Uma mera desconfiança não checada de fraude documental sem a prévia oitiva da parte interessada foi suficiente para o cancelamento da cidadania italiana ‘iure sanguinis’ de seis integrantes da família Scavazza, que em diversos Estados do Brasil goza do reconhecimento do direito de sangue desde os anos 90 do século passado. Eles “jamais tiveram e não têm a cidadania italiana”, lê-se num decreto do cônsul geral da Itália em Curitiba, Raffaele Festa.
O decreto de cassação foi expedido por Festa em 7 de agosto último, com cópia para diversos órgãos públicos italianos, entre os quais a Procuradoria da República, os Ministérios do Interior e Exterior e o município originário da família (Ospedaletto Euganeo, província vêneta de Padova), informando aos interessados que, contra sua decisão, se quiserem eles podem ingressar com recurso, sem limite de tempo, “exclusivamente junto ao tribunal ordinário competente”.
Até hoje os interessados desconhecem formalmente as razões da atitude do cônsul, e o que sabem a respeito obtiveram através de terceiros. Eles também até hoje aguardam resposta a questionamentos endereçados à autoridade consular, a quem teriam apresentado documentação do próprio município italiano de Ospedaletto Euganeo que comprova a veracidade da documentação que deu origem ao pedido de cidadania. O assunto, segundo informa o conselheiro do Comites – ‘Comitato degli Italiani all’Estero’ para os Estados do Paraná e Santa Catarina, advogado Elton Diego Stolf, deverá ser apreciado pela assembléia do órgão deste próximo sábado, em Curitiba.
“Estamos certos que não há fundamento na dúvida lançada sobre a origem do documento de nosso antepassado, nem na subsequente cassação de nossa cidadania” afirmam cinco dos interessados (um deles – a mãe – já é falecida) em carta endereçada ao advogado Stolf, em que historiam os fatos. Diversos documentos fornecidos recentemente pelo município padovano contradizem as razões do decreto consular.
Por iniciativa própria, Stolf obteve do município italiano cópia do documento original que deu base ao pedido de reconhecimento da cidadania italiana e que, segundo ele, “comprova a autenticidade das informações da família”, colocadas em dúvida pelo cônsul Festa. Outros dois documentos do “Archivio di Stato di Padova” acabaram de chegar hoje às mãos de Stolf. Eles confirmam os anteriores.
O cônsul de Curitiba, segundo Stolf, em sua atividade revisionista “não propiciou aos interessados oportunidade – conferida pelo direito administrativo italiano – para regularizar uma suposição levantada pelo comune [município italiano] encaminhada ao consulado Geral da Itália de São Paulo, que apenas informa que a certidão do imigrante Scavazza Domenico, enviada por aquele consulado ao Comune em 2014, “apresenta anomalias [que podem levar] a considerá-lo documento falsificado”. A anomalia referida seria uma cópia do documento original, à época aceita pela autoridade consular.
Uma longa carta endereçada a Stolf e assinada pelos interessados explica todo o ocorrido: “Recebemos, por intermédio de nosso sobrinho, Ângelo Daniel Carrillho, uma notificação do Consulado Geral da Itália em Curitiba – Brasil, segundo a qual minha mãe, Irinéa Scavazza e seus descendentes, Marcos José Carrilho, João Carlos Carrilho, Edson Luiz Carrilho, Isabel Christina Carrilho e Ângelo Daniel Carrilho não são mais cidadãos italianos. Sua cidadania foi cassada por meio do Decreto 04/2019, assinado pelo Cônsul Geral da Itália em Curitiba, Sr. Raffaele Festa.
Segundo o mesmo documento, a medida teria sido motivada pelo Comunicado da Comune di Ospedaletto Euganeo (PD), Prot. 11097 datado 30.07.2019, cujo texto afirma que a certidão de nascimento de nosso antepassado, Domenico Scavazza, “presenta anomalie tali da farlo ritenere un documento falsificato” (apresenta anomalias a ponto de fazer supor seja um documento falsificado).
Tomamos conhecimento desta afirmação de forma indireta, pelo citado decreto, pois, até o presente momento não tivemos acesso ao conteúdo integral deste comunicado. Inicialmente, nosso procurador, Dr. Bernardo Teixeira Batista, foi ao Consulado Geral da Itália em Curitiba, em 9 de setembro passado, solicitar acesso ao documento motivador do decreto. Não obteve acesso ao documento sob a alegação de que somente as pessoas diretamente citadas no decreto estavam habilitadas a conhecer o seu conteúdo. A seguir, em 11 de setembro, compareceram ao consulado Edson Luiz Carrilho e Isabel Christina Carrilho, acompanhados do Dr. Bernardo Teixeira Batista. Novamente, lhes foi esclarecido que para ter acesso ao conteúdo do Comunicado da Comune de Ospedaletto Euganeo (PD), Prot. 11097 de 30.07.2019) deveriam enviar e-mail com a respectiva solicitação para o endereço segreteria.curitiba@esteri.it, o que foi feito em 23 de setembro.
A afirmação de uma suposta falsidade da certidão que dá origem à nossa cidadania não corresponde aos fatos pois minha mãe, Irinéa Scavazza, e eu, obtivemos a documentação de nosso antepassado, Domenico Scavazza, diretamente na sede da Comune di Ospedaletto Euganeo, em 28 de julho de 1998, sem intermediação de terceiros.
