u PORTO ALEGRE – RS – “Todas as etnias do mundo têm no solo gaúcho seu real ou possível espaço geográfico, e na Feira do Livro, seu espaço cultural. O mundo pode ser gaúcho e brasileiro via nosso sempre indistintamente compartilhado jus soli, e nós podemos conquistar o mundo via o jus sanguinis das etnias que compõem nossa população.” A afirmação é do escritor, pesquisador e frei Rovilio Costa, patrono da 51ª Feira do Livro, ao falar na solenidade de abertura do evento, dia 28 de outubro. A feira, que se realiza na Praça da Alfândega, vai até 15 de novembro.

PATROCINANDO SUA LEITURA

Na conclusão de seu longo discurso, Rovílio disse que a Feira “nos remete às origens indígenas, européias, africanas e mundiais da demografia gaúcha e brasileira, pela qual podemos dizer ao mundo – assim somos nós, os brasileiros. Eis, na íntegra, a fala do patrono:

 

À SOMBRA DOS JACARANDÁS – “O professor, pesquisador e amigo do livro ficam em segundo plano, mesmo como Patrono da Feira, porque as pessoas buscam em mim, por primeiro, o frade. Então vou usar a teologia para abordar a cultura. Teologia da festa e do humor, fazendo memória aos 35 anos do humor livre e consciente do Rango de Edgar Vasques.

            Receber uma distinção envolve um correspondente compromisso. A eleição para Patrono da 51ª Feira do Livro não foi eleição da minha pessoa e, sim, do meu trabalho. Sou apenas mediador dos reais patronos, os três mil autores editados. Acolho esta indicação como avaliação da comunidade que nos remete à privilegiada tarefa de continuar promovendo a inclusão cultural dos segmentos étnicos, culturais, científicos e religiosos que compõem a identidade sul-rio-grandense e brasileira, com os olhares voltados ao mundo, partilhando esforços com a também vitoriosa Bienal do Mercosul. Para conhecer e viver o Estado, o Brasil e o mundo, precisa conhecer, viver e valorizar a própria casa.

A cultura, como total modo de ser e de fazer, envolve o pensar, o crer e o agir. Cultura é vida, e procede como a vida. Os fatos históricos, isoladamente considerados, ligados apenas a datas e comemorações, por si não fazem cultura viva. O fato acontece num dia, mas a cultura, como a vida, acontece todos os dias.

A documentação escrita, como espinha dorsal da história, precisa receber corpo e alma, para ressuscitar em novas formas de vida. A cultura se faz vida através da palavra. O mundo, a criação e a salvação são frutos da palavra criadora de Deus (faça-se) e da palavra salvadora de Cristo, o Verbo de Deus, feito natureza humana.

A vida brota da palavra, que se materializa em amor ou ódio, guerra ou paz. E o livro é o relicário da palavra, conseqüentemente, do amor ou do ódio. O cristianismo faz suas análises e buscas por dois caminhos: pelo livro da palavra, ou livro da vida, a Bíblia; e pela sabedoria do povo, o boca a boca das comunidades, a tradição.

Agostinho de Hippona aponta esta dupla realidade ao afirmar: “Timeo hominem unius libri”. É temível (ou louvável) o homem que só domina um livro, seja ele bom, com propostas de vida, ou mau, com propostas de morte.

Como a Bíblia, que é ponto de partida para a fé, os acervos documentais são pontos de partida para a história, a ciência e as culturas. Silenciados por uma morte aparente, podem receber a alma e a vida das gerações que se sucedem. Historiadores, filósofos, ficcionistas, cientistas, comunicadores, intelectuais… são chamados a infundir alma às bíblias documentais. Só eles podem ordenar – faça-se uma nova luz, uma nova história. Deus fez sua parte, criando o mundo à sua imagem, nós agora precisamos recriá-lo à nossa imagem.

Paulo de Tarso, ao destacar a diferença entre a lei e o espírito da lei, estabelece a diferença entre o soma e a psique. O soma da cultura e da história é o documento, a psique é a nova vida e nova história, que sobre ele podemos fundamentar.

Salvar documentos e celebrar fatos, apenas no seu tempo e espaço, são formas de celebrar a lei. Trazer os documentos e os fatos para o quotidiano, torná-los dialogáveis, é o espírito da lei, é a alma que dá vida ao corpo da história, da ciência e da cultura.

A idéia lançada pelo jornalista Say Marques, que resultou na inauguração da I Feira do Livro de Porto Alegre, a 16 de novembro de 1955, teve a venda de livros como justificativa. Em verdade, levou autoridades, intelectuais, escritores, editores, livreiros, educadores, cientistas e comunicadores à Praça da Alfândega, para dialogar e promover o livro como relicário da palavra e da cultura.

