Homens e mulhertes imigrantes na colheita do café por volta de 1930, de autor desconhecido. / Uomini e donne immigranti nella raccolta del caffé verso il 1930, di autore sconosciuto (Foto: Acervo Museu da Imigração -SP)

UMA SENTENÇA REVIVE O FANTASMA CRIADO NO ALVORECER DA REPUBLICA BRASILEIRA ATÉ AQUI EXORCIZADO PELA REPÚBLICA ITALIANA. PREOCUPADA COM OS EFEITOS QUE ISSO POSSA TER A MILHÕES DE ÍTALO-BRASILEIROS, UMA DUPLA DE ADVOGADOS FORMA A CONEXÃO BRASIL-ITÁLIA NO COMBATE À FALÁCIA DA GRANDE NATURALIZAÇÃO

I – Introdução

PATROCINANDO SUA LEITURA

Desde o ano de 2019, alguns Avvocati dello Stato, ao contestarem as ações propostas junto ao Tribunale Ordinario di Roma, reinvocaram, em suas razões, o argumento da chamada Grande Naturalização brasileira. A partir daquele ano, uma grande preocupação passou a rondar os ítalo-descendentes brasileiros acerca da possibilidade do acertamento da cidadania pela via judicial. 

É bem verdade que a retomada deste argumento foi bastante explorada por aproveitadores de todo o gênero que, como sabemos, estão sempre ávidos por angariarem uma parte dos milhões de euros gerados anualmente pela “indústria da cidadania”. Profissionais mais sérios e engajados com o tema de forma bastante acadêmica iniciaram, então, o processo de arrefecimento dos ânimos exaltados, explicando aos interessados que o argumento jamais poderia prevalecer, especialmente em face de um antigo julgado, do ano de 1907, que havia rechaçado totalmente a tese da Grande Naturalização. Adicionalmente, alegaram, com razão, que vários países europeus, na época, se indispuseram com o Governo brasileiro, tendo em vista sedimentada tradição do direito continental que, além de afastar a possibilidade de uma renúncia tácita à nacionalidade originária dos estrangeiros radicados no Brasil, defendia a impossibilidade de uma legislação alienígena derrogar a lex patriae – que, conforme esta tradição, deveria reger o estado, a capacidade e os direitos familiares dos expatriados.

Somam-se a estas razões, outras, de natureza pragmática, uma vez que, conforme noticiado pelos avvocati italianos, a Avvocatura dello Stato, além de revel em boa parte dos processos da XVIIIª Sezione Civile do Tribunale Ordinario di Roma, quando presente nas audiências, contestava tão somente a eventual condenação do Estado em custas e sucumbência, havendo, portanto, uma ínfima possibilidade de que algumas destas contestações se convertessem em recursos para a Corte d’Appello di Roma. Nada obstante, todos os ítalo-descendentes brasileiros aguardavam, desde 2019, com bastante apreensão, a jurisdição da Corte d’Appello a respeito da Grande Naturalização brasileira. 

Há pouco mais de um mês, a Corte julgou, enfim, o primeiro dos recursos. Uma sentença da “Sezione Persona, Famiglia e Minorenni” escandalizou as comunidades jurídicas brasileira e italiana que lidam com a cidadania, levando ao nível máximo de apreensão os ítalo-descendentes brasileiros que estão com processos pendentes no Tribunale Ordinario ou mesmo aqueles que estão em vias ou têm a intenção próxima de ingressaram com seus processos. Contrariando a antiga jurisprudência da Corte di Napoli, os juízes da referida Sezione chancelaram os argumentos da Avvocatura dello Stato, revertendo o julgado monocrático do Tribunale Ordinario, dando uma interpretação verdadeiramente absurda ao art. 11 do Código Civil italiano de 1865, interpretando-o a partir de uma presunção: tendo o italiano se integrado à tessitura social do país estrangeiro, teria, ipso facto, obtido a cidadania brasileira e renunciado tacitamente a cidadania originária italiana, uma vez que, antes da entrada em vigor da Legge nº 91/1992, inexistia, em tese, para o ordenamento jurídico da Itália, a possibilidade da dupla cidadania.

Muito embora continuem valendo os argumentos pragmáticos que, com bastante força, vêm sendo sustentados pelos profissionais, especialmente da área jurídica, que trabalham com a cidadania italiana, vale a pena nos prepararmos para lutarmos veementemente contra uma possível mudança de orientação das Cortes italianas a respeito da matéria. E é imbuídos deste espírito que, contando mais uma vez com a generosidade dos editores da Insieme, preparamos este artigo, não só para esmiuçarmos o tema da Grande Naturalização, mas para, principalmente, levantarmos argumentos contra esta última sentença e ensaiarmos ações concretas com força suficiente para que, enfim, possamos enterrar esta malsinada tese, reafirmando, vez por todas, o direito que temos à nacionalidade italiana, conforme desejaram, de todo o seu coração, os nossos bravos antepassados.

Para a produção deste texto, contamos com a pesquisa e a expertise dos autores, cada qual a respeito de sua própria e atual jurisdição, de forma que o primeiro autor abordará eminentemente as matérias relacionadas ao ordenamento jurídico brasileiro e a segunda autora, por sua vez, temos relacionados à ordem jurídica italiana. Não é uma tarefa simples, mas, no presente momento, trata-se de algo profundamente necessário. Por isto, desejamos uma boa leitura e um excelente aproveitamento do texto – e vamos de mãos à obra!

II – Prolegômenos à Grande Naturalização

O Brasil Império corresponde a uma fase da história brasileira que vai de 1822, ano da Independência, a 1889, ano da Proclamação da República. Com o retorno de Dom João VI a Portugal, para controlar a chamada Revolução Liberal do Porto, seu filho Dom Pedro pôde encontrar apoio e espaço para o rompimento dos laços com Portugal, proclamando a independência da antiga colônia. As burguesias brasileira e portuguesa confrontaram-se e a Revolução Liberal do Porto exigia que os benefícios concedidos pela Coroa à burguesia brasileira fossem cassados – o que, obviamente, não foi aceito pelas elites econômicas no Brasil, culminando no Grito da Independência e na fundação do Império do Brasil, em 7 de setembro de 1822.

A fase imperial da história brasileira pode ser dividida em três períodos: da independência à abdicação do trono por Dom Pedro I, tem-se o chamado Primeiro Reinado, fase marcada pelo autoritarismo e inapetência de Dom Pedro I na administração do Império; após a abdicação do trono, em 1831, em favor do filho Dom Pedro II, iniciou-se um período chamado de Período Regencial (ou Regência), uma vez que a menoridade de Dom Pedro II impedia que ele governasse sem a assistência de regentes. A Regência terminou com um golpe parlamentar que antecipou a maioridade e a coroação de Dom Pedro II, em 1840. Por fim, tem-se o chamado Segundo Reinado, fase correspondente ao governo monárquico de Dom Pedro II, cujo fim foi marcado pelo golpe militar que proclamou a República, em 15 de novembro de 1889.

Embora o reinado de Dom Pedro II tenha sido importantíssimo para a consolidação da ideia de um Estado brasileiro, a estrutura econômica fundamental do Brasil, qual seja, os latifúndios cafeeiros escravocratas, viam suas bases sofrerem profundos golpes. Externamente, havia a pressão cada vez mais contundente da Inglaterra pelo fim da escravidão negra. Com a proibição do tráfico negreiro (Lei nº 581, de 4/9/1850 – Lei Eusébio de Queirós), iniciou-se o longo período do fim da escravidão negra no Brasil, cujo ponto de cumeada se deu com a chamada Abolição da Escravatura (Lei Áurea, de 13/5/1888). Internamente, tanto o movimento abolicionista, quanto o surgimento de uma nova elite cafeeira forneceram as principais bases para a transição do Império para a República.

Além da crise do escravismo, a Guerra do Paraguai (1864-1870) fez emergir a crescente insatisfação das Forças Armadas com o Segundo Reinado. É de se notar que as Forças Armadas, compostas em sua quase totalidade de pessoas advindas de classes médias urbanas, refletiam exatamente a parcela da população brasileira que, conforme o sistema político e eleitoral vigente desde a Constituição Outorgada de 1824 – a primeira Constituição do Brasil –, esteve desde sempre excluída do sistema representativo brasileiro. A Guerra do Paraguai foi essencial para que estes setores sociais almejassem de forma concreta, pela primeira vez, participar do sistema representativo brasileiro, o que, conforme a Carta de 1824, era impossível. Uma nova consciência corporativa, a influência do positivismo filosófico na Escola Militar e os contatos com as experiências republicanas de países vizinhos, levaram os militares a apoiarem de forma cada vez mais incisiva as ideias que pretendiam reformar profundamente a Monarquia ou, até mesmo, substituí-la por uma República.

