Um trecho da sentença do Tribunal de Lucca (reprodução).

Em reação às crescentes denúncias de crimes praticados no âmbito do reconhecimento da cidadania italiana ‘iure sanguinis’ na Itália pela chamada “máfia dos coiotes”, empresas que atuam no setor estão se constituindo em associação e iniciaram movimento de esclarecimento público baseado, inclusive, em sentença judicial que envolve o conceito de residência para o fim específico.

A informação é de Kelly Cristina Alves Queirós, uma operadora do setor que informa ser de Uberaba, Minas Gerais, e que há cerca de doze anos atua na Toscana. Com o nome de Giulia De Marche, ela havia procurado Fabio Porta, após a entrevista do ex-parlamentar contestando a onda de “criminalização” da cidadania, tendo também entrado em contato com a revista, onde, questionada, declinou seu nome verdadeiro.

PATROCINANDO SUA LEITURA

Segundo mensagem enviada a Insieme nesta manhã, ela informa que está em viagem para o Brasil e que em função dos últimos acontecimentos, “resolvemos formar um grupo de pessoas, gente que tem bastante informação”, inclusive uma advogada atuante na Itália exatamente no setor de cidadania, e “revolvemos trocar material, estudar, enfim, esclarecer a questão da residência”.

A primeira ação do grupo é, segundo ela, a publicação, no site Oriundi, de um extenso artigo assinado pela advogada Daniele Mariane Souza, intitulado “Justiça italiana reconhece residência na Itália para a obtenção da cidadania”. Nela, a autora analisa uma sentença proferida em colegiado (três juízes) pelo Tribunal de Lucca, em 17 de  abril do ano passado passado, na qual são absolvidos quatro acusados – entre eles um brasileiro – envolvidos em um caso de residência passageira (sem que nos autos tenha ficado provado qualquer ato de corrupção) junto a uma casa paroquial da Itália.

“A circunstância que a inscrição no cartório do município implique um atestado de residência não significa necessariamente que o conceito de residência útil para fins dos processos de reconhecimento da cidadania ‘iure sanguinis’ seja aquele do Código Civil e que, portanto, se deva fazer referência a uma estável e habitual moradia do sujeito” (La circostanza che l’iscrizione all’anagrafe implichi una attestazione di residenza, non significa necessariamente che il concetto di residenza utile ai fini delle pratiche di riconoscimento della cittadinanza ‘jure sanguinis’ sia quello del codice civile, e che pertanto si debba far riferimento ad una stabile abituale dimora del soggetto), diz a sentença num determinado trecho.

Para a publicação do conteúdo ora tornado público através da advogada Daniele Mariane de Souza, Insieme havia solicitado a Kelly Cristina Alves de Queirós que remetesse à redação cópia do inteiro teor da sentença, o que não foi feito até a presente data. Na carta que enviou a Fabio Porta e depois à revista Insieme, fazendo inclusive críticas à atuação do deputado Luis Roberto Lorenzato, Kelly escreveu assim:

Caro Fabio Porta, depois de ler e assistir a sua entrevista na Insieme, resolvi fazer este desabafo. Trabalho com cidadania italiana ha mais de 10 anos, o que vem ocorrendo è algo absolutamente sem precedentes. De um lado, alguns assessores que agem sem o menor escrúpulo, que trabalham sem observar as leis relativas 1a residência, ao número máximo de requerentes por apartamento, sem registrar contratos de locação, sem pagar impostos, fazendo um número desproporcional de reconhecimentos em ‘comunes’ (municípios – NR) pequenos e, no pior dos casos, desaparecendo com valores, falsificando documentos, se envolvendo em esquema de corrupção e pagamento de propina. Este tipo de profissional é de fácil identificação: cidadanias relâmpagos; em alguns casos os interessados nunca pisaram em solo italiano, um número excessivo de pedidos em um mesmo ‘comune’, promessa de conclusão do procedimento em tempo pre-estabelecidos.

De outro lado, aqueles que atuam, trabalhando de forma lícita, cumprindo todos os requisitos legais para a solicitação da cidadania, esperando pacientemente os prazos dos ‘comunes’, inclusive quando estes decidem, por questões “ideológicas” ou em virtude da própria carga de trabalho, colocar obstáculos no procedimento ou, simplesmente, colocar o assunto cidadania em segundo plano.

Depois de longos 12 anos de trabalho, controles por parte da polícia italiana, onde a minha atividade foi considerada absolutamente em regra, vejo um novo cenário, com bastante pessimismo e preocupação. Percebo que cada vez mais questões ideológicas e políticas estão sobressaindo à questões legais.

E louvável e necessário que o controle aumente, sobretudo quando se observam casos de fraude na documentação e no processo como um todo. Falsificação de documentos, corrupção e pagamento de propina são inadmissíveis. Mas, è bastante preocupante a forma com que a mídia e alguns políticos vem tratando a questão. Quando leio nos jornais e nas mídias sociais que, infelizmente de forma leviana, temerária, tratam tanto a questão da residência, como o tempo de permanência em território italiano, limitado ao procedimento, como sendo o “motivo pelo qual” todo procedimento é ilegal e criminoso, não existe como não se preocupar.

