Coube ao embaixador Rubens Ricupero dizer ao presidente da Itália, Sergio Mattarella, o que talvez ele não tenha ouvido em qualquer outro momento de sua visita oficial ao Brasil, iniciada domingo último: É preciso pensar num melhor aproveitamento do grande capital que a imensa comunidade italiana no Brasil representa. “Isso é um capital que permanece um pouco aguardando um melhor desenvolvimento”, disse o diplomata.
“Espero que esta visita sua sirva para esse objetivo, para relançar essa relação e também para uma atualização, uma atualização necessária não apenas baseada no passado, mas na Itália moderna e no Brasil do futuro”, disse Ricupero na sequência do discurso de Mattarella nas dependências do Cebri – Centro Brasileiro de Relações Internacionais, no Rio de Janeiro.
O diplomata brasileiro com raízes pugliesas e napolitanas até prova em contrário tem sido o único expoente do governo brasileiro a pedir desculpas pelo tempo em que imigrantes (não apenas italianos) foram proibidos de se expressar em suas línguas de origem. Isso ocorreu no final de 1994, no Parlatino, em São Paulo, durante um evento italiano. “Que riqueza isso seria hoje para o Brasil neste mundo globalizado”, disse ele.
Em seu pronunciamento diante de Mattarella ele louvou a iniciativa do Presidente de ir ao Rio Grande do Sul onde pode perceber “como essas comunidades permanecem ligadas às tradições e aos dialetos”. Somos 30 milhões, disse ele, uma imensa comunidade onde “a imagem da Itália é 100% positiva”.
Acompanhe, a seguir, a íntegra do pronunciamento de Ricupero, que destacamos também num vídeo extraído das imagens distribuídas pelo Quirinal: “Senhor Presidente, primeiramente gostaria de expressar nossa gratidão por este discurso rico em conceitos, mas, sobretudo, cheio de valores, valores que todos nós compartilhamos. Seria longo fazer um comentário sobre cada um dos pontos que merecem ser comentados. Mas permito-me dizer que sou um pouco mais velho que o senhor. Nasci em 37, e nunca havia pensado que um dia, para mim, o futuro dos Estados Unidos pareceria mais incerto, mais perigoso, mais ameaçador do que o da minha pátria.
Uma pátria que tem uma vida difícil porque é um país em desenvolvimento. E nunca teria pensado em ver um mundo tão ameaçado por problemas de todos os lados. O senhor apresentou uma visão, uma análise muito rica com as soluções possíveis.
Mas não quero tomar muito do seu tempo. O senhor falou do sesquicentenário da imigração italiana. Eu mesmo sou um produto dessa imigração. O senhor sabe que me tornei embaixador do Brasil em Roma exatamente um século, exatamente um século, após a chegada em São Paulo dos meus quatro avós. Eles eram imigrantes do sul, pobres. Minha família paterna de Barletta, na Apúlia; minha família materna de Nápoles, da cidade. Minha mãe, Assunta Giovine, tinha um grande orgulho do dialeto. Em minha casa se falava mais napolitano do que italiano
O Brasil ofereceu a mim e a muitos outros esta oportunidade de ascensão social. E algo que me impressiona muito, senhor Presidente, é que este capital criado pela imigração, essa riqueza humana, esse potencial imensurável de afeto que existe no Brasil pela Itália permaneceu, não diria sem nenhum tipo de desenvolvimento, mas com um desenvolvimento insuficiente. ”
O senhor sabe, quando eu era embaixador em Roma, acompanhei o Presidente Oscar Luigi Scalfaro, de quem me tornei amigo, um caro amigo até sua morte, em sua visita ao Brasil. E o que me ficou dessa experiência, não apenas da visita, mas também do meu tempo em Roma, foi um pouco esse sentimento que não é apenas um sentimento meu.
Meu amigo Alessandro Lombardo, um jovem empresário italiano de grande sucesso no Brasil, ontem à noite me pediu para lhe dizer, senhor Presidente, que há um imenso capital no Brasil. De afeto, de boa vontade, que, permita-me dizer, é maior do que o que existe em outros países. Eu fui embaixador do Brasil nos Estados Unidos. Todos os anos, a Italo-American Society me convidava para o banquete anual como ítalo-brasileiro, não como brasileiro.
E algo que me impressionava muito era a condição um pouco apologética. Os italianos nos Estados Unidos precisavam provar que não eram pessoas de má vida [para dizer de outra maneira]. No Brasil, ao contrário, o senhor sabe, a imagem da Itália é 100% positiva. Tudo: A arte, como disse meu amigo Marcos Azambuja, a música, a cultura, mas também a contribuição dos italianos.
O senhor sabe, em Roma, algo que me impressionava e que me entristecia um pouco era ver que os italianos não tinham uma clara consciência da importância da comunidade italiana no Brasil. Sabiam dos Estados Unidos, do Canadá, da Argentina, da Austrália, mas não do Brasil. Mas no Brasil somos quase 30 milhões, 30 milhões. E uma comunidade que teve um papel central no desenvolvimento de todo o centro do Brasil, do sul do Brasil.
E agora, o senhor sabe, que esse milagre agrícola é em grande parte fruto do trabalho dos vênetos, dos trentinos do sul do Brasil. O senhor teve essa oportuna ideia de visitar o Rio Grande do Sul, onde teve a oportunidade pessoal de conhecer como essas comunidades permanecem ligadas às tradições e aos dialetos. Eles até inventaram uma língua. O senhor sabe que inventaram um dialeto que chamam de talian, que é uma espécie de esperanto de todos os dialetos vênetos.
Uma vez, quando eu era ministro do Meio Ambiente, fui ao oeste de Santa Catarina e, em uma reunião com os prefeitos daquela região, percebi que era mais fácil falar com eles em italiano, um italiano um pouco vêneto, sem as [letras] duplas, do que falar em português, pois ainda estavam ligados ao dialeto original. E isso é um capital que permanece um pouco aguardando um melhor desenvolvimento.
Espero que esta visita sua sirva para esse objetivo, para relançar essa relação e também para uma atualização, uma atualização necessária não apenas baseada no passado, mas na Itália moderna e no Brasil do futuro. Muito obrigado”.