A nova elite cafeeira paulistana, do chamado “Novo Oeste Paulista”, contrapondo-se aos antigos “barões do café”, representados, por sua vez, pelos cafeicultores do Vale do Paraíba e pelas elites fluminenses, deram sustentação à transição entre Império e República. Contrários ao Estado Unitário Monárquico, pois cada vez mais ligados ao capital internacional, os cafeicultores do Oeste Paulista começaram a promover, mesmo antes da Abolição da Escravatura, a substituição da mão-de-obra escrava pela mão-de-obra estrangeira. Obviamente, os novos ricos sabiam que a queda da Monarquia e a substituição do topo da pirâmide social brasileira dependiam do fim da escravidão negra e, consequentemente, da queda de Dom Pedro II. As insatisfações dos setores médios urbanos e dos militares  se encontraram com as insatisfações dos cafeicultores do Oeste Paulista, e se materializaram nas bandeiras do abolicionismo e do republicanismo. A Lei Áurea (13/5/1888) e a Proclamação da República (15/11/1889) correspondem, portanto, ao sucesso das aspirações políticas destes setores sociais sobre a velha ordem social.

Conforme dissemos, por detrás do golpe militar que derrubou Dom Pedro II, havia a necessidade, de um lado, de transição de elites no controle do poder político brasileiro e, por outro, a questão da representatividade política de setores sociais excluídos do jogo político desde a Constituição de 1824. Para melhor entendermos a questão da Grande Naturalização, é preciso ter este panorama histórico em mente.

No sistema eleitoral censitário da Constituição de 1824, a capacidade eleitoral ativa e passiva eram determinadas pela renda. Além disso, as eleições dos representantes junto ao Poder Imperial eram indiretas. Os eleitores estavam divididos em eleitores de paróquia e eleitores de província; os eleitores de paróquia – homens, de no mínimo 25 anos, com renda mínima anual comprovada de 100 mil réis – elegiam os eleitores de província – homens, de no mínimo 25 anos, com renda mínima anual de 200 mil réis. Seriam os eleitores de província que, indiretamente, elegeriam os deputados e senadores – homens cujas rendas anuais mínimas deveriam ser de 400 e 800 mil réis anuais, respectivamente. Sendo uma das aspirações do republicanismo a extensão desta representatividade para os setores sociais então excluídos do sistema político, como fazer para atender a estas aspirações sem que houvesse perda do controle do poder político pela categoria em ascensão, qual seja, a dos cafeicultores do Novo Oeste Paulista?

A resposta se deu através de três diferentes políticas: 

1) a formação de um federalismo baseado em poderes descentralizados, apoiado, portanto, em oligarquias locais; dessa forma, a ligação dos cafeicultores paulistas com os interesses internacionais não sofreria interferência de um poder federal centralizador; 

2) formação de um sistema eleitoral que pudesse ser controlado pelos poderosos locais; assim, o voto aberto permitiria que os “coronéis” obrigassem os eleitores a votarem neles mesmos ou nos candidatos por eles apoiados; 

3) aproveitamento, no sistema eleitoral, da mão-de-obra estrangeira presente do Brasil, resultante da substituição da mão-de-obra escrava. Esta manobra política poderia ser importantíssima para os poderosos do Oeste Paulista, uma vez que o “voto de cabresto” não deveria dispensar, a priori, os milhares de estrangeiros que, em São Paulo, abarrotavam as lavouras e alguns assentamentos ou colônias presentes em muitos centros urbanos. 

É nesse último ponto que a transição entre o Brasil Império e o Brasil República, especialmente no Estado de São Paulo, encontra os nossos saudosos ascendentes italianos.

III – Imigração e Grande Naturalização

Na Constituição de 1824, previa-se que os nascidos em Portugal ou em suas possessões, se residentes no Brasil na época da Independência, seriam considerados cidadãos brasileiros se aderissem à nacionalidade brasileira de forma expressa ou de forma tácita, nesse caso, pela simples continuidade de sua residência no Brasil.

A naturalização tácita, prevista para os portugueses na Constituição de 1824, fazia bastante sentido: em primeiro lugar, pelo fato de Brasil e Portugal, desde 1815, consistirem, na prática, de uma única unidade política que, somente com a Independência, romper-se-ia; em segundo lugar, pelo fato de, com a Independência, surgir uma nova Nação, antes inexistente; por fim, em terceiro lugar, pela proximidade cultural, linguística, negocial, política, enfim, pelo amálgama entre Brasil e Portugal, obviamente herdado da íntima relação, entre ambos, no período colonial e que fora profundamente intensificada com a vinda da Família Real Portuguesa para o Brasil, em 1808. 

O Governo Provisório de Marechal Deodoro, atendendo aos anseios políticos das oligarquias que sustentaram o golpe que derrubou a monarquia, garantiu a possibilidade de constituir o imprescindível eleitorado para os “coronéis” também com os estrangeiros radicados no Brasil caso fosse necessário, estendendo a todos eles a naturalização tácita que havia sido aplicada somente aos portugueses no advento da Independência.

A primeira tentativa de engrossar, com estrangeiros naturalizados às pressas, as futuras fileiras eleitorais das oligarquias, especialmente as do Oeste Paulista, materializou-se no Decreto 13-A, de 26 de novembro de 1889. Segundo o texto deste decreto, tanto o Governo Federal, por intermédio do Ministro e Secretário dos Negócios do Interior, quanto os Governadores dos Estados, poderiam conceder a naturalização a todo estrangeiro que a requeresse, independentemente das formalidades previstas nos decretos até então vigentes, o de nº 808-A, de 1850, e o de nº 1950, de 1871. 

Para um melhor entendimento da questão, vale ressaltar que os fluxos migratórios para o Brasil podem ser divididos em duas espécies distintas: o do migrante “colono”, ou seja, daquele a quem eram concedidas terras, com objetivo precipuamente demográfico, e o do migrante “lavrador”, ou seja, aquele a quem, a despeito da concessão de pequenas propriedades, destinava-se ao trabalho nas lavouras cafeeiras, em substituição da mão-de-obra escrava e negra. 

O Decreto 13-A do Governo Provisório visava, especialmente, o fluxo migratório dos “braços para a lavoura”, pois afastava formalidades dantes previstas no Decreto de nº 1950/1871, como, por exemplo, comprovação do tempo de residência mínimo no Brasil e prestação de juramento junto às autoridades políticas nacionais.

No período entre 1808 e 1850, a política migratória objetivou primordialmente a colonização. Com a possibilidade aberta aos Governos Provinciais, a partir de 1850, de estabelecerem, eles mesmos, políticas migratórias, houve uma intensificação da imigração europeia com destino ao Brasil, pari passu às leis que iam restringindo paulatinamente a escravidão negra (a já citada Lei Eusébio de Queirós, de 1850, mas, também, a Lei do Ventre Livre, de 1871, e a Lei dos Sexagenários, de 1885) e, particularmente, ao desenvolvimento da indústria cafeeira no chamado “Novo Oeste” paulista, embora precisemos citar, também, em menor monta, a substituição de mão-de-obra escrava nas lavouras de Minas Gerais e do Rio de Janeiro. É a esta segunda espécie de política migratória, com francos estímulos da iniciativa privada, que aplica-se o slogan dos “braços para a lavoura”, fazendo-se uma oportuna ressalva: concomitantemente ao fluxo migratório dos “braços para a lavoura”, outros Estados brasileiros, como, por exemplo, Espírito Santo e Rio Grande do Sul, seguiram com políticas migratórias ainda voltadas principalmente à colonização. Subvenções públicas à imigração, montagem de escritórios especializados nos países de origem, para captação dos imigrantes europeus, bem como a construção das hospedarias de imigrantes e de linhas férreas com capilaridade suficiente para a distribuição dos recém-chegados, foram ações que fizeram parte deste período histórico, sendo a imigração europeia fortemente intensificada a partir da segunda metade da década de 1870. Estima-se que entre as décadas de 1880 e 1930, mais de 4 milhões de imigrantes tenham chegado ao Brasil, sendo metade destes destinados ao Estado de São Paulo, com a impressionante fração de, aproximadamente, 50% de italianos. 

É de se notar que os italianos atendiam aos anseios positivistas das renovadas políticas migratórias brasileiras. Por detrás da substituição da mão-de-obra negra, havia o desejo de “branqueamento” da população brasileira – e as políticas provincianas de imigração europeia estabeleciam subvenções específicas para a expatriação de “europeus do Norte”. 

O eugenismo brasileiro encontrou-se, a partir das décadas de 70 e 80 do século XIX, com a miséria do nordeste italiano: após a fundação do Reino da Itália, em 1861 e, em especial, após a anexação do Vêneto, como resultado de um duvidoso plebiscito que se seguiu ao Acordo de Paz entre a Áustria e a Itália, em 1866, fome e desolação se abateram sobre os já paupérrimos novos italianos. 

Destituído, há muito, de sua antiga identidade política e vindo de um período massacrante de dominação austríaca, o povo vêneto, ao contrário de se encontrar com a promessa de uma “Grande Pátria”, chegou ao ponto mais crítico de sua crise econômica e social. A propaganda e os subsídios brasileiros para a imigração caíram como uma luva – e, a partir da segunda metade da década de 1870, cidades inteiras do Vêneto atravessaram o Atlântico em direção à América, estimando-se que um em cada três vênetos abandonou a Itália neste período.

