1 de novembro de 2021, Bolsonaro recebe da prefeita de Anguilara Veneta, terra de seus antepassados, o título de cidadão honorário. (Foto Alan Santos/PR/www.gov.br)

No último dia 30, o microcosmo da comunidade ítalo-brasileira acordou com uma nova onda de polêmicas em torno da cidadania italiana do clã Bolsonaro. Desta vez, foi o conceituado jornalista Jamil Chade a publicar uma matéria em que afirma que a Câmara dos Deputados da Itália aprovou uma “emenda” que poderia barrar a “concessão” (sic) da cidadania italiana a Bolsonaro (e consequentemente a seus filhos) pelo crime de “conspiração política”.

A matéria conjuga uma grande “barrigada” e erros conceituais básicos ligados à legislação italiana sobre a cidadania/nacionalidade (termos aqui, grosseiramente, tratados como sinônimos).

PATROCINANDO SUA LEITURA

Como é praxe, a imprensa trata a questão da nacionalidade de forma leviana, ou seja, sem o mínimo conhecimento do tema. Não podemos culpar apenas os jornalistas, pois quase sempre esse tipo de concepção absolutamente equivocada é fomentada e promovida pelo mundo político. A verdade é, mesmo que soe um tanto inacreditável, que os políticos não entendem lhufas da legislação sobre nacionalidade de seu próprio país.

Como já escrevemos inúmeras vezes aqui nesta revista Insieme, existe a confusão básica entre concessão e atribuição de cidadania, ou seja, entre cidadania derivada e cidadania originária. No caso de Bolsonaro, escrevemos um artigo em janeiro deste ano sobre este mesmo ponto crucial do entendimento da sua cidadania italiana. Bolsonaro e seus filhos nasceram italianos. E isto o que determina a lei italiana. O reconhecimento desse status civitatis depende tão somente de um procedimento administrativo bastante simples.

Esse status civitatis é imprescritível e incondicionado. Não importa que crimes um cidadão italiano originário venha a cometer, em hipótese alguma o Estado poderá “cancelar” sua cidadania italiana, mesmo que esta não tenha sido ainda formalmente reconhecida. Pode ser um terrorista, um assassino em série ou um genocida. Se nasceu italiano, é italiano e pode pedir o reconhecimento da cidadania mesmo dentro de uma cela onde cumpra pena perpétua.

Estes acima são os erros conceituais sobre a cidadania italiana. Agora vem a barrigada jornalística: a tal “emenda” do deputado Angelo Bonelli, cujo número é 14.043, foi declarada inadmissível. Portanto, nem mesmo seguiu qualquer trâmite no Parlamento. A votação acachapante a que Jamil Chade faz referência em sua matéria é na verdade relativa a uma ordem do dia sobre o projeto de lei nº. 1294 cujo título é “Disposizioni per il contrasto della violenza sulle donne e della violenza domestica”.

Não se trata, portanto, de uma votação sobre a proposta emendativa que modificaria o artigo 6 da Lei 91 de 1992 (a atual lei vigente sobre a cidadania italiana), mas apenas uma ordem do dia que possibilite a discussão de uma matéria muito mais amplas sobre a violência doméstica e de gênero.

E, repetimos, mesmo que tal proposta do deputado Bonelli tivesse sido aprovada pelo Parlamento e sancionada pelo presidente da República Italiana em rigorosamente nada afetaria a cidadania de Bolsonaro e seus filhos. Tal proposta introduziria apenas causas que impedem a concessão da cidadania italiana por naturalização como regulado pelo artigo 5º da mesma lei.

Todavia, Bolsonaro e seus filhos “01”, “02” e “03” nasceram cidadãos italianos de acordo com o artigo 1º da Lei 555 de 1912. Os filhos mais novos, Renan e Laura, são italianos pelo artigo 1º da Lei 91 de 1992, ainda em vigor. E absolutamente nenhuma nova lei ou modificação daquela hoje vigente poderá afetar essa realidade. Pode parecer contraintuitivo, mas assim é. Para citar um exemplo bastante didático, a filha da primeira-ministra da Itália, Ginevra, é cidadã italiana por força do mesmo artigo de lei que faz de Laura Bolsonaro uma cidadã italiana, isto é, o já citado artigo 1º da Lei 91/1992.

O único artifício legislativo que poderia mudar essa situação seria a introdução de uma nova causa de perda da cidadania cujos efeitos devem obrigatoriamente ocorrer no futuro e Bolsonaro e filhos deveriam, por ação ou omissão, incorrer no que eventualmente viesse a prever tal causa de perda.

E tudo o que foi dito neste artigo sobre a cidadania do clã Bolsonaro vale para todos aqueles que nasceram italianos devido à transmissão ocorrida de geração a geração a partir de um ancestral italiano. Vale para os dois autores deste artigo, vale para o editor desta revista, vale para os filhos de Lula com dona Marisa Letícia Casa, vale para qualquer um que descenda de um cidadão italiano cuja nacionalidade foi transmitida às gerações que lhe seguiram.

É cansativo, mas é algo que, periodicamente, temos de lembrar. Esta não foi a primeira e seguramente não será a última vez.