Say Marques, como jornalista, vinculou o livro e a cultura à comunicação, através da imprensa, sem a qual o livro nasce e morre em silêncio. Se hoje a Feira do Livro de Porto Alegre é a maior feira do livro a céu aberto do Continente, isso se deve em grande parte à ação dos comunicadores de todas as categorias dos Meios de Comunicação Social, incluída a internet, que João Paulo II (2004) denominou a privilegiada e abençoada invenção da comunicação.

Say não queria apenas notícias ou resenhas laudatórias de livros, mas levava autores ao debate sobre suas obras, pois sem o autor não se tem o livro.

50 anos é uma data sonhada por pessoas e instituições, mas 51 anos é o recomeço de uma nova caminhada.

Com esta 51ª Feira, primeiro degrau da segunda caminhada cinqüentenária, para uma plenitude centenária, cabe-nos reverenciar os escritores e pensadores que no curso destes 51 anos fizeram do Rio Grande do Sul a Bíblia Escrita de uma cultura singular com alma gaúcha, brasileira e etnicamente mundial.

Cito com reverência os patronáveis de 2005, que dão vitória à cultura sul-rio-grandense, cada um com seu próprio ser e pensar, parafraseando Sartre, com seu nada e seu ser, por isto se fizeram escritores: Alcy Cheuiche, Carlos Urbim, Charles Kiefer, Cíntia Moscovich, Fabrício Carpinejar, Juremir Machado da Silva, Luís Augusto Fischer, Luiz de Miranda e Martha Medeiros.

Oradores, patronos falecidos e patronos vivos, junto a editores, livreiros, intelectuais, autores, comunicadores, autoridades e, sobretudo, os leitores marcam o 51° degrau de uma escada por onde sobe a cultura.

Começamos esta história de 51 anos, com 10 oradores, fazendo a vez de patronos, de 1955 a 1964 – Guilhermino César (l, 1955), Álvaro Magalhães (2, 1956), Érico Verríssimo (3, 1957), Artur Ferreira Filho (4, 1958), Athos Damasceno Ferreira (5, 1959), Manoelito de Ornellas (6, 1960), Carlos de Brito Velho (7, 1961), Cyro Martins (8, 1962), Darcy Azambuja (9, 1963) e Say Marques (10, 1964), o idealizador.

De 1965 a 1983, temos 19 patronos falecidos, que, no dizer de Galvani, são os santos já entronizados da cultura: Alcides Maya (11, 1965; João Simões Lopes Neto (12, 1965), Alceu Wamosy (13, 1967), Caldas Júnior (14, 1968), fundador do Correio do Povo, há 110 anos promovendo o livro; Eduardo Guimarães (15, 1969); Augusto Meyer (16, 1970); Manoelito de Ornellas (17, 1971); Luís Vaz de Camões (18, 1972), o orago dos escritores portugueses e brasileiros; Darcy Azambuja (19, 1973); Leopoldo Bernardo Boeck (20, 1974); Athos Damasceno Ferreira (21, 1975); Érico Veríssimo (22, 1976, primeiro presidente da Associação Rio-Grandense de Imprensa, completando 70 gloriosos anos de serviço ao livro através da comunicação); Henrique Bertaso (23, 1977), primeiro presidente da Câmara Rio-Grandense do Livro; Walter Spalding (24, 1976); Auguste de Saint-Hilaire (25, 1979), que nos remete ao saudoso José Antônio Lutzemberger, o conviva da natureza, e ao profeta-cientista Júlio Verne, no centenário da sua morte, cujos sonhos completam suas núpcias com a realidade, em Albert Einstein, que há 50 anos nos deixou; Moysés Vellinho (26, 1980); Adão Juvenal de Souza (27, 1981); Reynaldo Moura e Monteiro Lobato, pai da literatura infantil no Brasil, em quem homenageamos os 200 anos do dinamarquês Hans Christian Andersen que, através do Patinho Feio, deu beleza à Literatura Infantil (28, 1982); José Bertaso (29, 1983).

A partir de 1984, foram escolhidos patronos vivos, começando pelo astro maior, segundo Valter Galvani, Maurício Rosemblat (30, 1984); Mário Quintana, o poeta oficial do Rio Grande do Sul, às vésperas de seu centenário (31, 1985); Cyro Martins (32, 1986), Moacyr Scliar (33, 1987); Alberto André, líder natural da Associação Rio-Grandense de Imprensa (34, 1988); Maria Dinorah (35, 1989); Guilhermino César (36, 1990); Luis Fernando Veríssimo (37, 1991); Paulo Fontoura Gastal (38, 1992); Carlos Reverbel (39, 1993); homenagem a quatro pioneiros de 1955: Nelson Boeck, Edgardo Xavier, Mário de Almeida Lima, Sétimo Luizelli (40, 1994); Caio Fernando Abreu (41, 1995); Lya Luft (42, 1996); Luiz Antonio de Assis Brasil (43, 1997); Patrícia Bins (44, 1998); Décio Freitas (45, 1999); Barbosa Lessa (46, 2000); Armindo Trevisan (47, 2001); Ruy Carlos Ostermann (48, 2002); Walter Galvani (49, 2003); Donaldo Schüller (50, 2004) Rovílio Costa (51, 2005).

