A 'Corte di Cassazione' de Nápoles superou o tema da 'Grande naturalização' no Brasil, agora levantada pela advocacia do Estado italiano, já em 1907. (Reprodução)
Daniel Taddone e o ‘all’arme’ feito. (Foto Desiderio Peron / Arquivo Revista Insieme)

“Devemos estar atentos e sempre prontos a defender nossa herança, que não é casual. ‘All’arme’ feito, cabe agora a quem de direito refutar de forma decisiva a agressão do ‘avvocato dello Stato’ e, sobretudo, tentar entender suas motivações mais profundas.”

 


No último dia 3 de dezembro escrevi um artigo nesta mesma Insieme intitulado “A ‘Grande Naturalização’ que poderá assombrar os ítalo-brasileiros”. Imediatamente instalou-se o caos no microcosmo da cidadania. De um lado os leigos pareciam não ler o artigo e reagiram instintivamente imaginando que alguma lei ou decreto houvesse “retirado direitos dos descendentes”. Outros ainda questionaram se o Estado poderia então cassar-lhes a cidadania caso sua linha de ascendência contivesse os mesmos elementos alegados pelo “avvocato dello Stato”.

PATROCINANDO SUA LEITURA

Do outro lado, histéricos autodenominados representantes dos interesses dos ítalo-brasileiros acusaram-me de vários malfeitos. Ao publicar o artigo eu teria dado “munição aos inimigos dos ítalo-brasileiros”. Outros, os de sempre obviamente, sustentam que eu causei o caos para aparecer, eu teria usado “táticas de marketing digital”. Enfim, um “traidor marqueteiro”.

Recebi críticas também de caros amigos, que questionaram a conveniência do artigo e da mensagem, que seria facilmente mal interpretada e também distorcida pelas figuras lúgubres que volta e meia fazem suas transmissões nos desvãos que habitam. E de fato tinham razão os amigos: a mensagem foi mal interpretada pelos leigos e distorcida pelos canalhas. Errei, portanto. Mea culpa.

Meu objetivo com o artigo foi dar um alarme, entendido aí na sua etimologia original: all’arme! Comando militar para que os soldados empunhem suas armas. E, apesar dos pesares, meu alarme teve êxito. Várias pessoas entraram em contato comigo para fornecer importantes elementos que comprovassem que a tese apresentada pelo ‘avvocato dello Stato’ não poderia prosperar.

A peça mais contundente contra a tese aberrante do ‘avvocato dello Stato’ foi-me enviada por Leandro Franceschi. Trata-se de uma decisão da ‘Corte di Cassazione di Napoli’ (até 1923 havia cinco sedes da ‘Cassazione’, que só depois foi unificada em Roma).

Nesta decisão, a ‘Cassazione’ simplesmente destrói dois dos argumentos anacrônicos do ‘avvocato dello Stato’ em sua ‘memoria difensiva’ de 29 de novembro passado. Percebe-se, então, que o ‘avvocato dello Stato’ fez a lição de casa pela metade no afã de diminuir o número de cidadãos italianos que possam solicitar o reconhecimento da cidadania com a qual nasceram.

Na decisão de 1907, a ‘Cassazione’ invoca a ineficácia da naturalização tácita afirmando claramente que “a falta de declaração contrária à aceitação da nacionalidade brasileira não apenas era ineficaz para provar a renúncia da nacionalidade de origem, como também violava a liberdade de escolha, pois considerava o silêncio como expressão positiva de querer abandonar a antiga nacionalidade e adquirir uma nova”.

A Corte ainda demonstra que o outro argumento usado pelo ‘avvocato dello Stato’ sobre a perda da cidadania de filhos de italianos nascidos em país com leis de cidadania baseadas no ‘ius soli’ desrespeita frontalmente o Código Civil italiano vigente à época. Ao demonstrar de maneira cristalina que a perda da cidadania italiana prevista no artigo 11 inciso 2º do Código Civil de 1865 depende sempre da vontade do indivíduo de obter outra nacionalidade.

Neste sentido, a Corte sentencia de forma incontestável que o verbo obter (em italiano ‘ottenere’), como eu já havia argumentado num artigo de abril deste ano, filologicamente pressupõe que haja uma solicitação ou desejo. Assim, a legislação italiana da época não reconhece a eficácia da naturalização tácita prevista por lei estrangeira, nem aceita que filhos de italianos nascidos em país que lhes atribuíam sua nacionalidade ‘iure soli’ sejam privados da nacionalidade italiana que lhes fora transmitida automaticamente pelo pai ao nascer. “Cu ‘na fava duj picciuni!”.

Ainda sobre a naturalização tácita prevista pela legislação brasileira, o próprio primeiro-ministro do Reino da Itália de então, Francesco Crispi, manifestou-se em 4 de outubro de 1890: “o decreto brasileiro não oferece a nacionalidade aos estrangeiros, mas a impõe. De qualquer maneira, segundo o Código [civil] italiano, a solicitação de nacionalidade deve ser um ato voluntário do indivíduo”.

Restam, portanto, claramente rejeitadas as estapafúrdias teses do ‘avvocato dello Stato’. É para isso que serve nossa mobilização. Devemos estar atentos e sempre prontos a defender nossa herança, que não é casual. Cabe agora a quem de direito refutar de forma decisiva a agressão do ‘avvocato dello Stato’ e, sobretudo, tentar entender suas motivações mais profundas.

Essa última tarefa cabe aos nossos representantes políticos. Poderemos contar com eles?