A bazófia da Grande Naturalização

Fui o primeiro a escrever sobre que a “Grande Naturalização” (GN) poderia vir a “assombrar” os ítalo-brasileiros (sem esquecer de dar os créditos a quem me alertou para a questão: a advogada ítalo-brasileira Claudia Antonini). Esta mesma Revista Insieme, a 3 de dezembro de 2019, publicava o meu texto. Há quase dois anos, portanto. 

Na ocasião muita gente fez o que sempre faz: tacharam-me de “terrorista” e outros tantos mimos. A última frase do meu artigo é esta: “Por enquanto é apenas uma defesa do Estado numa única ação. É preciso ver se essa “memoria difensiva” vai extrapolar sua função objetiva para pautar decisões de outros órgãos.” Infelizmente, a possibilidade que eu havia aventado ocorreu: a questão extrapolou seu campo de ação inicial e se concretizou numa bizarra circular do Ministero dell’Interno recentemente exarada. 

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Essa circular adiciona mais um elemento esquizofrênico à balbúrdia que é o arcabouço jurídico que regula a cidadania italiana. Não há regras claras para nada, consulados rejeitam situação “x”, o Tribunal Civil de Roma nem mesmo leva em consideração a mesmíssima situação “x”. Nunca houve vontade de normatizar situações simples, como incongruências de nomes e sobrenomes em assentos de registro civil lavrados no estrangeiro (isto é, fora da Itália), nunca normatizaram situações recorrentes como o bendito “autorregistro” brasileiro e muitas outras situações. Resultado? Cada um age como quer, conforme o humor que lhe dá na veneta. E a lista de situações aberrantes é extensa. É um sistema em que o obstrucionismo é a norma.

Mas voltemos à bazófia da “Grande Naturalização”. Redijo este artigo para alertar aqueles que porventura tenham em suas linhas de ascendência um dante causa que tenha chegado ao Brasil antes de 15/11/1889. Tomem muito cuidado com assessores que digam que “está tudo normal” no reconhecimento presencial na Itália. Não está. Um assessor que diga algo assim comete, no mínimo, uma temeridade. Já não estava “normal” antes dessa bazófia da GN, agora muito menos.

Tenho muitos amigos que são assessores e afirmo sem medo de que se trata de uma atividade lícita e honrada se for exercida com licitude e honradez, perdoem-me a platitude. Não há nada de errado na atividade de assessor, assim como não há em várias outras que são usadas de bodes expiatórios quando convém. Se há demanda, haverá serviço.

A malfadada circular já foi enviada para todas as “prefetture” e todas elas, cedo ou tarde, enviarão a mesma determinação para todos os municípios sob sua jurisdição. E qual é essa determinação? O Ministero dell’Interno determina aos municípios que os pedidos de reconhecimento de cidadania que envolvam um dante causa chegado ao Brasil antes de 15/11/1889 deverão ser adiados “sine die” (sem prazo) para um “momento successivo“. Os pedidos não devem ser rejeitados, mas devem ser “colocados na geladeira”. Mas, afinal, esse “sem prazo” é até quando? 

O Ministero dell’Interno sugere que seja aguardado um pronunciamento da “Corte di Cassazione“, órgão judiciário italiano que exerce funções semelhantes ao Supremo Tribunal de Justiça brasileiro. E quando esse pronunciamento poderá ocorrer? Não se sabe. Pode ser no prazo de um ano, pode ser em cinco anos. Sobre isso, assistam à longa e boa entrevista do advogado italiano Giovanni Bonato à Insieme. 

Resumindo em tópicos algumas questões importantes:

1) Se existe na linha de ascendência um dante causa (normalmente o ancestral italiano que emigrou) que tenha chegado ao Brasil antes da Proclamação da República, tudo deve ser planejado com muita cautela na “jornada” em busca da cidadania italiana, sobretudo se a pretensão é ir residir na Itália para fazer a solicitação a um município italiano. A determinação do Ministero dell’Interno já está em vigor, é oficial. É uma questão de tempo para que (quase) todos os municípios passem a cumpri-la. Só não a cumprirão aqueles que não tomarem a devida atenção ou que estiverem “azeitados”. E não pense que ao aceitar seu pedido hoje, o oficial do registro civil não possa depois de um mês mudar de ideia e aplicar a circular, te deixando em “águas de bacalhau”. Não existe “direito adquirido”.

2) Até o momento não se sabe se os consulados italianos no Brasil vão de alguma forma aplicar a circular. É algo imprevisível no momento. Eu não arrisco a dizer nem que sim, nem que não. Normalmente é aplicado aquilo que possibilita o maior obstrucionismo (como é o caso da Circular K. 28.1 de 8 de abril de 1991, que os consulados aplicam seletivamente apenas aquilo que possa criar obstáculos para o cidadão). 

3) Quanto aos pedidos na via judicial, recomendo que consultem os advogados italianos para esclarecimentos. A prática judicial segue seus ritos próprios e somente quem está na lida diária sabe de fato que ventos sopram.