• Texto integral da comunicação da mestranda em Direito Aline Beltrame Moura, durante o Workshop “Cidadania e Nacionalidade no Direito Internacional”  (27.04.2009), promovido pelo Grupo de Pesquisas em Direito Internacional  do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Santa Catarina, sob a coordenação do Professor Arno Dal Ri Jr. O WorkShop é o primeiro de um ciclo de eventos sobre os aspectos políticos, jurídicos e econômicos do fenômeno da dupla Cidadania em Santa Catarina, em particular no que se refere à cidadania italiana.

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Introdução
A instituição de uma cidadania chamada “européia” pode parecer, de um lado, uma possível contradição, devido ao fato desta noção estar normalmente ligada ao instituto da nacionalidade, mas por outro lado, constitui uma importante novidade na transformação do direito comunitário. Assinala uma evolução na construção do ordenamento europeu, que sempre esteve relacionado a uma união meramente econômica e monetária e que agora, com a cidadania, ostenta claramente também uma ambição política.

1. Evolução do conceito da cidadania européia do ordenamento comunitário
A cidadania da União surgiu no momento em que a Comunidade européia assumia novas e relevantes competências legislativas em matérias que interferiam diretamente na vida e nos interesses do homem comum, como a tutela ao meio ambiente, aos consumidores, a proteção à saúde e a política social.

Nesse contexto, era imprescindível aproximar, informar e fazer com que o cidadão europeu participasse das decisões adotadas pela Comunidade.
As primeiras discussões acerca da necessidade de criação de um estatuto comum aos cidadãos dos Estados-membros das Comunidades Européias tiveram origem no início dos anos setenta, provenientes do Vértice Europeu de Paris de 1972 e 1974. Posteriormente, ratificou-se o Ato Único Europeu, cujo principal objetivo era a realização até a data de 30 de dezembro de 1992 do Mercado Interno Único, um espaço sem fronteiras internas, no qual fosse possível a liberdade de circulação de mercadorias, serviços, capitais e pessoas. Assim em 1992 foi criada a União Européia por meio do Tratado de Maastricht, onde ocorreu efetivamente a regulamentação da disciplina do instituto da cidadania européia, revestindo-se de um notável significado político, testemunhando a vontade dos Estados-membros de inserirem, definitivamente, o indivíduo na cena principal da construção de uma Europa renovada, baseada na idéia de democracia e da igualdade de tratamento, após um longo período de guerras.
Porém, esse processo de integração europeu, pautado na noção de cidadania da União, vem assumindo novos e relevantes contornos mesmo após Maastricht, especialmente com o Tratado de Amsterdã em 1997 que incorporou o texto da Convenção Schengen; a Carta de Nice em 2001, também conhecida como a Carta de Direitos Fundamentais da União Européia; e o recente Tratado de Lisboa de 2007, ainda não ratificado e que tenciona substituir o fracassado Tratado de Roma de 2004 que almejava instituir uma Constituição para a Europa.
Segundo o art. 17 do Tratado da Comunidade Européia é cidadão da União qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado membro, sendo que a cidadania européia acresce à cidadania nacional e não a substitui. Dessa forma, podemos dizer que é necessário possuir previamente a nacionalidade de um dos Estados-membros para poder usufruir dos benefícios decorrentes da cidadania européia, cujo status permite ao sujeito gozar de direitos suplementares e complementares da cidadania nacional.

2. Direitos do cidadão europeu

2.1. Liberdade de circulação e estadia
Como já dito, o ponto central da “Europa dos mercados” era a liberdade de circulação de mercadorias, serviços e capitais garantidos aos indivíduos ditos “produtivos”, isto é, capazes de desenvolverem uma atividade econômica relevante, colaborando para o crescimento da economia comunitária.
Nesse contexto, o Tribunal de Justiça das Comunidades Européias foi responsável por um progresso qualitativo nessa matéria, através do reconhecimento do direito de circulação e estadia a todos aqueles que pudessem exibir uma carteira de identidade ou um passaporte válido na fronteira do Estado, dispensando a exigência de dever ser um sujeito economicamente ativo, desvinculando o direito da liberdade de ingresso e estadia da atividade laborativa.
Além disso, a elaboração da Convenção de Schengen foi de grande importância na disciplina dessa matéria, diz respeito à cooperação internacional entre os Estados aderentes, no tocante a efetiva eliminação gradual do controle das fronteiras internas e, principalmente, a colaboração entre as autoridades judiciárias e policiais destes países.

