Sob o título “João De Mio, o construtor de igrejas, a revista Insieme publica, na edição deste mês, extenso material sobre o imigrante italiano, cujo 50º aniversário da morte ocorre nesta terça, 16 de março. Ele foi um arquiteto autodidata que projetou e construiu inúmeras obras em Curitiba e outros municípios do Paraná, especialmente igrejas e capelas. Por isso é considerado também o “arquiteto de obras sacras”. Em homenagem a De Mio, reproduzimos, na sequência, parte do material publicado pela revista:

Em seu antigo escritório de advocacia, uma casa,  no bairro Água Verde, em Curitiba, Amadeu Luiz De Mio Geara, vereador da cidade por duas vezes e, também duas vezes deputado federal pelo Paraná, guarda um verdadeiro tesouro sobre seu avô João De Mio. Aos oito anos de idade, ele recebeu a incumbência de organizar e preservar a memória do ‘nonno’ e, mãos à obra desde então, tudo foi guardando e organizando; ainda criança, aprendeu datilografia no transcrever para o papel manuscritos, anotações, rabiscos, cartas e tudo o que encontrou pela frente relativamente à obra do pai de sua mãe. Agora, já aos 80 anos, conseguiu outra façanha: digitalizou tudo e, numa infindável série de postagens em capítulos, publicou o precioso acervo em seu perfil do Facebook. Ali estão histórias, fotos, descrições, tabelas, desenhos, críticas e anotações minuciosamente referenciados, contando em detalhes a extensa obra de seu ancestral cujo cinquentenário de morte ocorre dia 16 deste mês de abril. Todo o material coletado está sendo integrado à Coleção do IHGP – Instituto Histórico e Geográfico do Paraná. 

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Com algum tempo disponível, revolvendo os capítulos do Facebook, é possível saber em detalhes quem foi João De Mio – um “constructor”, segundo a licença profissional que lhe foi concedida pelo governo do Paraná no ano de 1931 em atendimento a um pedido de 1926. Para resumir em poucas palavras, é só imaginar que boa parte das mais acolhedoras igrejas e capelas de Curitiba e arredores foi construída (e muitas delas também projetadas desde os alicerces) por esse imigrante italiano. Mais incrível é saber que ele sequer passou do ensino primário ou fundamental por ter que trabalhar e ajudar nas economias da família sem, contudo, deixar de estudar. Autodidata, descobriu-se amante de Vitruvio e estudioso das obras de grandes arquitetos italianos, entre eles Andrea Palladio e Giacomo Vignola. 

Em sua profícua carreira profissional, substituiu engenheiros de renome em empreitadas que aqueles fracassaram na metade da empreitada. Agradecido ao país que o acolheu, nunca abdicou de suas origens. 

Nasceu italiano e italiano morreu, aos 92 anos de idade, rejeitando a naturalização brasileira que lhe foi oferecida em troca de um título de “Engenheiro Honoris Causa’, oferecido por seu amigo Manoel Ribas, interventor do Paraná, com o qual poderia assinar seus próprios projetos. Por isso suas obras dependiam sempre da assinatura técnica de um profissional credenciado. Em compensação, recebeu do presidente da República Italiana a “Ordine al Merito della Repubblica Italiana” no grau de “Cavaliere” e a “Stella della Solidarietà Italiana”. Era casado com Caterina Razzolin De Mio e teve cinco filhos. Segundo registrou o jornal “Tribuna Italiana” da época, editado em São Paulo, quando morreu, tinha nove netos e 10 bisnetos.

De Mio era natural de Forno di Canale,  Província vêneta de Belluno, onde nasceu em 13 de agosto de 1879, no seio de uma família de pedreiros, marceneiros e agricultores. Ele ainda era uma criança de sete anos incompletos quando seus pais decidiram migrar para o Brasil. Aqui, após o desembarque no Rio de Janeiro, zarparam para Santa Catarina, tendo como destino final a Colônia de Luiz Alves, onde viveram apenas 18 meses.  

Em 1888 a família se transferiu para Curitiba em busca de sorte melhor. O menino João De Mio começou a estudar no ano seguinte e, em 1892 concluiu o curso primário. Trabalhar na chácara e auxiliar seu pai, um ajudante de pedreiro, no sustento da família, era o que fazia já antes dos 14 anos de idade. Nunca mais frequentou os bancos escolares, mas estudou a vida inteira, agarrando-se aos livros para aprender, sozinho, os segredos da construção. Um de seus ‘consultores’ era o arquiteto italiano Ernesto Guaita. Consta que em 1919 deu início à sua primeira obra arquitetônica de estilo sacro, clássico, em que se notabilizou: o projeto do interior da Igreja de Nossa Senhora das Mercês, onde também iniciou sua parceria com o pintor e violinista Paulo Kohl, um suíço de Zurique, com passagem pela Escola de Belas Artes de Berlim, chegado ao Brasil em 1913, que somente no Paraná pintou mais de uma centena de igrejas.