A escolha de oradores e patronos falecidos e vivos, pela sua diversidade de pensar, comprova uma Feira que nasceu para ser representativa da comunidade sul-rio-grandense e, através da homenagem a um Estado Brasileiro, neste ano o Ceará, aos 140 anos da publicação da Iracema de José de Alencar, e de um país homenageado, nesta edição a Itália, à qual recordamos a Polônia e a Suíça, que juntas completam 130 anos de escolha do Rio Grande do Sul para realizar seus ideais, conjuntamente à memória dos 400 anos do Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, o herói louco, delirante e sonhador, a cavalgar sinuosa estrada como o maior arauto da luta contra as injustiças do mundo acometido de desumana confusão, e ao centenário de nascimento de Jean-Paul Sartre, que trouxe a especulação filosófica à praça da humanidade.

A Feira do Livro de Porto Alegre convida a cultura do Estado, do País e do mundo à discussão na praça dos grandes negócios humanos que são os negócios da cultura. Valorizando as diferenças de ser, pensar e agir, buscou ser culturalmente holística. Um haikai de Nilsa Ferraro, em ônibus da capital, retrata:

Porto Alegre

Feira do Livro

Jacarandás lilazes.

Ora, os jacarandás expressam a vida e a natureza da Praça. Foram plantados como livros da natureza a serem lidos pelos leitores das culturas, participando de uma grande história. E a história, mestra da vida, é aquela que não pára no tempo, mas, às sombras dos jacarandás, se rejuvenesce em novas formas de pensamento e vida.

Para os franciscanos do Estado e do mundo, são oitocentos anos que o Crucificado de São Damião desafiou a Francisco, o homem do milênio – vai e reconstrói a minha Igreja. E este fato, que não foi aprisionado pelo tempo, mudou a história da humanidade e marcou nossa história também, porque em 1737, com os 200 soldados de Silva Paes, estavam os filhos do Poverello, os capuchinhos italianos, Freis Antônio de Perugia e Anselmo de Castelvetrano; e logo aí, segundo Moacyr Flores, em 1769, os açorianos, que estavam arranchados no Porto dos Dornelles, construíram uma capela de taipa, tendo como orago São Francisco das Chagas, ou de Assis, o patrono da Itália e da Ecologia. O pequeno núcleo de ranchos passou a se denominar São Francisco do Porto dos Casais, em referência ao santo protetor e às famílias povoadoras. A capela localizava-se onde mais tarde foi edificada a sede da Companhia da Previdência do Sul, onde hoje está o Banco Safra.

Há pouco celebramos 170 anos da Revolução Farroupilha, uma revolução que perdemos. Mas os ideais não foram perdidos. Nas celebrações anuais fortalecemos a revolução que traduzimos em formas de vida gaúcha, desde acampamentos, cavalgadas, cantatas, festas, comilanças, estudos, análises e ideais.

O centenário de Érico Veríssimo é o exemplo de uma grande história que não deixamos morrer no ocaso da vida do Autor, porque sempre mais acolhemos sua pregação de humanismo, liberdade e democracia e a re-propomos às gerações que se sucedem.

Com a única idéia de trazer ao quotidiano a vida e a história gaúcha, nossa luta através do livro, numa feira em que celebramos o mundo através da Itália, e o Brasil, através do Estado do Ceará, podemos dizer que a Feira do Livro de Porto Alegre pode se considerar com orgulho a capital cultural do Brasil e do mundo.

Enquanto Estado de muitas etnias, escudados no jus soli, direito de solo, o Rio Grande do Sul é o espaço privilegiado do mundo, sem distinção de sangues. Todas as etnias do mundo têm no solo gaúcho seu real ou possível espaço geográfico, e na Feira do Livro, seu espaço cultural. O mundo pode ser gaúcho e brasileiro via nosso sempre indistintamente compartilhado jus soli, e nós podemos conquistar o mundo via o jus sanguinis das etnias que compõem nossa população.

A 51ª Feira do Livro de Porto Alegre nos remete às origens indígenas, européias, africanas e mundiais da demografia gaúcha e brasileira, pela qual podemos dizer ao mundo – assim somos nós, os brasileiros.

Viva o livro à sombra dos jacarandás! – Porto Alegre, 28 de outubro de 2005.”

a) Frei Rovílio Costa.