2.2. Eleitorado ativo e passivo ao Parlamento Europeu e às eleições municipais
O art. 19 abrange duas situações diversas: o direito de eleger e de ser votado nas eleições municipais do Estado de residência e o direito de concorrer, ativa e passivamente, às eleições do Parlamento europeu no Estado-membro no qual seja residente. Assim, a possibilidade de vir a ser eleito em um Estado-membro diverso daquele do qual se é nacional, favorece a idéia de um mandato parlamentar desvinculado da noção de pertença a um Estado, propiciando a criação de uma imagem do Parlamento europeu como instituição onde se encontram expressões de representação de toda a população comunitária e não apenas de corpos eleitorais nacionais singulares.

2.3. Direito de proteção diplomática
Esse direito consiste na tutela, por parte das autoridades diplomáticas e consulares de qualquer Estado-membro, a um cidadão da União que se encontre no território de um país terceiro no qual o país de que possua a nacionalidade não esteja representado.
Dessa forma, se compreende facilmente, neste caso, como ser cidadão da União possa ser muitas vezes mais importante que ser cidadão do próprio Estado nacional. Mas para isso, imprescindível que os cidadãos sejam melhor informados sobre esse direito. Os dados atualmente disponíveis revelam que o nível de informação é mínimo. De acordo com uma sondagem do Eurobarómetro, instituto de pesquisa de estatísticas ligado a União Européia, apenas 23% dos cidadãos europeus que tencionam viajar para um país terceiro conhecem a existência desse direito.

2.4. Direito de petição ao Parlamento Europeu e direito de denúncia ao Provedor de Justiça Europeu
O direito de petição ao Parlamento Europeu constitui um dos poucos meios de contato mais direto e imediato entre os cidadãos e as instituições européias. As petições devem estar relacionadas com o direito comunitário, com a sua aplicação por parte dos Estados-membros ou com um caso de ação ilegítima por parte de uma autoridade nacional.
Por sua vez, o direito de denúncia ao Provedor de Justiça objetiva o combate aos casos de má administração nas ações das instituições ou dos órgãos comunitários, salvo situações relativas ao Tribunal de Justiça das Comunidades Européias e ao Tribunal de Primeiro Grau, no exercício das suas funções.

3. Tribunal De Justiça Das Comunidades Européias
No âmbito do direito comunitário, o Tribunal de Justiça das Comunidades Européias (composto por 27 juízes – um para cada Estado-membro – e 8 advogados-gerais) constitui a instituição jurisdicional comunitária, contribuindo em grande parte à formação, interpretação e resolução do acquis comunitario. Assim, a missão essencial dessa instituição consiste em apreciar a legalidade e validade dos atos comunitários e assegurar a interpretação e aplicação uniforme do direito europeu.
Para entendermos melhor a importância do TJCE na consolidação dos direitos concernentes à cidadania européia, passamos à análise de alguns de seus mais célebres casos.
No caso Micheletti (1990), um cidadão argentino residente na Argentina havia pedido seu estabelecimento na Espanha, em virtude da sua segunda cidadania italiana. No entanto, a legislação espanhola admitia o reconhecimento de uma só cidadania, limitando-a àquela do país de última residência antes da chegada à Espanha, no caso, a Argentina, impedindo o senhor Micheletti de adquirir os direitos decorrentes da sua dupla cidadania. O Tribunal pronunciou-se no sentido de que apesar da definição das condições de aquisição e de perda da nacionalidade ser de competência de cada Estado-membro, este deve exercê-la no respeito ao direito comunitário, não podendo, assim, limitar os efeitos da atribuição da cidadania européia. Deste modo, o Tribunal constringiu o ordenamento jurídico espanhol a modificar e limitar o próprio poder soberano de determinar os conteúdos de sua legislação nacional em matéria de cidadania.
Outra situação interessante é a do caso Zhu e Chen (2002), que teve origem com a política de limitação de nascimentos na China, induzindo o casal Chen a fazer nascer no exterior a sua segunda filha, mais precisamente em Belfast, na Irlanda do Norte, porque o direito irlandês permite a todos aqueles que nascem sobre a ilha adquirirem a respectiva cidadania. Assim, após o nascimento, a mãe apresentou um duplo requerimento de permissão para permanência de longa duração, o qual foi negado.
Investido na resolução do conflito, o Tribunal de Justiça afirmou que a idoneidade de ser titular dos direitos em matéria de liberdade de circulação e estadia não pressupõe que o interessado tenha alcançado a maioridade para ter a capacidade jurídica de exercitá-los autonomamente. Além disso, torna-se imperioso concluir que a criança é dependente emocional e financeiramente de sua mãe e que esta possui o direito de entrar e residir no Reino Unido, pois disto dependia a efetivação do direito de sua filha, caso contrário, constituiria uma discriminação em razão da nacionalidade proibida pelo art. 12 do TCE.
Interessante, também, é o caso Bidar (2003), onde o senhor Dany Bidar, jovem cidadão francês, completou os últimos três anos de estudos na Inglaterra a cargo de sua família, sem nunca pedir apoio social. Porém, no momento de iniciar os estudos de Economia na University College London, ingressou com o pedido de ajuda à cobertura das despesas de subsistência, chamado Student Support, negado pelo governo britânico, com base na alegação de que na interpretação de sua lei nacional o senhor Bidar não era estavelmente residente no Reino Unido. Todavia, segundo tal legislação, para um cidadão de outro Estado-membro era impossível obter, enquanto estudante, o status de pessoa estavelmente residente, condição sine qua non para a concessão do dito benefício.
Diante de tal situação, o Tribunal afirmou que o art. 12 do TCE deve ser lido concomitantemente com as disposições relativas à cidadania da União e que um cidadão europeu, legalmente residente no território do Estado-membro hospitante, pode valer-se do direito de liberdade de circulação e estadia previsto no art. 18 do TCE, devendo, pois, ser concedida à ajuda de custo ao jovem Bidar.