Para entender melhor a importância de seu trabalho, é necessário considerar que, na época de João De Mio, não existiam construtoras. Os mestres de obras formavam suas equipes de pedreiros que executavam as tarefas seguindo a orientação do chefe. Dentre as principais obras dele, que vão de prédios a túmulos e campanários, geralmente são citadas a fachada da Sociedade Giuseppe Garibaldi, no centro histórico da cidade (onde, por longos 25 anos foi o orador oficial) e a imponente Igreja de São Pedro, no bairro do Umbará. Mas a relação de igrejas e capelas vai muito além, a começar por aquela que é um dos locais mais concorridos para a realização de casamentos em Curitiba: a Igreja Santa Terezinha, no Batel. Aliás, sobre essa igreja, existe uma história bastante interessante. E convém que ela seja contada pelo próprio “constructor”, que geralmente anotava de próprio punho os principais fatos relacionados às suas obras. Conta ele, segundo narra o neto guardião de seu acervo:

“Existe em Curitiba um suntuoso templo dedicado a Santa Teresinha do Menino Jesus, e aqui faço um pequenino histórico da construção do mesmo. 

O primeiro vigário da paróquia foi o padre Jerônimo Mazarotto, hoje Bispo e muito meu amigo. Ele me conhecia como arquiteto construtor de igrejas, mas, quando tratou de edificar a Matriz, ele me deixou de lado. O motivo ele explicou a um meu amigo, o qual me relatou era o seguinte:

“O João De Mio, nas suas construções de igrejas, é muito apegado ao estilo clássico, já eu quero coisa diferente.”

E então entregou a construção a três engenheiros, os quais levantaram todas as paredes e fizeram todo o acabamento externo, menos a fachada e todo o interior. Estava cru, não estava revestida.

Eu estava trabalhando no acabamento na rica Capela do Colégio Santa Maria dos Maristas. Um belo dia, bem cedo, me aparece o padre Jerônimo, cordialmente me cumprimenta e, em seguida começou a seguinte conversa:

“Amigo João, o senhor tem que vir me ajudar e servir. Trata-se de vir acabar a Matriz de Santa Terezinha. Já experimentei três engenheiros e diversos mestres pedreiros, mas nenhum deles nada entende de arquitetura sacra. Só o senhor que sabe dar o senso de arte e beleza ao templo.”

Eu então considerei-me estar diante de um vencido e o vencedor era eu!

Aceitei o encargo com a condição que, ao executar os trabalhos, não admitia conselhos e intromissão. Devoto que sou de Santa Teresinha, Eu dei tudo o que sabia e conhecia de arte e beleza em arquitetura, para embelezar o templo da grande Santa.

Toda a pintura decorativa foi executada, tanto em desenho como em cores,  (em) prévio entendimento entre eu e o competente pintor e decorador habilíssimo, artista alemão Paulo Köll. Os quadros e as figuras são dele.

Todos mesmo só elogiam, (posso) constatar que me saí bem do encargo assumido. No dia da inauguração, muitas felicitações eu recebi.

Os curitibanos muito orgulham-se da Igreja de Santa Teresinha. Até o presente, que escrevo estas linhas, na dita igreja já se realizaram mais de quatro mil casamentos. (Dezembro de 1969)”.

Outra obra de destaque do “constructor” é a Igreja de Nossa Senhora Aparecida, no então “longínquo”  bairro Seminário, habitado inicialmente por imigrantes italianos e poloneses, inaugurada em 1942. É dele também a Capela Santa Maria, antigamente pertencente ao Colégio dos Maristas e hoje, completamente restaurada, um dos ícones culturais da cidade, “uma das mais belas salas de Concerto de Câmara do Brasil, com acústica elogiada e sede da Camerata Antiqua de Curitiba”, no dizer de seu atual gestor, Marino Galvão Júnior.

Em Curitiba levam a marca de João De Mio ainda a Capela do Colégio Santa Terezinha e mais que centenário Colégio Sagrado Coração; a construção do Círculo de Estudos Bandeirantes; o ateliê de João Turim.

Mas também nos arredores de Curitiba estão verdadeiras joias projetadas e executadas pelo autodidata João De Mio. Seu neto cita cinco igrejas em Balsa Nova e Campo Largo, entre elas as igreja de Santo Antônio, no Bugre; a igreja matriz de Balsa Nova; a igreja da Colônia Mariana; a igreja de Nossa Senhora do Rocio, nos ‘Miqueletos’; e a igreja de Bateias.

“Em todas as suas obras – diz o neto Amadeu – há profundas marcas da arte e da cultura clássica”. Mas também era homem de muitas ligações sociais:  “Penso escutá-lo nas engalanadas sessões solenes das entidades que presidiu ou que foi orador oficial durante décadas: Sociedade Garibaldi, Círculo Católico Operário, Sociedade Italiana Vittorio Emanuele e sociedades beneficentes, como 21 de Abril e Operários do Batel”.

Nele morava também “o contundente ambientalista, declarado amante das campinas e das florestas, encantado com a majestade dos pinheirais, crítico acerbo dos madeireiros exterminadores das riquezas naturais do Paraná”.

Segundo o professor de História da Arte da PUC-PR, Fernando Antonio Fontoura Bini, a partir das memórias e pesquisas, João De Mio “contribuiu muito para uma história da imigração e dos imigrantes no estado do Paraná. Legou seu testemunho sobre os primeiros engenheiros a construir uma nova Curitiba. Por exemplo, trabalhou como construtor em obras como as de Ernesto Guaita (1843–1915) e de Eduardo Fernando Chaves (1892–1944), sendo que este último foi um dos responsáveis pela verticalização da cidade. O programa era embelezar Curitiba. Fez isso com vontade científica, mas também com espírito poético. Com o seu trabalho na construção civil, teve a oportunidade de interferir arquitetonicamente em algumas obras e assim participar do ecleticismo curitibano com a expressão neoclássica, imprimindo em suas obras o que lhe seria o modelo original que acreditava ter guardado na memória”.