A dispensa de quaisquer formalidades, conforme previsão do Decreto 13-A de 1889, para a naturalização dos “braços para a lavoura”, não caíra bem junto a certos quadros políticos da época, pois a inexistência de formalidades, segundo alguns importantes políticos e juristas, “barateava” a cidadania brasileira que, nos termos do Decreto, poderia ser concedida a qualquer “forasteiro”, sem que este precisasse realizar prova alguma, nem de residência, nem de “bom procedimento”. 

Assim, pouquíssimo tempo depois, o Governo Provisório editou o Decreto 58-A, de 15 de dezembro de 1889, adaptando a ideia da naturalização tácita dos portugueses, prevista na Constituição de 1824, para todos os estrangeiros radicados no Brasil; dessa forma, o Governo Provisório conseguia acomodar vários interesses em um único ato: “barateava”, mas não tanto, a nacionalidade brasileira, exigindo que o estrangeiro declarasse, diante de certas autoridades, o ânimo de conservar a nacionalidade de origem e, ao mesmo tempo, abria o espaço necessário para que as oligarquias locais, especialmente as paulistas, colocassem sob seu jugo eleitoreiro, se assim desejassem, parte dos milhares de imigrantes em condições do exercício de voto. Triste o destino dos italianos: de miseráveis na Itália à massa de manobra eleitoral dos coronéis brasileiros.

Importante ressaltar que o Decreto 58-A trazia duas condições cumulativas para que o estrangeiro pudesse ser considerado tacitamente naturalizado:

a) a primeira, que residisse no Brasil em 15 de novembro de 1889;

b) a segunda, que não declarasse, diante da respectiva municipalidade, num prazo máximo de até seis meses da publicação do Decreto, a intenção de manter a nacionalidade originária.

Com a publicação do Decreto nº 479, de 13 de junho de 1890, foi dilatado o prazo originalmente previsto pelo Decreto 58-A; com a constitucionalização da naturalização tácita, o mesmo prazo ficou terminantemente prorrogado até o dia 24 de Agosto de 1891.

Embora muito se fale do Decreto 58-A, ele jamais pode ser desvinculado de outro Decreto que o seguiu – e que demonstra cabalmente o casamento realizado, pelo Governo Provisório, entre o status de cidadão naturalizado com a formação dos currais eleitorais da Velha República. Trata-se do Decreto nº 396, de 15 de maio de 1890. Além de estender a competência, para a tomada das declarações dos estrangeiros que não desejassem adquirir tacitamente a nacionalidade brasileira, aos delegados e subdelegados de polícia, dizia o referido decreto: 

Art. 4º Findo o prazo de seis mezes marcado no art. 1º do citado Decreto [58-A], todos os livros de declarações feitas perante os escrivães dos delegados ou subdelegados de policia serão por estas autoridades, ou seus supplentes, em exercicio, remettidos ao presidente da Camara ou Intendencia Municipal, para, confrontados com as listas dos estrangeiros qualificados eleitores, enviadas pelas commissões districtaes de alistamento, proceder a commissão municipal, na conformidade da 2ª parte do art. 1º do decreto n. 277 E, de 22 de março ultimo, á eliminação dos nomes daquelles que, dentro do mencionado prazo, tiverem declarado não adherir á nacionalidade brazileira”.

Vejamos que, na sistemática adotada pelo Governo Provisório, em preparação da nova ordem política que se seguiria à proclamação da primeira Constituição do período republicano, a qualificação do estrangeiro como eleitor deveria preceder a sua própria naturalização! Assim, a chamada naturalização tácita dos estrangeiros visava somente o exercício de um único direito correlacionado à cidadania, segundo os interesses das oligarquias: o direito de votar. Interessava, portanto, às oligarquias locais, a formação das listas de eleitores, inclusive com estrangeiros “naturalizados” caso fosse necessário, a fim de mantê-los igualmente sujeitos às manobras eleitoreiras do voto de cabresto da Velha República.

Portanto, a justificativa “dourada” que foi dada aos países europeus que, justificadamente, se rebelaram contra a naturalização tácita de seus compatriotas, nunca passara de uma mentira. A naturalização tácita de 1889 nunca tivera como espírito a noção de “Pátria Mãe” ou de “Pátria Aberta a Todos os Povos”, que a Diplomacia brasileira tentava ensaiar diante dos justos protestos das nações europeias, especialmente da França e da Itália; tratava-se, pelo contrário, de alistar eleitores em número suficiente, inclusive estrangeiros, que sustentariam, sob literal vara, o poder das oligarquias. Ora, como alistar estrangeiros como eleitores, se a naturalização dependesse exclusivamente de um ato voluntário deles? 

A Grande Naturalização nada mais foi do que o “jeitinho” brasileiro aplicado, desta vez, em larga escala e com reflexos importantes no Direito Internacional e na Diplomacia: para que as oligarquias não dependessem da manifestação voluntária dos estrangeiros acerca de seu desejo de se naturalizarem brasileiros, inverteram a lógica – exigiu-se manifestação negativa que, diga-se, os poderosos sabiam que não seria exercida por virtualmente nenhum estrangeiro residente no Brasil desde 15/11/1889. Dessa forma, caso necessário, comporiam as listas de eleitores inclusive com estrangeiros que, confrontadas com os livros vazios das Câmaras e Intendências municipais e das delegacias de polícia, confirmariam a condição de eleitor do estrangeiro, oportunizando que a força bruta dos “coronéis” – os donos da terra – pudesse se fazer valer também sobre os estrangeiros radicados no Brasil. Eis o verdadeiro sentido e espírito da Grande Naturalização.

Assim, sendo as declarações negativas, exigidas pelo Decreto 58-A, precedidas de alistamento eleitoral, nos termos do art. 4º do Decreto 396, a naturalização tácita jamais poderia ser admitida diante de uma certidão negativa de alistamento eleitoral ou da informação, constante nos registros públicos produzidos no Brasil, de que determinado estrangeiro não era e nunca fora eleitor.

Aliás, um decreto anterior ao Decreto 396, do Governo Provisório, o de nº 277-D, de 22 de março de 1890, explicitava ainda mais francamente que a qualidade de cidadão naturalizado tacitamente brasileiro não advinha simplesmente da inércia do estrangeiro em prestar sua declaração negativa diante das autoridades competentes, mas do desejo manifesto de exercício do direito ao voto, prevendo o sistema criado pelo Governo Provisório de um ato voluntário e positivo por parte do estrangeiro, para que fosse firmada sua condição de naturalizado; vejamos:

Art. 1º Será considerado cidadão brazileiro para todos os effeitos do art. 3.° do Decreto n.° 58 A, de 14 de Dezembro de 1889, independentemente de qualquer outra formalidade, e incluído no alistamento eleitoral pela competente commissão, o estrangeiro que requerer ser alistado eleitor, (…).

Por isto, não se pode falar em naturalização tácita de nenhum estrangeiro, residente no Brasil, em 15/11/1889, caso este não tenha manifestado o desejo de se tornar eleitor, tendo requerido, portanto, o seu próprio alistamento. 

IV – A constitucionalização da naturalização tácita e o problema da prova da naturalização: italianos, brasileiros ou apátridas?

É um tanto óbvio que muitos atos do Governo Provisório poderiam ser contestados em sua constitucionalidade, seja em face da Constituição de 1824 ou, até mesmo, em face da Constituição Republicana vindoura. Assim, a manobra eleitoreira do Governo Provisório foi incluída na Constituição de 1891, mesmo que com efeitos sujeitos a um termo final, qual seja, o dia 24/8/1891. Dessa forma, o art. 69 da Constituição de 1891, em seu 4º parágrafo, previa que seriam cidadãos brasileiros 

“os estrangeiros, que achando-se no Brasil aos 15 de novembro de 1889, não declararem, dentro em seis meses depois de entrar em vigor a Constituição, o ânimo de conservar a nacionalidade de origem”.

A primeira dificuldade encontrada pelos órgãos públicos brasileiros dizia respeito à comprovação de residência. Cumpre ressaltar que o primeiro Código Civil brasileiro somente entraria em vigor em 1º/1/1917, de forma que não se pode dizer que, em 1890, haveria um conceito jurídico positivado sobre o instituto da “residência”; havia, portanto, uma complicada questão a ser superada pela nova ordem constitucional, acerca da naturalização tácita dos estrangeiros: como comprovar que, com efeito, os estrangeiros naturalizados residiam no Brasil em 15/11/1889?

Doutro ângulo, como o Decreto 58-A foi publicado exatamente para que não fosse cumprido, uma vez que o que verdadeiramente interessava eram os alistamentos eleitorais, a quase totalidade dos Municípios não constituíra, e se constituíra, não remetera, ao Ministério dos Negócios do Interior (futuro Ministério da Justiça), os livros nos quais, em tese, estariam registradas as manifestações negativas dos estrangeiros, no sentido de manterem a sua nacionalidade originária. Como comprovar, então, sem prova de residência e diante da inexistência dos livros instituídos pelo Decreto 58-A, que um determinado estrangeiro, com efeito, tinha realmente se naturalizado brasileiro?