4. Déficit Democrático da Cidadania européia
Por fim, cumpre ressaltar um problema enfrentado atualmente pela União Européia, que prejudica a consecução dos seus mais altos anseios integracionistas na esfera política. Trata-se da questão da aproximação dos cidadãos à União Européia e às suas instituições, o que evidencia um paradoxo presente hoje na Europa, pois de um lado os europeus querem resolver os grandes problemas da sociedade e de outro, estes mesmos cidadãos nutrem cada vez menos a crença nas instituições e nas políticas que estas adotam e acabam por se desinteressarem do assunto. E esse é um dos grandes problemas que aprofundam o déficit democrático dos cidadãos perante as instituições, haja vista que contribui à formação da idéia de que a União seja alguma coisa muito distante e, ao mesmo tempo, muito invasiva na vida da população.
Nota-se que na União Européia, um número cada vez maior de medidas econômicas adotadas em nível supranacional tem normatizado sempre mais áreas que condicionam o quotidiano do cidadão. Contudo, a normatização, em si, não se contextualiza como um problema. O grande problema deste contexto reside na impossibilidade de o cidadão europeu influenciar diretamente no processo de decisão da União Européia. Pode-se notar, então, a total ausência de um verdadeiro ‘espaço público’ europeu, fruto de um modo de comunicação efetivo entre os cidadãos e os seus representantes.
Contudo, não se pode olvidar que, neste caso, mais apropriado seria falar de um déficit de informação em matéria de questões européias, cuja responsabilidade recairia tanto sobre os governos nacionais quanto sobre a própria mídia. O grande público deve ter acesso à informação em linguagem simples e explicativa acerca dos acontecimentos a nível europeu para que possa entrar em contato com as decisões que influenciam diretamente as suas vidas. Assim, a pontualidade e a certeza das informações representam elementos imprescindíveis à formulação de valores justos e corretos no processo de integração europeu.

Considerações Finais
Atualmente, o paradoxo da cidadania européia é que mesmo sendo considerada um instituto inovador na ordem jurídica moderna, ainda hoje lhe faltam fundamentos fortes e coesos de integração. As suas estruturas são frágeis, pois ainda não é vista como uma verdadeira e própria cidadania em que os cidadãos, ditos europeus, realmente sintam-se imbuídos em um espírito coletivo.
Apesar disso, podemos verificar que a cidadania da União européia deve ser interpretada como um grande instrumento de inserção dos europeus no espaço político comunitário, fazendo valer seus direitos e reivindicações, concretizando-se, enfim, como uma verdadeira “ponte” entre a Europa dos mercados e a Europa dos cidadãos.