“Não estamos interessados em dar entrevistas, no momento, sobre a questão de Ospedaletto”. Assim, secamente, respondeu representante de um escritório de advocacia com diversas sedes na Itália e Europa, que teria sido contratado por grupo ou grupos integrantes dos 1.188 ítalo-brasileiros cujo reconhecimento de cidadania italiana por direito de sangue foi cancelado por ato do Comune (município) de Ospedaletto Lodigiano, província lombarda de Lodi, no Norte da Itália.
Com menos de 1.600 habitantes, o município italiano passou a ser a residência temporária de quase igual número de ítalo-descendentes em busca do reconhecimento da cidadania italiana por direito de sangue em apenas dois anos – entre 2015 e 2017. A decisão da autoridade municipal de Ospedaletto foi tomada depois de uma sentença do Tribunal de Lodi, que levou à prisão quatro pessoas – entre elas um casal de brasileiros dono de uma “agência de migração” em Monza. Os outros dois presos foram um comissário de polícia e um funcionário do próprio Comune.
Segundo se informa, bom número dos “cassados” pela decisão da prefeita italiana, inconformados com a decisão, está tentando reverter a situação, pois nem todos se enquadram na “vala comum” estabelecida pela decisão. Sabe-se que entre os nomes estão os de dois juízes de Direito. Segundo uma das fontes de Insieme, os advogados argumentam que “residência não pode ser causa de cancelamento das práticas”, e se isso aconteceu no lapso de tempo entre 15 ou 45 dias “ela [a residência] é legítima e esse cancelamento é ilegal”.
A relação de nomes publicados pelo Comune de Ospedaletto é composta por três listas: a maior, com 889 pessoas, contém nomes que transferiram a residência para o exterior, isto é, declararam não morar mais em Ospedaletto. A segunda lista, com 232 nomes, é constituída de pessoas que continuam a constar na lista dos residentes locais, embora lá não vivam. E a terceira lista, com 57 nomes, diz respeito a inscritos como residentes na cidade mas que não obtiveram ainda o reconhecimento da cidadania, mas já teriam pago os valores exigidos.
Chama atenção nas listas um particular relativo à idade dos que tiveram a cidadania cancelada. Dentre eles há quase recém-nascidos. Somente na lista maior, com 889 pessoas, 5 delas nasceram em 2016; 24 nasceram em 2015; 7 nasceram em 2014, num total de 124 relacionados com idade abaixo de 10 anos, enquanto os relacionados com menos de 18 anos totalizam 229, ao passo que os maiores de 50 anos são apenas 170. Nas listas há gente de quase todas as regiões do Brasil. Na principal, só de São Paulo-SP, são 423.
A decisão da prefeita Lucia Mizzi, lavrada em cinco laudas, tem a data de 9 de fevereiro último e não foi comunicada pessoalmente a nenhum dos interessados por residirem permanentemente em diversos estados brasileiros, fato que tornaria a comunicação “particularmente custosa” e “impossível”, segundo ela considerou. Dessa forma, ela optou por uma publicação no mural (site) da prefeitura, com um resumo na “Gazetta Ufficiale” da República Italiana, e também no Boletim Oficial da Região da Lombardia.
A busca pelo reconhecimento da cidadania italiana residindo, mesmo que temporariamente, na Itália foi uma forma encontrada por milhares de interessados assim que começaram a aumentar as dificuldades para sua obtenção junto aos consulados italianos que operam no Brasil. Isso passou a ocorrer com mais intensidade a partir dos primeiros cinco anos do início do século, quando consulados como o de Curitiba ficaram inclusive temporariamente fechados à recepção de novos pedidos. Além de mais custoso (envolve viagens, assessoria, aluguel de residência, guias, tradutores etc), esse tipo de procedimento favorece apenas ao interessado que decide viajar por tempo nem sempre previsível, aproveitando a “brecha” da lei italiana que não define tempo mínimo de residência em solo italiano para fins de reconhecimento de cidadania.
No caso de Ospedaletto, assim como em outros casos com menor número de interessados e, também, de repercussão menor, o procedimento contava – segundo apuraram as autoridades italianas – com o apoio de funcionários públicos encarregados de conduzir o processo de reconhecimento da cidadania por direito de sangue. Pouco tempo antes, caso semelhante ocorreu com interessados residentes no Rio Grande do Sul, envolvendo município do Sul da Itália, cujos interessados também tiveram negado o fornecimento de passaportes pelo Consulado Italiano.
Observe-se que nesses casos, a cassação da cidadania italiana por direito de sangue dos ítalo-brasileiros envolvidos no “caso Ospedaletto” (ou outros semelhantes) decorre, “grosso modo”, do método utilizado para obter o reconhecimento; isso não impede que, sendo descendentes de italianos, o reconhecimento por direito de sangue seja obtido através de outro processo, inclusive judicial. Segundo o advogado Elton Stolf , “o Comune colocou todos numa vala comum – quem fez todo o processo certinho e quem jamais pisou lá. Quem fez tudo certinho foi injustiçado, e se tem provas pode reverter administrativamente a situação”, diz Stolf, acrescentando: “Por outro lado, tem gente que fraudou mesmo e nunca foi pra lá. Inclusive tem trentinos no meio, ou seja, os pilantras dos assessores fizeram cidadania inclusive pra quem não tinha direto”.
Também o advogado Walter Petruzzielo, consultado, informa que “o reconhecimento da cidadania é cancelada administrativamente mas não é cancelado o direito. Com a documentação em ordem e legalmente, o interessado pode requerer novamente”.
A imprensa italiana relata que os agenciadores (casal de brasileiros) pediam aos interessados uma quantia que variava entre 3500 e 5 mil dólares por processo (de R$ 14 mil a R$ 20 mil). Desse total, 1.250 euros eram destinados aos funcionários públicos. A estimativa é de que a fraude tenha movimentado mais de 4 milhões de euros em dois anos, ou o equivalente a cerca de R$ 16 milhões de reais.