A manobra eleitoreira das oligarquias, chancelada pelo Governo Provisório, se convertera num cavalo de Troia. A bem da verdade, diante da inexistência de um título capaz de comprovar a naturalização, a República brasileira deu a alguns estrangeiros inescrupulosos, na prática, a oportunidade de se utilizarem da cidadania brasileira e/ou da cidadania originária conforme sua conveniência. Por isto, a questão da prova da naturalização acabou incentivando a criação de normas capazes de dar concretude ao instituto; normas, entretanto, que iam além da manifesta intenção puramente eleitoreira da Grande Naturalização e que, na prática, convertiam a naturalização tácita em uma modalidade mitigada de naturalização expressa.

O Decreto nº 904, de 1902, dispunha, em seu art. 12, que a condição de brasileiro tacitamente naturalizado, nos termos do parágrafo 4º, art. 69, da Constituição de 1891, comprovar-se-ia pela expedição, até a data de entrada em vigor do Decreto, de título de eleitor ou de atos de nomeação para o exercício de cargos públicos em nome do estrangeiro. Por sua vez, o Decreto nº 1805, de 1907, dispunha, em seu art. 2º, que para a expedição do certificado de naturalização, o estrangeiro deveria ter condições de comprovar sua residência no Brasil, nos termos requeridos pelo Decreto 58-A; além disso, o mesmo decreto centralizava os processos de naturalização na esfera da União, criando a obrigação de requisição, por parte do Governo Federal, representado pelo Ministério da Justiça, aos Municípios e às autoridades consulares, dos eventuais livros ou declarações que contivessem as manifestações negativas dos estrangeiros residentes no Brasil na data da Proclamação da República. O Executivo brasileiro da época, em respeito aos decretos legislativos 904 e 1805, aqui citados, regulamentou, então, um procedimento administrativo para o requerimento da naturalização, através do Decreto nº 6948, de 14 de maio de 1908, a cargo do Ministério da Justiça, dependente de requisição do estrangeiro interessado e de instrução do pedido com os documentos comprobatórios pertinentes.

Assim, usando de sua competência para legislar sobre naturalização, conferida pelo art. 34  da Constituição de 1891, o Congresso Nacional estabeleceu um procedimento de naturalização, levado a cabo pelo Ministério da Justiça, através do qual a condição de naturalizado tacitamente exigia a expedição de um título declaratório, cuja formalização importava: 

1) a comprovação, pelo estrangeiro, de haver fixado residência no Brasil desde antes de 15/11/1889; 

2) a existência de um título de eleitor, de forma que o estrangeiro pudesse comprovar ter realizado seu alistamento eleitoral ou, alternativamente, a apresentação de atos comprobatórios de sua nomeação para o exercício de cargos públicos; 

3) por fim, um resultado negativo da consulta, por parte do Ministério da Justiça, aos registros constantes nos livros do Decreto 58-A ou nas repartições consulares, que poderiam conter a manifestação contrária do estrangeiro à aquisição da nacionalidade brasileira.

No outro lado do Atlântico, a lei civil italiana, de 1865, que ainda não admitia expressamente, em tese, a possibilidade da dupla nacionalidade para os seus compatriotas, trazia, em seu art. 11, as seguintes hipóteses de perda da nacionalidade italiana: 

1) a renúncia expressa do italiano, diante do Ufficiale dello Stato Civile, com consequente mudança de residência para país estrangeiro; 

2) a obtenção de cidadania estrangeira; 

3) o aceite, por parte do italiano, sem a permissão do Reino, de emprego público estrangeiro ou, alternativamente, a prestação de serviço militar em favor de Estado estrangeiro.

Conforme vimos, a naturalização tácita nunca dispensara, conforme as normas do Governo Provisório e, também, conforme as normas expedidas já sob o regime constitucional de 1891, uma manifestação positiva de vontade do estrangeiro: enquanto no regime do Governo Provisório, o estrangeiro deveria requerer seu alistamento eleitoral para que fosse considerado tacitamente naturalizado, após a entrada em vigor da Constituição de 1891, deveria peticionar diante do Ministério da Justiça, instruindo seu pedido com os documentos exigidos (prova de residência no Brasil, em 15/11/1889, acompanhada do título de eleitor e/ou de nomeação para o exercício de cargo público). 

Com exceção dos italianos que foram efetivamente cooptados pela sanha eleitoreira das oligarquias da Velha República e obrigados, portanto, ao alistamento eleitoral e ao voto pré-determinado pelos “coronéis”, todos os outros continuaram vivendo no Brasil como italianos, tendo-se abstido não somente do voto, mas de todos os direitos relacionados ao exercício pleno da cidadania. 

É digna de nota, neste ponto, a interpretação extensiva dada pelo Supremo Tribunal Federal ao texto do Decreto 396, admitindo a possibilidade de que a declaração negativa prevista no Decreto 58-A (e reprisada no art. 69, §4º, da Constituição de 1891), pudesse ser dada também diante dos Oficiais de Registro Civil brasileiros, desde que não fosse simplesmente referente ao local de nascimento do estrangeiro (como, por exemplo, na expressão “natural de”). Dessa forma, a informação sobre nacionalidade, constante nos registros públicos realizados no Brasil, em que os estrangeiros vindos da Itália se autodeclaravam como “italianos” ou como “súditos do Reino da Itália”, cumpria o papel da manifestação negativa exigida pelo Decreto 58-A, impedindo, portanto, que tais italianos fossem alistados eleitores.

Corretíssima, portanto, a decisão da Corte de Napoli, de 1907, ao interpretar consentaneamente a palavra “ottenuto” do parágrafo 2, art. 11, do Codice Civile de 1865, rechaçando a possibilidade da obtenção “tácita” da cidadania brasileira. Negar in concreto, do lado brasileiro, e em tese, do lado italiano, o exercício dos direitos de cidadania aos italianos emigrados seria, na prática, fazê-los equivaler, sem dúvidas, a apátridas, em total contrariedade às normas internacionais que, mesmo naquela época, regulavam o tema. 

V – A infeliz sentença da Sezione Persona, Famiglia e Minorenni da Corte d’Appello di Roma

Não bastando a miséria e o abandono avassaladores que fizeram os pobres italianos deixarem a Europa, para encontrarem, na América, o trabalho indigno, a frustração das falsas promessas, o desejo perene de um retorno jamais concretizado e, com efeito, a inexistência da condição de cidadãos, a interpretação dada pela Sezione Persona, Famiglia e Minorenni ao art. 11 do Codice Civile de 1865 ainda pode equipará-los a apátridas. Não pode a Justiça italiana manchar, de tamanha maneira, a memória dos nossos saudosos e bravos antepassados, cuja existência em vida já houvera sido maculada pela traumática experiência do degredo. A referida sentença corresponde a um momento muitíssimo infeliz da jurisprudência italiana e está em total desacordo com os fatos, o Direito e a História.

Trata-se do julgamento, pela Sezione Persona, Famiglia e Minorenni da Corte d’Appello di Roma, em que a família em questão foi recorrida pelo Ministero dell’Interno, com litisconsórcio, para fins do apelo, do Ministero degli Affari Esteri, ambos representados pela Avvocatura Generale dello Stato. Explicamos ao leitor que não tivemos acesso nem à decisão monocrática do Tribunale Orinario di Roma, nem aos autos do processo originário, de forma que toda a explanação abaixo tem como fonte exclusiva unicamente a sentença sob escrutínio.

Após abordar – e superar – questões preliminares, como, por exemplo, a legitimidade do Ministero degli Affari Esteri para constar no apelo e a possibilidade de juntada de novos documentos, pelos apelantes, em procedimento sumário, a Corte passa a julgar o mérito da causa, revelando, de plano, que o apelo deve ser acolhido.

A relatora cita um trecho de um julgado da Corte di Cassazione que, segundo crê, dará suporte a uma renovada interpretação do art. 11 do Codice Civile de 1865. Segundo a relatora, o Codice Civile de 1865 é a norma aplicável à espécie, haja vista o nascimento do dante causa e de seu filho brasileiro terem ocorrido, respectivamente, em 1860 e 1903. No julgado citado, é reafirmada a competência privativa estatal em disciplinar a atribuição de sua própria cidadania e nele é citado, ‘an passant’, a possibilidade da atribuição da nacionalidade se fundamentar, também, no fato social de ligação e solidariedade efetiva do cidadão com o Estado em questão – princípio que, no Direito Internacional, recebe o nome de princípio da efetividade.

Afastando a aplicação da Legge 555/1912 ao caso, a relatora prossegue, então, para uma equivocada interpretação do art. 11 do Codice Civile de 1865, artigo que, como vimos, disciplinava as hipóteses de perda da cidadania italiana por parte dos súditos do Reino da Itália. Segundo a relatora, o italiano em questão teria perdido sua cidadania italiana em razão de conduta posterior ao decreto instituidor da Grande Naturalização no Brasil.

Continuando com suas razões, a relatora desqualifica totalmente a Certidão Negativa de Naturalização apresentada pelos apelados, dizendo que a CNN, ao invés de constituir-se em verdadeira certidão negativa da posse da naturalidade brasileira por parte do italiano, corresponderia a uma simplória consulta a uma lista de naturalizações já ocorridas, não podendo a CNN, portanto, comprovar que aquele italiano não tenha sido, com efeito, naturalizado brasileiro.  Ela cita, então, a normativa brasileira, para afirmar que, segundo esta normativa, os italianos emigrados poderiam ter renunciado à Grande Naturalização e afirma que os apelantes não haviam produzido qualquer prova, direta ou indireta, capaz de demonstrar a renúncia à naturalização tácita por parte de seu dante causa.