Não é crime vir até a Italia, solicitar a residência para fins de cidadania. Já existe sentença penal definitiva, em que o estado italiano não recorreu e resta claro que o conceito de residência para fins de reconhecimento de cidadania “jure sanguinis” não são os previstos no art. 43 do código civil. A sentença deixa claro que, embora a “circunstância da inscrição no cadastro do ‘comune’, implica uma atestação de residência, não significa necessariamente que o conceito de residência útil ao fim da prática de reconhecimento de cidadania italiana ‘jure sanguinis’, deva referir a uma estável estadia do sujeito em território italiano; portanto é um procedimento facilitado e que a norma vigente já prevê situações semelhantes em que é concedida a residência, embora não exista os requisitos para a concessão da residência em senso civil(tradução do que esta escrito na sentença).

A circular número 32 de 2007, de inscrição ‘anagráfica’ do ministério “dell’interno” (do Interior – NR) cria esta possibilidade, quando permite que um cidadão, que pleiteie a cidadania italiana, venha até a Itália, com um visto de 90 dias e independente do tempo de permanência, possa solicitar a inscrição ‘anagráfica’ e por consequência a cidadania italiana. Não está previsto em lei nenhum tempo mínimo para o procedimento.

Dito isto, outro fato que ainda me preocupa é a nossa representação política, gente que foi eleita para nos representar, representar o interesse dos ítalo-descendentes, mas comporta-se de forma desastrada, espalhando pânico e propondo soluções claras de quem tem um ‘approach’ xenófobo; e o pior, desconhece totalmente as questões, que envolvem o tema.

A partir do momento que existe uma sentença, dizendo que a pratica da residência é totalmente legal, a quem devo dar ouvidos, à justiça ou ao político?

Vejo uma tentativa clara de criminalizar o nosso trabalho, somente não entendi ainda qual o interesse. Não podemos ser marginalizados e hostilizados por causa de pessoas que cometeram atos ilícitos. Lembrando que o ‘business’ da cidadania, que tantas pessoas condenam e querem criminalizar sempre existiu. O próprio deputado, criador do termo “coiote da cidadania”, auxiliava pessoas no Brasil a preparar toda a documentação para a solicitação do reconhecimento da cidadania. A única diferença é que, ao invés de as pessoas virem até o solo italiano, usufruindo do direito concedido pela circular 32, estas eram colocadas na fila do consulado, que todos sabem quanto tempo leva para conceder a cidadania. Cansei de atender pessoas que pagaram advogados no Brasil, esperavam a sua cidadania há anos e ainda não tinham entendido o prazo que o processo levava, foram ludibriadas, convencidas a acreditar que teriam a cidadania em um tempo razoável, mas na prática não era assim. Como se ve, as fraudes não são de agora…

A questão aqui não se trata de contratar ou não assessoria, acredito que se os ítalos-descendentes conseguissem fazer o processo sozinhos, eles não contratariam assessoria. E, mais uma vez, penso que quem nos representa não entendeu a complexidade do tema. É simples propor que estas pessoas venham até a Itália sozinhas reconhecer a cidadania no ‘comune’ de ‘nascita’ (município de nascimento – NR) do seu ascendente. Porém, é uma ideia que não funciona do ponto de vista prático. A começar pelas dificuldades que as pessoas enfrentam em alugar imóveis, para que seja feita a prática da residência. Além disso, sabe-se que a grande imigração italiana partiu do Vêneto, imaginemos os descendentes de cidades inteiras, que imigraram, indo ao ‘comune’ pedindo o reconhecimento da cidadania. Grande parte destes ‘comunes’ são pequenos, tem uma pessoa só trabalhando no “ufficio anagrafe/stato civile” (sic), podemos imaginar como estes requerentes serão recepcionados. Práticas levando um período longuíssimo para ser concluídas e o descendente, simplesmente, não podendo trabalhar, porque o “permesso de soggiorno di attesa di cittadinanza”(sic), não permite isso.

Nenhum descendente, viria até o território italiano, contrataria assessoria se as filas nos consulados não fossem tão longas, 10, 15 anos. E agora pergunto: quais soluções estão sendo propostas para resolver isso?

Se a intenção é fazer com que o requerente venha até o solo italiano reconhecer a própria cidadania, já existe algo, por parte do governo, que ajude o ítalo-descendente a conseguir isso? Porque sem falar italiano, indo ao Vêneto, que ideologicamente não é muito favorável à questão da imigração, vocês acham que realmente estas pessoas vão conseguir ter sua cidadania reconhecida?

Porque que, ao invés de perseguir quem tem interesse em reconhecer a sua cidadania em um tempo descente, os nossos representantes não propõem soluções que efetivamente resolvam o problema?

Aliás, recebi um folder de campanha do Deputado Lorenzato onde era proposta de campanha: Obter cidadania italiana automática, uma vez que não exista interrupção por renúncia desde o bisavô até os requerentes; o que ele queria dizer com isso? O que aconteceu com o projeto, foi engavetado? Giulia De Marche”.