Com este documento, demos início ao processo de solicitação de cidadania italiana, que em cerca de 10 anos permitiu o reconhecimento de nossa cidadania por descendência, comunicada pelo consulado de Curitiba, em 10 de dezembro de 2009, Prot. N. 43655/CTC.
Recentemente, meu irmão Edson Luiz Carrilho e seu filho Ângelo Daniel Carrilho encaminharam sua documentação que, conferida e verificada lhes proporcionou o reconhecimento de suas cidadanias, pelo mesmo consulado, notificada em 15/02/2019, Prot. N. 6578/CTC. Nesta ocasião, participaram ao consulado o falecimento de nossa mãe.
Reiteradamente, por esta ou por outras iniciativas de comunicação, o Consulado de Curitiba e a Comune di Ospedaletto Euganeo reafirmaram o reconhecimento da documentação que confere a Cidadania Italiana à Irinéa Scavazza e seus descendentes. Repentinamente, transcorridas duas décadas da obtenção da certidão, fomos surpreendidos por uma medida de cassação de nossa cidadania, realizada de forma intempestiva e unilateral, sem que sequer pudéssemos nos manifestar previamente.
O citado decreto nos parece uma iniciativa inusitada, uma vez que se baseia em um questionamento de documento tantas vezes corroborado pelas autoridades legais do Estado Italiano. Da mesma forma, a iniciativa de uma verificação sem motivação que a justifique, incidindo sobre documentação previamente aceita e sucessivamente reafirmada, nos leva a indagar que propósito possa estar contido em uma verificação fortuita de documento tantas vezes reafirmado pelas autoridades italianas, reafirmações estas consubstanciadas no reconhecimento final de cidadania de Irinéa Scavazza e seus descendentes.
Estamos certos, pelas razões e pelas circunstâncias expostas que não há fundamento na dúvida lançada sobre a origem do documento de nosso antepassado, nem na subsequente cassação de nossa cidadania. Por força disso, tão logo tomamos conhecimento do teor do ato do Cônsul, encaminhamos, em 23 de agosto passado, as justificativas acima expostas, solicitando, sob a forma de um apelo, a revogação do citado decreto.
Assim,
- considerando ainda que a documentação obtida na Comune di Ospedaletto Euganeo foi apresentada, examinada e legitimada pelo Serviço Público Italiano, sendo tudo devidamente registrado nos autos do processo que nos conferiu a cidadania italiana;
- considerando que a alegação de falsidade é infundada e atinge de forma injusta e inaceitável a memória de nossa mãe, sua virtude e sua honra, a qual, falecida, sequer tem a possibilidade de se defender;
- ·considerando que atinge também seus descendentes de forma grave e injuriosa, notadamente quando o citado comunicado lhes imputa ato de falsidade;
- ·considerando que as medidas adotadas incidem inexoravelmente. de modo a nos prejudicar, sobre nossas vidas no presente e no futuro, e sobre atividades acadêmicas, de negócios, de gestão de propriedades, de relações sociais e familiares que exercemos como cidadãos italianos;
- considerando, por fim, que a alegação de ato de falsidade e o decreto dele decorrente sujeita os atingidos a eventuais medidas legais quando de seu ingresso em território italiano;
vimos a sua presença, Senhor Conselheiro, no sentido de expor nosso caso ao ‘Comitato degli Italiani all’Estero’ e solicitar seu apoio e assistência visando a reparação de nossos direitos de cidadania italiana. Para tanto, anexamos à presente solicitação cópias digitais da documentação demonstrativa necessária. Certos de sua atenção e apoio, manifestamos nossas Cordiais Saudações, Prof. Dr. Arq. Marcos José Carrilho; Geol. Msc. João Carlos Carrilho; Eng. Edson Luiz Carrilho; Biol. Isabel Christina Carrilho; Angelo Daniel Carrilho.”
Em agosto último, os mesmos signatários escreveram carta (depois repetida em italiano para a mesma autoridade), e enviada com “Aviso de Recebimento” pedindo reconsideração da medida e rogando que a argumentação apresentada “alcance o senso de justiça e a sabedoria de Vossa Excelência, permitindo restituir a dignidade da memória de nossa mãe e o nosso direito de filhos da Nação Italiana” (ver reprodução fotográfica do documento). Não obtiveram resposta.
“A arbitrariedade – segundo observa o advogado Elton Stolf – persiste, e a insegurança jurídica também. É lamentável que não tenha ocorrido até o momento a retratação e um pedido de desculpas por parte da autoridade coatora, pois desde então a situação poderia ter sido revertida de ofício”. Ainda segundo Stolf, “ao que tudo indica, a família deverá recorrer ao judiciário italiano para sanar o equívoco surgido por conta do despreparo da autoridade consular que não permite sequer diálogo com a família, representantes privados e, como se vê, com o órgão de representatividade maior da comunidade, que é o Comites”, e cujo presidente, advogado Walter Antonio Petruzziello, “está a par dos fatos”.
OBS: A Revista Insieme encaminhou pedido de esclarecimento sobre o assunto ao cônsul Rafaele Festa, mas até a publicação dessa matéria não houve resposta.