A despeito da absurda desqualificação feita à CNN – e, portanto, ao Estado brasileiro e aos acordos diplomáticos ratificados por ambos os países –, é a partir deste ponto que a sentença desenvolve razões decisórias verdadeiramente escandalosas. A relatora passa a justificar sua tese principal, a de que o italiano presumidamente teria gozado de todos os direitos civis e políticos concedidos pelo Brasil, igualando tal presunção, sem apoio em quaisquer provas, a uma renúncia consciente e voluntária, embora implícita, à cidadania italiana, concluindo que tal renúncia seria, portanto, perfeitamente amoldável ao art. 11, III, do Codice Civile de 1865.

Segundo a infeliz sentença, seria ônus de prova dos apelados demonstrar que seu dante causa fora, com efeito, pessoa totalmente alienada à sociedade brasileira, não tendo prestado serviço militar, não tendo exercido direitos políticos e nem emprego público no Brasil. A este último respeito, a relatora apresenta razões verdadeiramente desumanas, ao afirmar que o exercício de emprego público deveria ser entendido como o exercício de qualquer atividade laborativa; segundo a juíza, o exercício de todo e qualquer trabalho poderia ser equiparado ao exercício de uma função pública, pois, dada a qualidade de imigrante do italiano, qualquer trabalho por ele executado deveria ter sido obviamente autorizado, antecipadamente, pelo Estado estrangeiro que o recebera. Assim, para a relatora, os imigrantes italianos no Brasil não poderiam jamais ter trabalhado e se quisessem manter sua cidadania originária deveriam ter permanecido por toda as suas vidas absolutamente alheios ao mundo do trabalho.

Justificando uma interpretação “constitucionalmente orientada”, a relatora cita novamente o julgado da Corte di Cassazione que, segundo acredita, dá sustentação às suas absurdas razões, em razão do chamado princípio da efetividade, numa inversão hermenêutica inacreditável do conteúdo do referido princípio, aplicado, no caso, fora do recorte temporal apresentado à Corte e em desfavor dos direitos de nacionalidade requeridos pelos apelados.

Prosseguindo, para afastar a inarredável constatação de que o filho menor do dante causa, nascido em 1903, não poderia haver “perdido” sua cidadania jure sanguinis pelo fato da “obtenção” jure soli da cidadania brasileira, a relatora justifica a perda da cidadania italiana do filho do italiano através da sua integração à sociedade brasileira ocorrida após a maioridade. Interessante notar que a juíza não leva em consideração o fato de o filho ainda ser menor de idade quando entrou em vigor a Legge 555/1912 (em 1º/7/1912), não tecendo, também, qualquer consideração acerca do momento exato em que o dante causa haveria sido naturalizado – o que, obviamente, teria reflexo essencial na transmissão da cidadania italiana, jure sanguinis, para o filho nascido no Brasil.

Com este breve relato da sentença, vemos que a relatora do caso reverteu o julgamento do Tribunale Ordinario di Roma desconsiderando a regular distribuição do ônus de prova, desqualificando prova hígida produzida pelos apelados (a CNN), presumindo uma integração do italiano à sociedade brasileira sem que prova alguma tivesse sido apresentada, nesse sentido, pelos apelantes, interpretando de modo invertido o princípio da efetividade e cedendo uma interpretação totalmente contrária à dignidade da pessoa humana para o parágrafo III, do art. 11, do Codice Civile de 1865, interpretação esta que, fosse levada à sério, levaria os italianos residentes no exterior, caso quisessem manter a cidadania italiana, ao isolamento social completo e à morte por inanição, haja vista a impossibilidade de exercerem, segundo as palavras da juíza, qualquer atividade laborativa. 

Trata-se, sem dúvidas, de uma das sentenças mais absurdas das quais tivemos notícia.

VI – Desconstituindo as razões da sentença e da Avvocatura dello Stato. Força probante da CNN

Em primeiro lugar, cumpre ressaltar que a Certidão Negativa de Naturalização – a CNN – é documento produzido regularmente pelo Departamento de Migrações da Secretaria Nacional de Justiça, órgão do Ministério da Justiça.

Conforme vimos em nosso pequeno recorte histórico, o controle das naturalizações foi centralizado pelo Ministério da Justiça (antigo Ministério dos Negócios do Interior), de forma que, ao certificar a inexistência de naturalização, o Ministério da Justiça tem por fonte os processos que constam em seu acervo. Não se trata, portanto, como disse a juíza, de uma simples lista de nomes.

A sentença desqualifica a jurisdição e o Estado brasileiro ao negar a veracidade das informações contidas na CNN. Registre-se que os interessados fornecem ao Ministério da Justiça, para a emissão da certidão, todas as variações de nome e sobrenome constantes nos registros públicos do italiano – e de sua descendência – produzidos no Brasil. 

Conforme art. 17, da Portaria nº 623/2020, do Ministério da Justiça, a CNN constitui instrumento legal para todos os fins de direito. Ademais, a Itália é signatária da Convenção de Haia, de 5 de outubro de 1961, em vigor naquele país desde fevereiro de 1978. Em seu artigo 3º, a Convenção estipula, como única formalidade a certificar a autenticidade do documento, a competência do signatário do documento e, quando cabível, a autenticidade do selo ou brasão no documento, o modelo de selo criado pela própria Convenção.

Cumpre também ressaltar a existência de um acordo bilateral entre Brasil e Itália, o “Tratado Relativo à Cooperação Judiciária e ao Reconhecimento e Execução de Sentenças em Matéria Civil”, de 17 de outubro de 1989, ratificado pela Itália (Legge 18 Setembro – Settembre 1993, n. 336 in Suppl. ordinario alla Gazz. Uff. del 31 Setembro – Settembre 1993, n. 204), em vigor desde 1º de junho de 1995, obrigando ambos os Estados a cooperarem entre si na obtenção e remessa de provas e na prestação de informações referentes às leis e regulamentos de uma ou outra das Partes. Curiosamente, o Tratado concede ao Ministério da Justiça brasileiro a autoridade representativa central, da República Federativa do Brasil, para o cumprimento das finalidades nele dispostas – e são justamente a competência e a seriedade do Ministério da Justiça que, nos termos da sentença italiana, foram colocadas em franca dúvida.

Conforme o texto do Tratado bilateral, totalmente desconsiderado pela juíza, 

“os documentos públicos, assim considerados por uma das Partes, terão, na aplicação do presente Tratado, igual força probatória perante a outra Parte, conforme a legislação desta última Parte.” 

Por isto, ao desqualificar a CNN, a relatora dá azo até mesmo à reclamação, contra a sentença, nos órgãos diplomáticos e nos respectivos Ministérios da Justiça de ambos os países, não se tratando de uma decisão cujo efeito seja restrito aos requerentes, mas que pode gerar reflexos concretos até mesmo nas relações diplomáticas entre Brasil e Itália.  

APLICAÇÃO ÀS AVESSAS DO PRINCÍPIO DA EFETIVIDADE

Conforme vimos, a sentença cita um julgado da Corte di Cassazione para preparar a tese que, segundo a juíza, daria suporte à sua injusta interpretação do art. 11 , III, do Codice Civile de 1865. A juíza crê que, no caso concreto, justificará uma “renúncia tácita” do italiano (e de seu filho, após a maioridade) à cidadania italiana utilizando-se do chamado princípio da efetividade.

Cumpre registar, em primeiro lugar, que o princípio da efetividade é uma exceção em matéria da nacionalidade. A doutrina jusinternacionalista clássica segue entendendo firmemente que a decisão sobre quem pode ser seu nacional cabe inteiramente ao Estado concedente, por razões ligadas à própria soberania estatal, em consonância com a célebre frase de Oppenheim: 

“Não é o Direito Internacional e sim o direito interno quem deve e quem não deve ser considerado um nacional”. 

Aliás, esta posição já foi referendada pelo Tribunal Permanente de Justiça Internacional. 

O princípio da efetividade, que pode ser conceituado como sendo o laço de ordem sociológica capaz de ligar um indivíduo a uma determinada nação, foi aplicado, como uma exceção, pela primeira vez e em decisão não unânime, pela Corte Internacional de Justiça, no caso de Friedrich Nottebohm. 

Nottebohm nascera na Alemanha, em 1881. Em 1905, mudou-se para a Guatemala, local onde fixou residência e suas atividades empresariais; entretanto, Nottebohm tinha irmãos e mantinha relações constantes com o país onde nascera, estando na Alemanha quando a Polônia foi invadida, em 1939, no evento que deu início à II Grande Guerra. Iniciada a Guerra, Nottebohm requereu sua naturalização ao Estado de Lichtenstein, dada a neutralidade deste Estado. Ocorre que a Guatemala declarou guerra à Alemanha e, em 1943, depois de retornado à Guatemala, Nottebohm foi preso e extraditado, além de ter tido seus bens expropriados por aquele governo. Em 1951, o Estado de Lichtenstein, ao qual Nottebohm havia se naturalizado expressamente, ingressou com pedido junto à Corte Internacional de Justiça, para que o governo da Guatemala fosse condenado a indenizá-lo pelos danos que lhe foram causados. 

