nascido e vivido suas vidas inteiras no exterior, bastando que, das suas atividades, indicie-se irregularidades de anágrafe mesmo que fora da Itália; no segundo caso (segunda e terceira hipóteses do dossiê), os ítalo-brasileiros que, com inscrições Aire no Brasil ou em outro país qualquer, estão a viver de facto na Itália ou, mais lógico e comum, aqueles que, embora possuam residência de jure na Itália, estão a viver de facto no exterior.

Esta interpretação – embora se afaste de alguns – é a que começa a ser esposada pelos comuni, bastando ver os sites de alguns deles, que já publicaram notas sobre o tema, além das primeiras manifestações da Anusca sobre a matéria (vide, p. ex., extrato de artigo publicado em: https://www.anusca.it/inasprite-sanzioni-violazione-obblighi-anagrafici).

Reitero, portanto, com retificação em face daquilo sobre o que me equivoquei, as mesmas orientações feitas na chiacchierata ora criticada por alguns: que os cidadãos busquem cumprir seus deveres, diagnosticando suas respectivas situações com o objetivo de, antes de serem apenados, regularizarem, o quanto antes, tais situações.

Por fim, com relação ao suposto interesse mercadológico e seu correlato “alarmismo”: serviço coletivo se vê pela capacidade que temos de doar nossos nomes, nossas horas e nosso trabalho, sem custos, a todos. Aqueles que me acusam de propagandear alarmismos com interesses mercadológicos são, eles mesmos, os próprios interessados unicamente em cifras. Não se vê que estejam envolvidos em nada que interesse ao coletivo, nunca. Não gastam um único euro (dos milhares que ganham) em prol de nenhum fomento; não participam de nada se não forem pagos (ou, no mínimo, reembolsados); não dão as caras na luta pela comunidade com medo de terem manchadas as imagens de seus negócios. A quem me critica, é bom lembrar que minha fala na chicchierata inaugural de 2024 incluiu, principalmente, um chamado para o serviço público: identificar os cidadãos em situação de vulnerabilidade para organizarmos um serviço gratuito de auxílio e consultoria. No mesmo vídeo, me prontifiquei a doar meu tempo para esta finalidade – e até o presente momento, não recebi nenhuma mensagem, de nenhuma das assessorias que me criticaram, dizendo que também estariam dispostas a servir aos nossos cidadãos sem qualquer contrapartida financeira: algumas estão, aliás, fazendo campanhas publicitárias fundadas no meu suposto “alarmismo”.

Fato é que a verdade sobre este mercado ainda está por vir: e seus verdadeiros desvios virão à tona no tempo certo. Até lá, me contentarei com a sabedoria do senso comum: o que você diz sobre o outro é um reflexo de você mesmo e sempre dirá muito mais sobre si.