Quando a Corte julgou a pretensão apresentada pelo Estado de Lichtenstein e aplicou o princípio da efetividade, o fez para dizer que a naturalização de Nottebohm, diante do Estado de Lichtenstein, não poderia ser aceita pela Guatemala, pois, para que outros Estados aceitassem esta naturalização seria necessário comprovar uma ligação efetiva e real do naturalizado com o Estado concedente.

O leitor pode antever rapidamente como o princípio da efetividade não é em nada aplicável ao caso da Grande Naturalização no Brasil.

Em primeiro lugar, no caso Nottebohm restou indiscutível o vínculo de sangue dele com a Alemanha, país em que nascera; assim, o princípio da efetividade fora citado para reafirmar o vínculo de sangue de Nottebohm com a Alemanha – e não para afastar a nacionalidade originária de Nottebohm, como equivocadamente parece ter entendido a juíza no caso julgado pela Corte d’Appello de Roma. O princípio da efetividade foi aplicado para desconsiderar justamente a naturalização de Nottebohm diante do Estado de Lichtenstein – diga-se, uma naturalização efetivamente requerida, consciente e voluntariamente, por ele, ou seja, uma naturalização expressa.

No absurdo julgado de Roma, a juíza pretendeu afastar, usando o princípio da efetividade, a nacionalidade originária do italiano em questão. Ora, se estivesse seguindo efetivamente o precedente da CIJ, com muito mais razão que a própria CIJ, ela teria afastado, ao contrário do que fez, a possibilidade de uma naturalização tácita (caso da Grande Naturalização brasileira) – haja vista que a CIJ, não enxergando qualquer vínculo social de Nottebohm com o Estado de Lichtenstein, desconsiderou até mesmo uma naturalização feita de forma expressa. 

Em segundo lugar, a naturalização de Nottebohm diante de Lichtenstein não foi utilizada para que lhe fosse cassada qualquer outra nacionalidade, pois não estava em jogo nenhum pedido do Estado de Lichtenstein para que Nottebohm fosse considerado como nacional da Guatemala; a CIJ somente reconheceu que não poderia condenar o Estado da Guatemala à vista de uma naturalização que, em tese, teria ocorrido pro forma. No caso julgado em Roma, a cidadania originária, afastada pela juíza, jamais poderia ter sido obtida pro forma, pois derivada diretamente da lei civil italiana pelo simples fato do nascimento.

Por fim, no caso Nottebohm, a CIJ utilizou o princípio da efetividade em face de uma nacionalidade derivada (naturalização) sustentada pelo próprio interessado. Em nenhum contexto do Direito Internacional ou mesmo do direto doméstico italiano poderá ser encontrado um único julgado em que o princípio da efetividade terá sido utilizado para vincular coercitivamente um determinado indivíduo a uma nacionalidade que este indivíduo não tenha sustentado de forma pública, consciente, voluntária e explícita como sendo a sua. No julgado de Roma, a juíza inverte totalmente o sentido do princípio, pois o utiliza para reconhecer uma nacionalidade derivada – a brasileira – jamais sustentada pelo italiano em questão e que não estava sendo nem mesmo requerida por seus descendentes. Aliás, indo às raias do absurdo, a relatora parece utilizar o princípio da efetividade para justificar a suposta ocorrência de uma renúncia tácita presumida do italiano falecido – ascendentes dos requerentes –, à sua nacionalidade originária. Trata-se da aplicação do princípio não para reafirmar o vínculo de um indivíduo com o Estado ‘x’ ou ‘y’ conforme por ele mesmo sustentado, mas, de modo invertido, para justificar a perda da nacionalidade italiana originária do emigrado em favor de uma outra nacionalidade à qual não se tem qualquer comprovação de que, algum dia na vida, ele tenha sustentado como sendo a sua.  

INAPLICABILIDADE DO JULGADO DA CORTE DI CASSAZIONE N. 9377/2011 AO CASO CONCRETO

Embora a juíza utilize trechos de um julgado de 2011 da Corte di Cassazione que, em tese, daria suporte aos seus argumentos, tratou-se de novo equívoco.

No julgado citado pela sentença, a Corte di Cassazione foi instada a decidir quanto a um caso em que descendentes de um italiano expressamente naturalizado libanês requereram o status civitatis italiano, argumentando que, em sua linha de ascendência, havia um menor de idade quando o pai italiano deste menor fora naturalizado libanês. Os requerentes argumentavam que o menor, sem capacidade civil para obter outra cidadania e renunciar à cidadania italiana, mesmo em face da naturalização expressa de seu pai junto ao Estado do Líbano, mantivera, portanto, a nacionalidade italiana, como comprovava, inclusive, a identidade de estrangeiro deste menor junto ao Estado do Líbano.

A citação feita pela juíza não se aplica, principalmente por conta de duas razões: 

(1) em primeiro lugar, no caso citado houvera uma indiscutível naturalização do ascendente italiano naquela linha sucessória, o que, com efeito, interromperia a transmissão da cidadania jure sanguinis – e este, claro, não é o caso da ação apreciada pela relatora da Sezione Persona, Famiglia e Minorenni, pois os requerentes demonstraram, através da CNN, inexistir qualquer naturalização em nome do italiano em questão e, conforme todos sabemos, a hipótese da naturalização tácita está afastada, desde há muitos anos, da jurisprudência italiana; 

(2) em segundo lugar, o julgado da Corte di Cassazione não utilizou o princípio da efetividade para negar ou conceder direitos de cidadania aos autores daquela causa – muito pelo contrário: o julgado reafirmou a nacionalidade como sendo um direito público concedido de forma privativa pelo Estado. No julgado equivocadamente citado pela relatora da Corte d’Appello, a Corte di Cassazione negou o direito aos autores daquela causa aplicando diretamente a lei pertinente (Legge 555/1912) no caso concreto, entendendo ter havido a perda da cidadania italiana pelo menor da linha, pois aplicável, na época da naturalização expressa do italiano perante o Estado do Líbano, o princípio da jure communicationis, sendo igualmente aplicável, sob a mesma normativa, o art. 9 da Legge 555/1912, que permitiria ao então menor, assim que fizesse 18 anos, readquirir a cidadania italiana – o que, obviamente, ele não fez.

Assim, o precedente citado pela juíza em nada se comunica com o caso por ela julgado. 

A ABSURDA TESE DA “RENÚNCIA TÁCITA PRESUMIDA”: INTERPRETAÇÃO INCONSTITUCIONAL DO ART. 11, III, DO CODICE CIVILE DE 1865 E INVERSÃO DO ÔNUS DE PROVA

Chegamos, neste momento, em um ponto da análise em que podemos tirar uma conclusão bastante óbvia: a decisão da juíza na Corte d’Appello de Roma foi uma decisão pré-ordenada. Não há dúvidas de que a relatora do caso já havia decidido quando, a posteriori, precisou construir suas razões de decidir. Explicaremos melhor esta questão, a fim de entendermos por que a juíza precisou sustentar a absurda tese da renúncia tácita como fundamento da sentença.

Para alcançar o intento de negar a pretensão dos requerentes e reverter o julgado monocrático do Tribunale Ordinario di Roma, a relatora precisaria cumprir dois objetivos: demonstrar que, pela sistemática legal aplicável ao caso, 

(1) houvera a obtenção, pelo italiano, de uma cidadania estrangeira e 

(2) espelhar sua decisão em algum julgado anterior da Corte di Cassazione, prevenindo a discussão que poderia se seguir naquela Corte e protegendo sua própria decisão de uma posterior reforma.

Ocorre que, pela sistemática legal aplicável ao caso do italiano emigrado, a opção disponível que, por óbvio, apoiar-se-ia na tese da Avvocatura dello Stato – a Grande Naturalização –, pela via da aplicação do parágrafo segundo, do art. 11, do Codice Civile de 1865, estaria bloqueada. É que, como é notório, desde 1907, a jurisdição da Itália já decidira que o sentido correto da expressão “ottenuto” do parágrafo segundo deste artigo do Codice jamais poderia ser interpretada em sentido tácito, sob pena de a Itália admitir que uma legislação estrangeira fosse capaz de fazer derrogar as leis italianas. Embora, em sentido processual, a antiquíssima decisão da Corte di Napoli seja passível de ser superada, pois não existe nela qualquer efeito vinculante, continua sendo, mesmo 114 anos depois, extremamente incômodo superá-la. O juiz italiano que o fizer, em prol da Grande Naturalização brasileira, estará, com efeito, negando a jurisdição italiana – e, por motivos óbvios, nenhum juiz mentalmente são infirmará a jurisdição do próprio Estado ao qual encarna em sua atividade jurisdicional. Daí, inclusive, a força do pragmatismo advocatício italiano, que, com boas razões, não acredita na tese da Grande Naturalização como um caminho para a vitória da Avvocatura Generale dello Stato.

A relatora deste caso, portanto, não teria como confrontar o julgado de Nápoles e negar a jurisdição italiana dando outro sentido para o termo “ottenuto”. Assim, perceba o leitor, a juíza não decidiu o caso aplicando o art. 11, II, do Codice Civile de 1865, mas utilizando o parágrafo III do mesmo artigo do Codice.

É que, segundo a juíza provavelmente deve ter pensado, utilizando o parágrafo III, ela poderia espelhar sua decisão em um precedente da Corte di Cassazione – a decisão sobre os descendentes do italiano naturalizado libanês, acima discutida. Para justificar a perda da cidadania do filho do italiano, nascido no Brasil em 1903, a relatora utilizaria os mesmos argumentos da Cassazione: embora menor de idade e, na sistemática da época, sujeito ao princípio do jure communicationis, sua inércia diante de uma prerrogativa que a Legge 555/1912 lhe concedia no art. 9º – a de readquirir a cidadania italiana após a maioridade – poderia justificar a renúncia à cidadania. O problema maior seria como justificar a naturalização do pai deste menor, ou seja, do italiano emigrado para o Brasil. Se, no caso julgado pela Corte di Cassazione, era indiscutível a naturalização expressa do italiano emigrado para o Líbano, no caso do italiano emigrado para o Brasil, não houvera acontecido qualquer naturalização expressa – e, conforme dissemos logo acima, não seria possível anuir com o argumento da Grande Naturalização, sob pena de a juíza negar a própria jurisdição italiana em face de lei estrangeira. Como fazer?

Eis que a juíza tomou o absurdo caminho que vemos na sentença: desconstituir, sem razões e contra normas vigentes em plano internacional, prova regularmente produzida pelos requerentes (a CNN) e utilizar não o parágrafo II do art. 11 do Codice, mas utilizar, então, o parágrafo III, ao argumento de que, tendo o italiano se integrado à sociedade brasileira, teria renunciado tacitamente à sua nacionalidade originária.

Para demonstrar estas razões, a relatora cita o fato de o italiano ter-se casado com brasileira, ter vivido toda a vida no Brasil, aqui ter constituído família, etc. Absurdamente, sem que haja qualquer comprovação feita pela parte recorrente (a Avvocatura) a relatora presume que o italiano teria gozado no Brasil de todos os direitos civis e políticos aqui reconhecidos, como, mais acima, comentamos.

Entretanto, o art. 11, III, do Codice Civile diz que a cidadania italiana se perde para aquele que, sem a permissão do governo italiano, tenha aceitado emprego público ou prestado serviço militar de país estrangeiro. E, nesse ponto, a sentença alcança um grau gigantesco de desumanidade, equiparando os italianos emigrados a verdadeiras ‘coisas’, com um status jurídico inferior ao dos animais, pois, para a relatora, conforme comentamos mais acima, qualquer atividade laborativa poderia ser equiparada a emprego público, dada a situação de estrangeiros dos italianos no Brasil. Em outras palavras: manter a cidadania italiana no Brasil significaria não exercer qualquer atividade laborativa, em situação de alienação e isolamento sociais completos. Para a relatora, portanto, os italianos emigrados para o Brasil deveriam morrer de fome ou se tornarem mendigos, se quisessem manter sua nacionalidade originária.

Deve-se registrar que a relatora comete até mesmo um desvio funcional, pois o parágrafo III, do art. 11, do Codice Civile de 1865, foi revogado pelo art. 35 da Legge n. 23, de 31 de janeiro de 1901. A Itália reconheceu a terrível insegurança jurídica para os emigrados, oriunda deste dispositivo legal. Quando hipótese análoga de perda da cidadania italiana foi prevista no art. 8º da Legge 555/1912, condicionou-se a perda da cidadania à intimação do italiano para que abandonasse, num prazo fixado pelo Estado italiano, o emprego público ou o serviço militar que estivesse exercendo no exterior; assim, por causa da inexistência de solução de continuidade entre o Codice Civile de 1865 e a Legge 555/1912, a aplicação do parágrafo III do art. 11 do Codice nunca correspondera a uma hipótese automática da perda da cidadania italiana e sempre dependeu, na verdade, da inércia do italiano diante de uma ordem do Governo italiano para que abandonasse, num determinado prazo, ou o emprego público ou o serviço militar, conforme o caso, que estivesse exercendo diante de um Governo estrangeiro. Somente depois de passado o prazo é que o Estado italiano poderia declarar a perda da nacionalidade italiana pelo sujeito em questão, mandando ao Ufficiale di Stato Civile que fizesse as anotações pertinentes.

É óbvio que uma decisão tão monstruosa quanto esta não poderá prevalecer junto à Corte di Cassazione, caso os interessados preparem o competente recurso. A leitura dada pela relatora ao art. 11, III, do Codice Civile é profundamente inconstitucional, pois, segundo os arts. 2º e 3º da Constituição Italiana, o Estado italiano reconhece e garante os direitos invioláveis do homem, bem como a igualdade de dignidade social entre todos e, também, perante a lei. 

Por fim, atentemos para o seguinte: a relatora cria uma espécie de “renúncia tácita presumida”, o que corresponde a um verdadeiro escândalo do ponto de vista jurídico, pois, 

(1) a renúncia à cidadania, no direito italiano, sempre exigiu forma expressa – de forma que não se pode presumir a perda automática da cidadania italiana para aquele que tenha se naturalizado em outro país ou estabelecido sua residência no exterior, contrariamente ao decidido por ela na sentença e 

(2) não se pode presumir, em nenhum caso, um ato de renúncia; mesmo que admitida a forma tácita (o que não se admite), esta deveria estar inequivocamente comprovada por documentos que provassem condutas positivas do italiano no exercício dos direitos relacionados à cidadania brasileira – e este não parece ser o caso dos autos, uma vez que os requerentes comprovaram a inexistência de um título declaratório de naturalização (e, portanto, a inexistência do gozo de direitos de cidadania por parte do italiano) e, lado outro, a Avvocatura não fez prova alguma de que este italiano gozou, em vida, de qualquer direito derivado da cidadania brasileira, especialmente do direito de votar e ser votado.

PROCESSO JUDICIAL EM ROMA E A GRANDE NATURALIZAÇÃO

A tese da Grande Naturalização está fadada ao fracasso – e não só pela impossibilidade prática de os juízes italianos superarem a antiga jurisprudência de 1907 ou pela condição que possuem estes mesmos juízes de adentrarem um pouco além na legislação brasileira da época para verem que, com efeito, a naturalização no Brasil sempre dependera de um procedimento, a cargo do Ministério da Justiça que, enfim, declarasse o estrangeiro interessado (e peticionante) um cidadão brasileiro naturalizado. Está fadada ao fracasso pela capacidade que têm a esmagadora maioria dos requerentes brasileiros (os ítalo-descendentes) de produzir todas as provas que forem necessárias à demonstração de que seus ascendentes jamais gozaram de quaisquer direitos de cidadania no Brasil.

Ora, tendo sido o Ministério da Justiça (dantes denominado Ministério dos Negócios do Interior) o órgão responsável pela centralização dos procedimentos administrativos de naturalização, é este o órgão obviamente competente para certificar a ocorrência ou a inocorrência da condição de naturalizado de determinado estrangeiro. Cumpre ressaltar que, conforme texto expresso da Portaria nº 623 do Ministério da Justiça, a CNN constitui instrumento legal para todos os fins de direito (art. 17) e, também,  que o Estado italiano, conforme art. 11 do Tratado relativo à Cooperação Judiciária e ao Reconhecimento de Sentença em Matéria Civil (na Itália, Legge n. 336/1993), se comprometeu a aceitar a validade e a força probante dos documentos públicos brasileiros. Por isto, a jurisdição italiana não pode por nenhum motivo desconsiderar a força probatória de uma CNN autêntica.

Conforme art. 2967 do atual Codice Civile italiano, diante da apresentação da CNN pelos pleiteantes, passa a ser ônus de prova do Ministero dell’Interno comprovar a existência de uma naturalização ou, alternativamente, do exercício regular dos direitos de cidadania brasileira pelo estrangeiro, capaz de desconstituir a força probante da CNN. Aliás, a apresentação da CNN, acompanhada das certidões que comprovam a linha de ascendência italiana dos requerentes, é ato em total conformidade com a normativa do próprio Ministero dell’Interno (Circolare K28) que, além destes documentos, exige adicionalmente, tão somente, a non rinuncia, cuja expedição é ato da autoridade consular sob demanda do Ufficiale di Stato Civile da ‘Comune’ de transcrição dos atos. 

Entretanto, por uma questão meramente prudencial, é importante que as famílias de ítalo-descendentes brasileiros possuam um acervo documental extraordinário, pronto para ser utilizado na Corte d’Appello caso seja necessário. Dada a natureza sumária do procedimento em Roma (art. 702 Codice di Procedura Civile), entende a jurisprudência italiana pela possibilidade da juntada de novos documentos em grau de apelo. Assim, sendo interposto recurso pela Avvocatura, interessante que os requerentes estejam municiados com certidões negativas 

(1) de alistamento militar no Brasil; 

(2) de alistamento eleitoral do TRE da região na qual viveu o estrangeiro e 

(3) da inexistência do exercício de cargo público pelo estrangeiro. 

Além disso, passa a valer a pena, no momento da retificação dos registros do italiano no Brasil, comprovar diante do juiz brasileiro, a inexistência de naturalização e da condição de eleitor, requerendo os interessados que sejam averbados, nos registros de casamento e óbito do italiano, as informações pertinentes.

Nesta mesma linha de raciocínio, passa a ser de interesse primário, para italianos sabidamente emigrados após 15/11/1889, a posse de documentos que comprovam esta imigração posterior. Isto pode se dar, por exemplo, a partir da apresentação de passaportes da época, certidões da imigração brasileira (comprovando a chegada no Brasil em data posterior) e, até mesmo, certidões e documentos que comprovam a residência do italiano na Itália nesta mesma data (anagrafe e alistamento militar, por exemplo).

Outra estratégia, cumulativa, é a apresentação de certidão da ‘Comune’ de origem do italiano comprovando a inexistência de qualquer registro modificativo do status civitatis diante das autoridades públicas na Itália, atestando, portanto, sua condição de cidadão italiano, uma vez que tanto o Codice Civile de 1865 como a Legge 555/1912 exigiam a anotação de atos modificativos do status civitatis, junto aos Uffici di Stato Civile, como formalidade essencial para a validade e eficácia tanto da aquisição de uma outra nacionalidade, quanto da renúncia à cidadania italiana.

AÇÕES CONCRETAS, COM EFEITO COLETIVO, A SEREM TOMADAS NO BRASIL

No Brasil, algumas ações, com efeito coletivo, devem ser tomadas.

Em primeiro lugar, é preciso formalizar uma denúncia, junto ao Ministério da Justiça, relativa ao descumprimento do Tratado Bilateral para Cooperação Judiciária entre Brasil e Itália, pois, como vimos acima, nenhum dos dois países signatários pode negar a validade e a força probante de documentos considerados públicos por um ou outro dos países envolvidos no Tratado. Registre-se que, também no âmbito da jurisdição italiana, é preciso denunciar o descumprimento do Tratado diante do órgão competente (Ministero della Giustizia), além de se tomar providências correicionais contra os agentes do Estado (avvocati e juízes) que, sem qualquer prova contrária, desconsiderarem liminarmente documento regularmente produzido por órgãos do Estado brasileiro.

Em segundo lugar, é preciso promover, junto ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a ação competente para que sejam conformados modelos de certidões que atestem inequivocamente os fatos que os ítalo-descendentes brasileiros eventualmente precisarão comprovar diante do Judiciário italiano, como, por exemplo, negativa do exercício de cargos públicos e de alistamento militar no Brasil, caso a CNN continue a ter sua força probatória desqualificada em solo italiano. Registre-se, aliás, a dificuldade do Exército brasileiro em expedir certidões negativas de alistamento, algo que, certamente, poderá (ou deverá) ser debatido, seja diante do CNJ, seja diante de um juiz federal, em sede de mandado de segurança, pelo direito líquido e certo que têm os cidadãos brasileiros à expedição de quaisquer certidões para a defesa de seus interesses.

Por fim, em terceiro lugar, é preciso angariar o apoio de legitimados para a propositura de ações do controle concentrado de constitucionalidade no Brasil. Para enterrar-se de vez a possibilidade de argumentação, na Itália, relacionada à Grande Naturalização, seria imprescindível que o STF desse interpretação conforme ao Decreto 58-A ou mesmo declarasse sua incompatibilidade com a ordem constitucional brasileira, o que, em tese, poderia ser feito por meio de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). Este, obviamente, seria um longo caminho, árduo tanto do ponto de vista político quanto jurídico; todavia, resta a certeza de que iremos prosseguir lutando, de todas as formas possíveis, para que possamos reafirmar o nosso direito à nacionalidade e a memória dos nossos saudosos antepassados.

VII – Conclusão

Todo italiano nascido na Itália precisa aprender algo essencial em relação aos italianos nascidos no exterior: o que nos move é o amor. Amor pelos nossos avós, pais, filhos, sobrinhos e irmãos; amor pela memória dos que se foram; amor por aquilo que a Itália deveria ter sido para nós e não foi. Os ítalo-descendentes do Brasil não se envolvem numa luta que dura anos e que consome milhares de euros por outra razão que não a maior de todas as motivações humanas, que é o amor. 

Por isto, é muito entristecedor ver que, para além das muralhas que sempre existiram à tomada da posse da nossa identidade italiana – a pobreza da esmagadora maioria dos nossos antepassados e o abandono do Estado italiano aos seus emigrados – constroem-se sempre outras. A dificuldade de acesso aos documentos comprobatórios, a indisponibilidade dos serviços públicos brasileiro e italiano ao nosso pleito, o obstrucionismo da administração pública italiana, especialmente dos Consulados, ao acertamento de nosso direito… são muitos e muitos obstáculos, vencidos por todos nós pelo amor aos nossos, pelo amor à Itália.

Meus bisavós Tiziano Girardello e Agnese Mori sempre quiseram retornar à Itália. Nunca puderam. Ao meu avô Dante Girardello deixaram este desejo e ele, de escassa saúde e pouco dinheiro, também nunca pôde. Costumava dizer à minha mãe, antes de morrer prematuramente, que um dia iria levá-la de volta à Itália. Meus bisavós jamais se esqueceram da Itália e nunca quiseram ser brasileiros, muito embora tenham sido sempre gratos ao Brasil e ao seu povo. Viveram aqui como italianos, ensinando aos filhos o dialeto falado em Rovigo. Tentaram como puderam trazer a Itália junto com eles, estando afiliados às colônias italianas, onde também foram criados os filhos e, até mesmo, os netos. Minha mãe, Fátima Girardello, por exemplo, conheceu meu pai numa colônia italiana, nos idos 1978, em Belo Horizonte, Minas Gerais, colônia mantida exclusivamente pelos esforços dos italianos emigrados e de seus descendentes, sem qualquer auxílio do Estado italiano. 

Foi assim que a cozinha, as festividades e muitas palavras do vêneto sempre estiveram presentes nas nossas vidas. Se não nos integramos mais, é porque o Estado italiano nada ou muito pouco fez pelos emigrados. E esta não é uma realidade somente da minha família, é de todos os ítalo-descendentes brasileiros que, sozinhos e por conta própria, do seu jeito, vão fazendo passar às gerações seguintes tudo aquilo que podem, tudo aquilo que conseguem, mantendo, de alguma forma, acesa a chama da nossa italianidade. Todas as vezes em que, no nascimento de um filho, o emigrado italiano se autodeclarava italiano diante dos Oficiais de Registro Civil no Brasil, estava reafirmando sua nacionalidade e ligação com a pátria mãe; estava, em sua astuta simplicidade, fazendo sua prole herdar a única coisa que todos eles tinham para deixar aos descendentes: a nacionalidade italiana. Por isto, não pode o Estado italiano, na forma de sua jurisdição, querer apagar-nos desta memória.

A sentença da Corte d’Appello nega frontalmente o status civitatis italiano a emigrados que jamais estiveram de posse concreta da cidadania brasileira. Equipara-os a apátridas! Nega-lhes a memória que nós, descendentes, custamos, por gerações, a manter. Isto não pode acontecer! Não bastasse a pobreza que os expulsou da Itália e uma vida de degredo e de alienação no Brasil, quer a jurisdição italiana subtraí-los até a dignidade do trabalho e da subsistência? Não podemos permitir que nossos queridos avós e bisavós tenham manchadas de tal forma as suas saudosas pessoas e bravas memórias.

A Grande Naturalização é uma falácia, originada da sanha eleitoreira das oligarquias da Velha República e que alcançou, concretamente, muitos poucos italianos, como comprovam os registros públicos produzidos no Brasil e os arquivos do Ministério da Justiça, órgão competente para certificar, para fins de direito e com força probante no Estado italiano, a inexistência de naturalização. Trata-se de tese que desconsidera a vontade consciente dos nossos antepassados em permanecerem italianos, em manterem suas raízes, em ver-nos herdar aquilo que a lei italiana sempre nos garantiu: nossa cidadania. Por isto, precisamos seguir lutando – e seguiremos, seja na mídia especializada, seja na Administração Pública, seja nos Tribunais, seja nas Cortes Internacionais, seja aqui ou do outro lado do Atlântico.

* CRISTIANO LUIZ GIRARDELLO DE BARROS – Avvocato. Laurea in Diritto e Master in Diritto presso l’Università Federale di Minas Gerais. / Advogado. Bacharel em Direito e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais)

* MARIA STELLA LA MALFA – Avvocato. Diploma di Specializzazione in Professioni Legali come Post Laurea. Laurea Magistrale in Giurisprudenza. Università degli Studi di Palermo. / Advogada. Diploma de Epecialização em Profissões Jurídicas como pós-graduação. Mestre em Direito. Universidade de Palermo).


Este artigo foi publicado originariamente na edição 167 da Revista Insieme.